Francisco de Goya: Saturno devorando um filho
O Governo do Medo: Trump e o Ataque à Democracia
Vanessa Maria de Castro
Psicanalista
Professora da UnB
Brasília, 12 de fevereiro de 2025
Em apenas 23 dias de governo, torna-se evidente como a administração de Donald Trump vem operando de forma a instaurar um clima de medo e controle, tanto no âmbito material quanto no campo simbólico. A estratégia política de Trump se estrutura como um mantra quase litúrgico — “medo e controle, medo e controle, panóptico, panóptico, panóptico” — um refrão obsessivo que traduz o anseio por um regime autoritário, projetado para subverter os valores democráticos e erradicar a pluralidade. Essa retórica ultrapassa o âmbito das medidas econômicas e políticas convencionais, manifestando-se no desmonte de direitos humanos historicamente conquistados, com especial intensidade sobre a autonomia e o controle dos corpos de mulheres e meninas.
O declínio dos Estados Unidos, enquanto potência global, não é apenas um sintoma de crise econômica ou política, mas de uma estrutura interna que se enfraquece. O império que por décadas se apresentou como o guardião da democracia e da liberdade agora luta para manter sua posição de liderança. Nesse contexto, a política de Trump se inscreve como um mecanismo perverso, onde a promoção do sofrimento — seja no controle dos corpos de mulheres e minorias ou na construção de um inimigo interno — serve não apenas para manter o status quo, mas para intensificar o gozo na destruição e na marginalização do outro.
A perversão se torna, assim, um instrumento central na governança de um império que se recusa a aceitar sua derrocada. Ao enfraquecer as instituições democráticas, naturalizar a violência e estabelecer uma “verdade oficial” que não tolera a diversidade, Trump não apenas destrói a pluralidade, mas também utiliza a destruição como forma de coesão social entre seus seguidores. O medo, o sofrimento e a violência não são apenas efeitos colaterais, mas componentes estruturantes de um regime que se alimenta da negação da alteridade e da opressão dos "indesejáveis".
Em um contexto de declínio, um império como os Estados Unidos pode recorrer à guerra, à radicalização e ao autoritarismo como último esforço para preservar seu lugar de poder. Porém, a história já nos ensina que esse caminho dificilmente será benéfico, não apenas para os que vivem dentro do império, mas também para aqueles que sofrem as agruras de um império agonizante, condenado a se desfazer sob o peso de suas próprias contradições.
O Biopoder e o Governo Trump
A análise do governo Trump sob a ótica foucaultiana revela a implementação de um biopoder que organiza a vida das populações para sustentar uma ordem política e social que privilegia uma minoria e marginaliza os demais. Em "Vigiar e Punir," Michel Foucault (1975), evidencia-se a centralidade da vigilância e do controle na sociedade moderna, demonstrando que o poder não opera apenas por meio da violência física direta, mas também por mecanismos sutis e sistemáticos de regulação da vida cotidiana. Foucault mostra como essas estratégias se tornam estruturantes na dinâmica do poder. Nesse mesmo sentido, Trump adota um modelo de poder disciplinar, no qual a população – especialmente as minorias – se torna objeto de vigilância constante e de políticas que visam a sua exclusão.
As políticas do governo Trump, ao endurecerem contra populações LGBTQIA+ e imigrantes, revelam um projeto de exclusão e repressão que se alinha a um modelo de biopoder descrito por Foucault em Vigiar e Punir. No caso dos direitos LGBTQIA+, a revogação de proteções para pessoas trans, especialmente em espaços como o exército e a educação, não só retirou direitos, mas consolidou a marginalização dessa população. Da mesma forma, a política imigratória de Trump, caracterizada por medidas como a separação de famílias e a restrição do asilo, remete ao controle e à criminalização das existências mais vulneráveis, à semelhança do que Foucault descreve como formas de punição e vigilância sistemáticas. Essas ações, que promovem um regime de medo e vigilância, operam dentro de um sistema que busca disciplinar corpos e reforçar hierarquias sociais, uma dinâmica de poder que não apenas submete, mas também internaliza a ordem social a partir de práticas de controle e subordinação.
