Ainda Estou Aqui: O Silêncio Que Não Se Cala

Ainda Estou Aqui: O Silêncio Que Não Se Cala

Vanessa Maria de Castro 

Psicanalista 

Professora da UnB 

Brasília 29 de janeiro de 2025



Em Ainda Estou Aqui, Walter Salles nos conduz por um labirinto de memória e ausência, onde o silêncio de um tempo passado se torna mais expressivo do que qualquer palavra — permanece suspenso, oculto naquilo que cala. Após assistir ao filme, a única reação que pareceu fazer sentido foi o silêncio, tamanha a intensidade do impacto que provoca. Há no silêncio um grito contido.

Em um período marcado pela repressão política e pelo autoritarismo, no contexto da ditadura civil militar (1964-1985), o Brasil vivia sob um regime de censura, violência e silêncio forçado. O governo militar, que cassava direitos e perseguia dissidentes, controlava a narrativa oficial, enquanto milhares de famílias eram desestruturadas pela perda de entes queridos, muitos dos quais desaparecidos em nome da “segurança nacional”. Rubens Paiva, deputado federal eleito, foi um dos tantos que sofreram as consequências desse regime. Cassado em 1969, ele se tornou um dos maiores símbolos da luta por justiça, após ser preso e desaparecido pela repressão em 1971.

Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, nos leva justamente a esse contexto de dor e ausência. O filme segue a trajetória de Eunice Paiva (interpretada magistralmente por Fernanda Torres), esposa de Rubens Paiva (interpretado por Selton Mello), que carrega, junto a seus filhos Vera, Maria Eliana, Ana Lúcia, Marcelo e Maria Beatriz, o peso do desaparecimento do marido. A história de Eunice é um retrato da história de muitas mulheres que, naquele tempo, tiveram suas vidas brutalmente alteradas não apenas pela repressão, mas pela busca incessante pela verdade. Eunice, com sua força e resiliência, reflete a luta de tantas mães, esposas e filhas que, durante o regime militar, enfrentaram a dor do luto sem poder nomeá-lo, sem poder gritar.


Foto: O ex-deputado Rubens Paiva entre sua mulher, Eunice (à esq.), a sua mãe e os cinco filhos - Reprodução/Memorial da Democracia

Ainda Estou Aqui revela, de forma crua e sensível, a força silenciosa das mulheres em um contexto histórico de repressão, onde suas vozes eram sistematicamente marginalizadas. No período da ditadura militar, o feminismo ainda era uma luta incipiente, e a sociedade brasileira, fortemente patriarcal, não dava espaço para as mulheres expressarem suas dores, suas angústias ou suas reivindicações. As mulheres eram muitas vezes reduzidas ao papel de cuidadoras e protetoras, enquanto a resistência política era, predominantemente, associada aos homens. Eunice Paiva, protagonista do filme, encarna a mulher que, ao mesmo tempo em que luta pela verdade e pela justiça, carrega sozinha o peso do luto, da perda e da busca por respostas. Sua jornada de dor não é apenas pessoal, mas um reflexo de milhares de mulheres que, em um país marcado pelo autoritarismo, tiveram suas vozes silenciadas pela violência do regime, pela censura e pela opressão cotidiana. O filme coloca em destaque essa luta silenciosa, uma resistência que se constrói não no grito estridente, mas no silêncio persistente e na força interior que sobrevive aos traumas de uma história que ainda ecoa nas gerações seguintes. Assim, Ainda Estou Aqui não apenas denuncia as injustiças do regime, mas também ilumina a resistência silenciosa e subestimada das mulheres, cujas experiências e lutas muitas vezes foram esquecidas pela narrativa oficial da história.