Para Achille Mbembe, que aprofunda a ideia de necropolítica, esse biopoder estende-se a uma política de exclusão e morte. Mbembe argumenta que “a necropolítica se expressa por uma capacidade de decidir quem pode viver e quem deve morrer” (MBEMBE, 2003:15), conceito que se torna palpável nas políticas de imigração de Trump, evidenciadas na separação de famílias e na criminalização de imigrantes latinos. Tais práticas configuram uma governança da morte que justifica a marginalização de determinados grupos considerados “indesejados”.
A Erosão das Instituições e a Consolidação do Conflito: A Gramática da Guerra no Governo Trump
A partir da perspectiva de Hannah Arendt, a ascensão de Trump pode ser compreendida como um movimento em direção à erosão da democracia e ao fortalecimento de um regime totalitário. Em Origens do Totalitarismo (ARENDT, 2005), Arendt descreve como os regimes totalitários se alimentam da destruição das instituições democráticas e da polarização social, estabelecendo uma realidade paralela na qual as verdades são constantemente reescritas e qualquer oposição é sistematicamente eliminada. O discurso de Trump, permeado por uma retórica de guerra cultural, deslegitima instituições fundamentais como a mídia e o judiciário, demonstrando uma intolerância que visa a criação de uma população homogênea e submissa. Assim, sua política de imigração – que desqualifica e marginaliza latinos e refugiados – insere-se nesse modelo ao construir um “outro” que deve ser eliminado ou subordinado. “O totalitarismo é, portanto, o governo que não tolera nenhuma oposição e que elimina qualquer possibilidade de resistência, por meio de métodos como o terror e a propaganda” (ARENDT, 2005: 358).
A Gramática da Guerra: A Estratégia de Conflito no Governo Trump
A ascensão de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos foi marcada por uma retórica incendiária e uma estratégia política baseada na divisão, na criação de inimigos e no desmantelamento de instituições. Nos primeiros 23 dias de sua administração, sua política externa e doméstica já apontava para um padrão de confrontos, tanto internos quanto globais, reforçando uma lógica de guerra – seja no campo econômico, diplomático, militar ou cultural. Inspirado na lógica totalitária descrita por Hannah Arendt (Origens do Totalitarismo, 2005), o governo Trump construiu uma realidade paralela na qual seus opositores foram sistematicamente deslegitimados, instituições foram atacadas e políticas de exclusão ganharam força.
1. Guerra Comercial e Econômica: Protecionismo como Estratégia de Dominação
- Desde os primeiros dias, Trump adotou uma postura agressiva contra o livre comércio, iniciando conflitos econômicos que afetaram aliados históricos e desafiaram o sistema global de comércio.
- Aço e Alumínio: Impôs tarifas de 25% sobre o aço e 10% sobre o alumínio importado, atingindo parceiros como Canadá, União Europeia e México.
- China: Iniciou uma escalada tarifária contra produtos chineses, alegando práticas desleais, o que marcou o início de uma guerra comercial prolongada.
- México e Canadá: Pressionou pela renegociação do NAFTA, ameaçando romper o tratado e impondo novas condições econômicas prejudiciais aos vizinhos.
- Retirada de Acordos Comerciais: Nos primeiros dias, Trump já demonstrava intenção de retirar os EUA de acordos multilaterais e fragilizar a Organização Mundial do Comércio (OMC).
2. Guerra Contra a Imigração e os Direitos Humanos
- A política migratória de Trump, já em seu início, mostrou-se extremamente dura e alinhada a uma ideologia de exclusão e xenofobia.
- Banimento de Muçulmanos: Trump assinou um decreto proibindo a entrada de cidadãos de sete países de maioria muçulmana, alegando riscos à segurança nacional.