O Silêncio do Corpo

O filme nos conduz a um espaço onde as palavras são insuficientes para traduzir a dor, onde o som se dissipa e o que resta é a memória entrecortada de um grito que nunca será ouvido. Ali, onde o tempo se dobra e a ausência toma corpo, o silêncio não é mera falta de som — é um eco profundo, um sofrimento acumulado, uma resistência que se inscreve nos corpos e nas almas de quem luta para manter a verdade viva. Ao transitar pelas sombras do regime militar, Walter Salles nos confronta com esse vazio de palavras, com corpos ausentes e com a sensação amarga de que algo sempre escapa. O que sobra quando tudo é retirado? A memória dilacerada, a dor silenciosa, o luto que se recusa a ser enterrado. Na figura de Eunice Paiva, interpretada com uma delicadeza devastadora por Fernanda Torres, atravessamos a desolação e encontramos força nos fragmentos da verdade, naquilo que persiste, apesar do silêncio imposto pelo regime. A luta de Eunice foi intensa, atravessou os limites do impossível. Procurou a verdade sobre seu marido, Rubens Paiva, com uma força que rasgou a terra e moveu a história.

Mas o silêncio não estava na luta somente. O silêncio estava no seu corpo. Nele, a dor se acomodava de um modo invisível a olhos alheios. Eunice veste-se de silêncio, como se sua pele fosse feita dessa substância impalpável. E, nos gestos mais profundos, carrega esse silêncio não como fraqueza, mas como uma fortaleza invisível.A luta não a apaga, mas o corpo, esse corpo que grita contido, permanece no silêncio. A dor se manifesta de forma sutil, quase imperceptível e é isso que mais dilacera. No fundo, o silêncio do corpo de Eunice é sua maior fala.

O Corpo em Silêncio: O Grito Contido

Este é um filme de uma mulher que se desnuda sem precisar de palavras. No silêncio, a força se revela. O corpo de Fernanda Torres carrega a história sem alarde, em cada gesto, em cada tensão. Seu corpo esquálido, sempre rígido, expressa a dor e o sofrimento de uma mulher que vê tudo ruir diante de si, sem saber das últimas dores, dos últimos momentos de seu amado. Um corpo que grita em absoluto silêncio, mas que diz tudo o que precisa ser dito.

Fernanda Torres no filme "Ainda Estou Aqui" - Reprodução

Quem assiste ao filme com essa percepção entende por que Fernanda Torres está indicada ao Oscar como melhor atriz. Ela não apenas interpreta Eunice — ela a comunica. Eunice se faz presente no corpo de Fernanda, que performa sua dor, sua luta, sua resistência e seu luto. Não é apenas uma personagem, mas uma história viva, pulsante nas entrelinhas. No peso do olhar, na rigidez da delicadeza silenciosa da face, Fernanda Torres transmite uma narrativa de perdas, de ausência, de um amor ausente, mas que grita de todas as formas possíveis.

O grito se condensa em uma cena: ao ver o cachorro morto no asfalto, Eunice se rompe. Pela primeira vez, a raiva se liberta. Naquele instante, só existe o grito — não um som, mas a explosão de um corpo que, por tanto tempo, conteve a dor. Ali, sua dor se revela como fúria não mais silenciada, um grito visceral sem palavras, mas totalmente expressivo. O enterro do cachorro é um rito simples, mas carregado de significado. Ela enterra, talvez, a última esperança de encontrar o marido vivo. Todos cavando a terra, lentamente, e o cachorro enrolado, com dignidade, em uma colcha que encerra toda sua humanidade. Naquele gesto, um enterro simbólico: não apenas do animal, mas da esperança, do amor que talvez pudesse sobreviver ao silêncio.

Aquela cena da prisão no DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna), um dos principais órgãos de repressão da ditadura militar no Brasil no Rio de Janeiro, um corredor escuro e sombrio, onde os gritos ecoavam. Eunice ficou ali, aterrorizada, por 12 dias, seu corpo se tornando a expressão de toda a dor daqueles que estavam ali, brutalmente tendo sua capa de humanidade e civilidade retirada. Os corpos arrastavam-se pelo chão, misturando sangue, água e pó. A prisão não é apenas um cenário, mas a transição entre a vida, a morte e o silêncio. É nesse espaço de dor que tudo se dilui. Rubens, que morre ali, nunca mais aparece. Ele parte para o vale do silêncio, do não dito, mas o filme permanece aprisionado nessa ausência. A cena não sai de cena. Ele é um eco constante daquilo que nunca será revelado, da dor que fica contida, sem voz, mas presente em cada movimento da trama.