- Construção do Muro na Fronteira: Ordenou a aceleração da construção do muro entre os EUA e o México, intensificando tensões diplomáticas com o país vizinho.
- Expulsão de Refugiados: Iniciou medidas para deportação em massa, criando uma crise humanitária e separando famílias na fronteira.
3. Guerra Cultural e Ataques às Instituições Democráticas
- A guerra cultural promovida por Trump, já evidente nas primeiras semanas, buscava deslegitimar instituições fundamentais da democracia e fortalecer sua base populista.
- Ataques à Mídia: Chamou jornalistas de "inimigos do povo", minando a credibilidade da imprensa e fomentando um ambiente de desinformação.
- Corte de Recursos para Universidades e Ciências Humanas: Ameaçou retirar financiamento de pesquisas em humanidades e ciências sociais, visando enfraquecer a produção acadêmica crítica ao seu governo.
- Negação das Mudanças Climáticas: Assinou ordens executivas para desmantelar regulações ambientais e enfraquecer agências científicas.
4. Guerra no Oriente Médio e na Geopolítica Global
- A política externa de Trump, mesmo nos primeiros 23 dias, já indicava um alinhamento com regimes autoritários e a escalada de tensões em várias partes do mundo.
- Gaza e Israel: Reconheceu Jerusalém como capital de Israel e indicou planos de mover a embaixada dos EUA, intensificando o conflito com os palestinos.
- Relação com a Rússia e Ucrânia: Enviou sinais ambíguos sobre seu posicionamento em relação à Rússia, o que gerou incertezas sobre o compromisso dos EUA com a OTAN.
- Sanções contra o Irã: Endureceu medidas contra o Irã, aumentando as tensões no Golfo Pérsico.
5. Guerra Contra Direitos LGBTQIA+ e de Gênero
- Trump iniciou seu governo com ataques diretos às pautas progressistas, especialmente em relação a direitos da população LGBTQIA+ e à autonomia das mulheres.
- Corte de Proteções para Pessoas Trans: Suspendeu diretrizes que protegiam o direito de pessoas trans usarem banheiros de acordo com sua identidade de gênero.
- Ataques ao Direito ao Aborto: Retomou a política da "mordaça global", cortando financiamento de ONGs que apoiam o aborto em países em desenvolvimento.
- Censura de Pesquisas sobre Identidade de Gênero: Agências federais foram orientadas a excluir menções à identidade de gênero em documentos oficiais.
A Consolidação da Gramática da Guerra
Os primeiros 23 dias do governo Trump demonstraram que sua administração não apenas adotou políticas conservadoras, mas estruturou um modelo de governo baseado no conflito. Seja na economia, na diplomacia, na cultura ou nos direitos humanos, a lógica do confronto e da exclusão marcou suas decisões. Inspirado no modelo descrito por Arendt, Trump deu continuidade a um processo de desmantelamento da democracia, no qual a verdade é constantemente reescrita e os inimigos internos e externos são fabricados para justificar medidas autoritárias.
Essa gramática da guerra se tornou a base de sua política, preparando terreno para um governo que, nos anos seguintes, aprofundar ainda mais essas tensões, consolidando uma era de polarização e retrocessos institucionais.
Michel Foucault, em A Ordem do Discurso (FOUCAULT, 2005), demonstra que o poder não apenas estabelece os critérios do que é verdadeiro ou falso, mas também institui uma “verdade oficial” que serve à sua própria perpetuação. Nesse sentido, o discurso de Trump opera pela normalização de uma narrativa de guerra e exclusão, sustentada por estruturas de racismo e patriarcado, na qual minorias – como latinos, mulheres e outros grupos marginalizados – são responsabilizadas pelos males sociais. Essa produção de uma verdade única fortalece mecanismos de controle social, deslegitimando reivindicações por diversidade e igualdade. Contudo, como aponta Foucault (1976) em "Vontade de Saber", "onde há poder, há resistência", e essa resistência se manifesta na criação de novas formas de enunciação da verdade.
O uso da violência, tanto simbólica quanto física, intensifica-se num cenário permeado pelo medo e pela construção de uma gramática da guerra. O medo, como instrumento de controle e mobilização política, estrutura discursos e práticas que legitimam a opressão, justificam a exclusão e consolidam a autoridade de líderes que operam pela lógica do confronto.
A gramática da guerra não se manifesta apenas em campos de batalha convencionais, mas também no discurso político, na mídia, nas políticas públicas e nas relações institucionais. Ela se traduz na polarização extrema, na criação de inimigos internos e externos e na disseminação de uma narrativa em que a sobrevivência depende do combate constante contra um "outro" que deve ser derrotado.
A retórica bélica de Trump, que promove a ideia de um estado de emergência e guerra permanente, não se restringe às fronteiras nacionais – como exemplificado pelas ameaças de anexação do Canadá e pela ocupação do Canal do Panamá – mas se estende a todas as esferas da política, contribuindo para a manutenção de um regime panóptico de controle. Foucault ressalta que o medo é uma ferramenta poderosa de dominação, capaz de restringir a liberdade individual e de submeter a população à vigilância constante.
A Luta contra o Corpo das Mulheres: A Retórica de Controle e Subordinação no Governo Trump
Em quase todas as frentes de guerra promovidas por Trump, as mulheres emergem como as principais vítimas, suportando as piores consequências. O ataque sistemático à agenda feminista não é um efeito colateral, mas um elemento estruturante de sua política autoritária. Ao desmantelar direitos reprodutivos, enfraquecer políticas de igualdade e minar instituições voltadas à proteção das mulheres, seu governo não apenas revoga conquistas históricas, mas também fortalece um modelo patriarcal que reafirma a subjugação do corpo feminino. O controle sobre as mulheres – seja por meio da criminalização do aborto, da precarização do trabalho feminino ou da deslegitimação das pautas de gênero – torna-se um instrumento central na manutenção de uma ordem conservadora que rejeita a diversidade e a autonomia. Assim, o corpo feminino, historicamente o primeiro campo de batalha na luta contra o patriarcado, transforma-se no alvo prioritário de um regime que enxerga na supressão das diferenças uma estratégia de poder.
Simone de Beauvoir (1949) em O Segundo Sexo afirma que “não se nasce mulher, torna-se mulher”, destacando como as mulheres são condicionadas a se submeter a papéis que as restringem. Judith Butler (1990), por sua vez, problematiza a performatividade do gênero, demonstrando que o ato de ser mulher é constantemente reconstituído por normas sociais que servem para mantê-la subordinada a uma estrutura de poder. Rita Segato (2018) complementa essa análise ao afirmar que a violência de gênero é um mecanismo estrutural que visa o controle e a dominação do corpo feminino, fazendo deste o primeiro campo de ataque de um regime totalitário que busca eliminar qualquer forma de oposição.
Nesse sentido, as políticas de Trump não representam apenas um retrocesso nos direitos das mulheres, mas uma estratégia de eliminação da autonomia e da cidadania, na qual o corpo das mulheres é reduzido a um objeto de controle e manipulação. Essa lógica de exclusão se configura como um ataque direto à pluralidade que sustenta uma sociedade democrática e à convivência com a diferença.
Medo e Controle: A Manipulação das Massas e o Efeito Manada no Discurso de Trump
O que estamos presenciando na gestão de Trump é um processo de manipulação das massas tão evidente, seja por redes sociais, uso da inteligência artificial, quanto assustador. Ele é um mestre em criar esse medo planetário, que não é apenas dirigido a um grupo específico, mas se espalha, como um vírus contaminando todos que entram na sua órbita. Em apenas 23 dias de governo, Trump conseguiu provocar uma tensão global, onde o pior parece estar sempre à espreita. A mídia está o tempo inteiro alimentando essa tensão, e, mesmo quando ele assina um simples decreto, o impacto é imediato, gerando uma expectativa apavorante do que virá a seguir. Tudo gira em torno dele. Todo o foco está na sua figura, no seu discurso, na sua política, e isso vai além dos Estados Unidos, vai se espalhando por todos os países onde a sua retórica tem algum tipo de influência.