O Silêncio Impositivo do Estado

O silêncio é, muitas vezes, a ferramenta do opressor. Michel Foucault, em sua análise sobre poder e saber, nos diz que o silêncio não é apenas a ausência de som, mas a construção de um espaço de controle. O regime militar fez do silêncio uma arma, uma maneira de controlar as narrativas, de apagar a verdade e, com ela, as vozes daqueles que foram silenciados pela força do autoritarismo. O filme se torna uma tela que expõe esse poder de silenciar, mas também nos oferece um espaço para reverberar a luta, um grito que se recusa a desaparecer.

O silêncio não é apenas a ausência de som, mas um espaço de controle, como no Panóptico, onde o medo da vigilância cria uma forma de dominação. O regime militar utilizou o silêncio como uma ferramenta de apagamento das vozes dissidentes, tornando-o uma arma de repressão. Contudo, Walter Salles nos mostra que, mesmo quando o silêncio é imposto, sempre há um grito que atravessa a história: "Ainda estamos aqui. Ainda gritamos.

É preciso também olhar para a memória, como Paul Ricœur nos ensina, não apenas como uma coleção de fragmentos do passado, mas como um ato criador. Eunice, na sua dor e na sua busca incessante pela verdade, reconstrói não só sua própria história, mas a história de todos aqueles que sofreram sob o manto do autoritarismo. A memória de Rubens Paiva, seu marido, se torna um farol de resistência, um símbolo de que, mesmo nas sombras, a luta pela verdade nunca é completamente abafada.

Nesse cenário, a reflexão de Hannah Arendt sobre o totalitarismo ganha relevância: ela afirma que a dignidade humana está imbricada na capacidade de agir no mundo e de se fazer ouvir. No caso de Eunice, sua luta não se dá pela negação do silêncio, mas pela forma como ele é contestado. Ela nos ensina que o silêncio não significa inação, mas uma forma de resistência que se move nas brechas deixadas por um sistema opressor. A luta de Eunice se dá não nas grandes manifestações, mas nas pequenas e silenciosas ações que não se veem, mas se sentem, que não gritam, mas persistem.

Eunice encara a cena em silêncio, vemos a expressão de uma mulher que, como tantas outras, foi marcada pela história. No entanto, o silêncio que ela carrega não é impotente. Ele é o espaço onde se inscreve a memória que não se pode calar, o luto que não se pode desviar, a luta que nunca termina. O silêncio do filme é um grito abafado, e nesse silêncio, estamos todos convocados a repensar a nossa história, a verdade que ainda precisa ser revelada, o passado que nunca poderá ser apagado.

Fernanda Torres no filme "Ainda Estou Aqui" - Reprodução

Na campanha incansável para descobrir o paradeiro de seu marido, Eunice se depara com uma revista que pede uma foto da família. Porém, o editor sugere que a foto seja menos alegre, mais triste, para refletir o sofrimento que ela e seus filhos estavam vivendo. Em resposta, Eunice, com uma força silenciosa, decide contrariar a expectativa e responde:

Fotógrafo: Não precisa sorrir.
Eunice: Por que não?
Fotógrafo: O editor pediu uma foto menos feliz.
Eunice: (olha para os filhos e diz) "Nós vamos sorrir. Sorriam."

Esse gesto, aparentemente simples, carrega um peso profundo. Ao desafiar a imposição de tristeza, Eunice não apenas reflete a dor e a resistência de sua própria luta, mas também afirma que sua dignidade e humanidade não podem ser moldadas pela narrativa opressora do regime. O sorriso, nesse momento, torna-se um ato de resistência — um símbolo de que, mesmo diante do sofrimento e da tentativa de controlar suas emoções, ela escolhe afirmar sua força e a de sua família, recusando-se a ser reduzida à dor imposta pelo autoritarismo.

Cada cena do filme, com seus silenciosos gestos e olhares, nos leva para esse lugar onde a dor, a perda e a memória se entrelaçam e nos pede: o que fazer com o que nos resta. O que podemos ouvir no silêncio de Eunice, no silêncio de todos aqueles mulheres que sofrem sem poder gritar? O filme não traz respostas fáceis, mas nos convida a olhar para os vestígios da história, a escutar o que foi dito e o que foi silenciado.