Isso acontece porque Trump sabe, e usa, um mecanismo psicológico que é fundamental para a manutenção do poder autoritário: ele cria uma narrativa de insegurança e medo que agride a todos, mas que, ao mesmo tempo, oferece uma saída. Ele se apresenta como a figura capaz de proteger a população de um mundo cada vez mais ameaçador, uma figura que, para muitos, se torna uma espécie de líder supremo. A adesão ao seu discurso é tão forte porque ele consegue se apresentar como alguém que traz a promessa de ordem, algo que faz os seus seguidores se sentirem parte de algo maior, de algo que pode restaurar uma ideia de poder e controle que eles acreditam ter perdido.
Sigmund Freud, em Psicologia das Massas e Análise do Eu (1922), fala sobre o processo de identificação com o líder, e é exatamente isso que vemos acontecendo com Trump. Ele não é apenas um presidente, ele é o símbolo, o ícone de uma identidade coletiva de um grupo. A identificação com ele acontece de forma irracional, emocional, e sem questionamento. As massas se veem nele, não como um ser humano real, mas como uma figura idealizada que pode restaurar um passado supostamente melhor, uma ordem social que nunca foi realmente vivida, mas que é oferecida como uma solução. Isso é o que Freud chama de “efeito manada”. Ele descreve como, em situações de massa, o indivíduo perde a capacidade de questionar, de raciocinar de forma autônoma, e passa a ser guiado pela figura do líder, que representa uma espécie de autoridade absoluta, o protetor de todas as inseguranças e angústias.
Fanon (2008) argumenta que o medo, mais do que uma reação instintiva ao perigo, se torna um poderoso instrumento de dominação. No contexto da colonização, esse medo psicológico é utilizado para moldar a consciência do oprimido, que, consumido pela insegurança, se volta para uma figura autoritária em busca de proteção. No entanto, ao fazê-lo, o colonizado não percebe que sua busca por segurança é, na verdade, uma forma de auto-submissão, perpetuando a opressão e limitando sua liberdade.
O processo de identificação é profundo. O líder, como Trump, não só assume um papel de autoridade, mas se torna uma representação do ideal do eu para essas pessoas. Elas não o veem mais como uma pessoa, mas como um símbolo. E esse símbolo é poderoso, porque oferece a sensação de pertencimento e segurança em tempos de medo e incerteza. O que Freud chama de “efeito manada” é, na prática, a capacidade do líder de controlar, de induzir um comportamento coletivo, onde os membros da massa abandonam a razão, se tornam emocionalmente envolvidos e aceitam um discurso irracional como verdade absoluta.
Mas há algo ainda mais sombrio nesse processo. Freud fala sobre a força que o coletivo tem sobre o indivíduo, a violência que as massas podem produzir. Quando as pessoas estão em grupo, elas são capazes de cometer ações que jamais realizariam sozinhas. Esse fenômeno é o “efeito manada”, que surge quando a identidade individual se dissolve na massa. Nesse sentido, o discurso de Trump não só mobiliza uma adesão passiva, mas também incita ações violentas, como vimos na invasão do Capitólio, por exemplo. A violência, nesse caso, não é apenas física, mas também simbólica, uma violência que atinge valores, direitos e a própria democracia.
Por que as pessoas seguem Trump com tanta devoção, mesmo quando ele comete barbaridades? A resposta está, em parte, na criação dessa identidade coletiva do grupo, na construção desse líder quase divino e mítico que promete devolver um poder perdido. Freud argumenta que as massas, ao se submeterem ao líder, muitas vezes não sabem mais distinguir o que é real do que é idealizado, e a figura do líder se torna uma âncora emocional para aqueles que se sentem desamparados, como se ele fosse o último refúgio para suas inseguranças. Nesse sentido, ele substitui a figura do grande outro, um arquétipo de autoridade, que oferece segurança e controle. Trump, assim, não é apenas um político: ele é o salvador, o guardião do passado, o homem que vai restaurar a ordem.
E, ao mesmo tempo, isso não é novo. O que estamos vendo com Trump é um retorno a um passado idealizado, uma tentativa de reviver modelos autoritários e conservadores que, historicamente, alimentaram regimes fascistas. As histórias, como Marx dizia, se repetem primeiro como fato e depois como tragédia. Trump representa essa farsa, uma repetição de modelos que a história deveria ter deixado para trás, mas que ainda se agarram com força ao presente, oferecendo promessas vazias e discursos inflamados. As massas, como sempre, se deixam seduzir pela promessa de um poder perdido, uma estabilidade fictícia, enquanto a democracia e a liberdade se tornam os grandes inimigos dessa narrativa autoritária.
O discurso de Trump é um reflexo desse movimento, que tenta restaurar um modelo de poder através do medo, da violência simbólica e da manipulação das massas. Ele cria um ciclo vicioso, onde o medo alimenta a adesão, e a adesão justifica a violência e a repressão. Ao criar essa narrativa de insegurança global, Trump se posiciona como o único capaz de salvar os Estados Unidos e, por consequência, o mundo, de um futuro distópico. E isso é o que faz com que tantas pessoas sigam cegamente esse caminho, acreditando que ele tem as respostas, que ele tem o controle, que ele é a figura que lhes trará a tão sonhada ordem.
Trump representa o rosto da extrema-direita global, não apenas como uma figura de liderança, mas como o arquétipo de um movimento autoritário que ameaça minar os alicerces da democracia. Seu governo, com sua retórica agressiva e divisiva, tornou-se um modelo perigoso para muitos líderes conservadores e populistas que buscam seguir seu exemplo. O que esses dirigentes não percebem ou preferem ignorar é que Trump não está apenas desafiando as normas democráticas, mas criando um ambiente em que o autoritarismo é legitimado e as liberdades civis são sistematicamente erodidas.
Ele se tornou o "sonho de consumo" para muitos governantes conservadores, pois representa uma versão distorcida de liderança baseada na manipulação de massas, no uso da desinformação e na polarização extrema. Ao modelar sua política em torno do confronto constante, da demonização das minorias e da construção de inimigos internos e externos, Trump não apenas enfraquece as instituições democráticas, mas também ameaça a coexistência pacífica entre diferentes grupos sociais.
Seu governo, com apenas 23 dias, serviu para demonstrar de forma alarmante o impacto imediato de sua retórica e ações na política global e interna. Em um curto espaço de tempo, Trump conseguiu desestabilizar as instituições democráticas, semeando discórdia e medo por onde passava. Cada decreto, cada discurso, não eram apenas movimentações políticas, mas sinais claros de um esforço coordenado para enfraquecer os pilares da democracia e solidificar um regime autoritário. Sua administração não só intensificou a polarização nos Estados Unidos, mas também gerou um efeito de contágio, espalhando tensões por outros países e criando um ambiente de insegurança global. Ao invés de promover a unidade, sua liderança foi marcada pela divisão, alimentando ódios e criando "inimigos" a serem combatidos, deslegitimando instituições essenciais como a mídia e o judiciário, e passando uma mensagem perigosa sobre a fragilidade da democracia frente a um discurso autoritário e populista.
Sua administração serviu de laboratório para a normalização do discurso de ódio, do nacionalismo exacerbado e da intolerância, criando uma narrativa em que os direitos humanos e a diversidade são vistos como ameaças à "ordem natural". Através de uma retórica inflamável, ele alimenta o medo e a desconfiança, e esse medo, como um vírus, se espalha para outros países, infectando sistemas políticos e criando um terreno fértil para o crescimento do autoritarismo.