E, assim, quando a tela escurece, não podemos simplesmente virar as costas e ir embora. Porque, como Eunice, ainda estamos aqui, carregando o peso das ausências, dos gritos não ouvidos, da verdade ainda por vir. E é através da nossa resistência que o silêncio se torna força. Que o grito silenciado se transforma em memória, e a memória em ação.

Na atuação magistral de Fernanda Torres, Ainda Estou Aqui se transforma em uma obra que é mais do que um filme; é um grito silenciado, uma dor contida no corpo de Eunice, que nunca chega a explodir, mas que transborda a cada gesto, a cada olhar. Não há palavras, mas o corpo da atriz se torna um campo de batalha onde tudo é dito sem ser falado. O silêncio de Eunice não é passividade, não é omissão. É um silêncio carregado de memórias, de perdas, de um grito que nunca chega a se manifestar em palavras, mas que é capaz de rasgar o espectador de dentro para fora.

Fernanda Torres no filme "Ainda Estou Aqui" - Reprodução

Cada movimento de Fernanda Torres diz mais do que mil palavras poderiam. Sua face, sua postura, seu olhar distante e, ao mesmo tempo, profundamente presente, nos falam de uma mulher marcada pela dor, pela perda, mas também pela resistência. Eunice não precisa gritar para que entendamos sua dor; ela nos alcança de outra forma, pela intensidade com que o silêncio se instala no corpo e toma conta da tela. Sua força, paradoxalmente, está nesse não-grito, nesse espaço onde ela carrega tudo o que foi arrancado, mas não sucumbe. Ela nos ensina que, por vezes, é no silêncio que se revela o maior eco da nossa humanidade.

No entanto, o que o filme também escancara, na dureza do seu retrato, é a impunidade de um Estado que se ergue sobre as ruínas das vítimas, que nega até mesmo o direito de lembrar, de fazer justiça. O silêncio, no caso do Estado, não é apenas omissão, mas uma forma ativa de perpetuar a violência. O regime militar, como um corpo sombrio que se estende até os dias atuais, não apenas torturou e matou, mas, ao não permitir que a memória dos crimes fosse preservada, perpetuou uma violência que se estende como uma sombra sobre a sociedade brasileira. O filme nos mostra que, para muitos, a banalidade do mal não está no ato de cometer os crimes, mas no assentimento social que permite que os crimes não sejam reconhecidos, nem punidos. O filme de Walter Salles faz esse retrato da impunidade, onde o mal é, de certo modo, aceito como parte do processo histórico. A sociedade brasileira, com seu silêncio cúmplice, não apenas permitiu, mas muitas vezes se omitiu diante das atrocidades cometidas pelo Estado.

E o que se vê, então, é uma sociedade que, em sua maioria, prefere o silêncio confortável a enfrentar a verdade dolorosa. No filme, o corpo de Eunice se torna um símbolo daquelas tantas mães, esposas e filhas que viveram sob o peso do sofrimento e da indiferença do mundo, que viram seus entes queridos desaparecerem sem uma palavra de explicação, sem uma ação de justiça. A banalidade do mal se espalha como uma doença que contamina as instituições, a sociedade, e, acima de tudo, os corações daqueles que, mesmo não tendo cometido os crimes, se tornam cúmplices por sua inação, por seu consentimento tácito, por sua aceitação do status quo.

O filme não oferece consolo. Ele nos coloca face a face com a impunidade, com a banalidade do mal que continua a permear a história de um país que não quer lidar com os vestígios do autoritarismo. A atuação de Fernanda Torres, com sua precisão silenciosa, faz com que o espectador se depare com a angústia do não-dito, com a dor que ultrapassa o corpo e se inscreve na memória coletiva de um povo que ainda tenta compreender o que lhe foi tirado e como ainda convive com as cicatrizes invisíveis da violência do passado.

Resistência silenciosa

Assim, o silêncio de Eunice, torna-se não só um reflexo de sua dor pessoal, mas um símbolo da luta contínua contra a impunidade e contra a banalidade do mal. O filme nos faz confrontar o que ficou, o que permanece escondido nas sombras, e nos desafia a reconhecer que o maior crime não é apenas o cometido pelo Estado, mas o silêncio que, por tanto tempo, perpetuou esse mal. No fim, o grito que nunca saiu de Eunice não é apenas dela — ele é de todos nós, todos aqueles que ainda esperamos por justiça, por memória, por verdade.

A ausência do grito no filme Ainda Estou Aqui é um silêncio que reverbera profundamente, incomodando o espectador como um grito sufocado, um lamento preso no peito. Nesse silêncio, carregado de tensão e dor, reside o caos interno de personagens como Eunice, que, de forma silenciosa, traduzem o sofrimento do desaparecimento de um ente querido, a dor do luto sem despedidas, o peso de um passado que não cicatriza. O grito, esse som visceral, esse reflexo da dor mais crua, nunca é pronunciado. E isso assusta, porque nos obriga a confrontar a violência do não dito, da falta de voz, da opressão que silencia não só as palavras, mas também os corpos e os corações.

O filme Ainda Estou Aqui nos força a encarar o tripé fundamental para a reconstrução de uma sociedade justa: verdade, reparação e justiça. A ausência de qualquer um desses pilares alimenta o silêncio que ainda ecoa nos corações das vítimas e de suas famílias. A verdade, quando negligenciada, não só apaga o passado, mas impede que se construa um futuro fundamentado na transparência e na dignidade. A reparação, por sua vez, não é um gesto simbólico, mas um direito que deve ser reconhecido e concretizado. Sem ela, a dor permanece imortalizada, sem espaço para cura. A justiça, finalmente, é o que falta para que a impunidade não continue a perpetuar o sofrimento. O filme nos desafia a refletir: como seguir em frente sem que esses três pilares sejam restaurados? O silêncio das vítimas não pode ser o eco que perpetua o ciclo de violência e dor. É hora de buscar não apenas uma resposta, mas um compromisso coletivo com a verdade, com a reparação e, acima de tudo, com a justiça. A luta de Eunice Paiva, e de tantos outros, é também a nossa luta.

Ainda Estou Aqui nos conduz por um caminho onde o silêncio é mais eloquente que as palavras, um silêncio que não apaga, mas grita pela verdade, pela justiça e pela reparação. O filme nos apresenta um retrato doloroso de uma mulher, Eunice Paiva, que, diante da dor da perda e do vazio de respostas, se recusa a deixar que a história seja apagada. Sua jornada, longe de ser um mero lamento, é um grito silencioso contra o esquecimento, contra a impunidade que ainda permeia a sociedade. A luta pela verdade, pela memória, pela justiça — esses elementos não se dissociam de uma crítica profunda a um sistema que nunca enfrentou suas responsabilidades.

O silêncio que atravessa o filme é, em sua essência, um símbolo da impunidade: o silêncio das autoridades, o silêncio dos responsáveis pelos crimes do passado, o silêncio de uma sociedade que se recusa a encarar suas feridas. Contudo, nesse silêncio, nasce uma resistência imensa, capaz de atravessar gerações e de mostrar que a luta pela reparação não é um ato de vingança, mas de justiça. A memória de Rubens Paiva, a memória de todos os que sofreram e morreram durante o regime militar, é o farol que ilumina o caminho da verdade.

O tripé da justiça, da reparação e da verdade, embora ainda falho e incompleto, é o único caminho possível para que a sociedade se cure e, finalmente, possa olhar para o futuro com dignidade. O filme de Walter Salles não oferece respostas fáceis, mas nos exige uma reflexão profunda sobre como, mesmo em um país marcado pela violência e pelo esquecimento, a memória continua sendo um instrumento de resistência. Como nos ensina Eunice, em sua persistente luta, o silêncio não é o fim, mas a força vital que mantém acesa a chama da luta por um futuro que, finalmente, reconheça a verdade.

Referências

ARENDT, Hannah. A condição humana. 2. ed. São Paulo: Forense, 1998.
ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. 3. ed. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2005.
FOUCAULT, MICHEL. Vigiar e Punir: História da violência nas prisões. 45. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2020.
RICŒUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora Unicamp, 2007.
SALLES, WALTER. Ainda estou aqui. Rio de Janeiro: Globo Filmes, 2004.

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