Trump não é apenas um produto de um momento político. Ele é o reflexo de uma agenda global que busca destruir as conquistas democráticas e sociais obtidas com tanto esforço. Ele se tornou um modelo para líderes que, em nome de uma retórica populista, desmantelam a democracia, enfraquecem as liberdades individuais e abrem caminho para a ascensão de regimes totalitários. Em vez de proteger os direitos dos cidadãos e promover a igualdade, Trump e seus seguidores buscam, incansavelmente, a criação de uma ordem mundial onde a opressão, o medo e a censura se tornam as normas.
O Gozo da Perversão: O Sofrimento Como Engrenagem do Poder Autoritário
Trump, ao manipular o medo, perverter normas e explorar o sofrimento alheio, não apenas encarna uma figura autoritária, mas evidencia um perigo maior: a normalização de práticas políticas baseadas na humilhação, na exclusão e na opressão. O gozo da perversão, como descrito por Freud (2017), não é apenas individual, mas coletivo, tornando-se uma força estruturante da política. Nesse cenário, o sofrimento do outro não é um efeito colateral, mas um elemento essencial da dinâmica de poder. A identificação com o líder, a submissão a suas promessas de restauração e a construção de inimigos a serem aniquilados compõem o núcleo de sua estratégia de controle social.
Ao propagar sua narrativa, Trump fomenta paranoia, insegurança e ódio, criando um ciclo vicioso que reforça seu poder. A perversão que marca sua política não se limita a seu comportamento individual, mas opera como uma dinâmica entre ele e seus seguidores, que encontram no sofrimento alheio um sentido de pertencimento e reafirmação. Como Freud (2010) apontou, a perversão envolve a recusa da castração simbólica e a transgressão das normas, refletindo-se na rejeição de limites e na negação da alteridade.
Se na perversão há um gozo em fazer o outro sofrer, na política autoritária esse prazer se torna método. Trump não apenas constrói inimigos, mas os expõe, ridiculariza e rebaixa publicamente, reforçando a coesão de seus seguidores. O medo não é um obstáculo, mas um combustível. Como Freud (2011) analisou em Psicologia das massas e análise do eu, a identificação com um líder autoritário se fortalece pelo compartilhamento do ódio a um inimigo comum, criando um vínculo afetivo baseado na exclusão e na violência.
A perversão não está apenas no líder, mas no laço que ele estabelece com seus seguidores. Nos primeiros dias de governo, há um gozo evidente em espalhar o caos, alimentar o medo e transformar o espanto e a perplexidade em espetáculo. Cada medida, cada decreto, cada pronunciamento parece calculado para desestabilizar, impor a violência como norma e demonstrar que não há limites. O medo não é apenas uma consequência – é a própria estratégia. A incerteza, a ameaça constante, a destruição de direitos e a inversão da verdade não são acasos, mas instrumentos meticulosamente empregados para que tanto Trump quanto seus sectários possam desfrutar do poder de gerar sofrimento. Esse é o gozo da perversão: assistir ao mundo em colapso e sentir-se fortalecido por isso.
Medo e Controle: A Agonia de um Império em Declínio
O que estamos presenciando na gestão de Trump não é apenas uma política autoritária, mas um sintoma do desespero de uma potência que sabe que está perdendo sua centralidade global. Os Estados Unidos, por décadas o epicentro do poder mundial, veem sua influência ser desafiada por novas forças econômicas e políticas, e esse declínio é vivido como uma ferida narcísica insuportável. Diante dessa realidade, o governo Trump reage como um casal que se recusa a aceitar o fim de um casamento irreversível – não há mais amor, não há mais sustentação, mas em vez de seguir em frente, busca-se culpados, alimenta-se o ressentimento e intensifica-se o ódio a tudo e a todos. O slogan "Make America Great Again" (Faça a América Grande Novamente), com sua promessa de recuperar um passado idealizado, encapsula o núcleo dessa negação. Ao proclamar a volta a um suposto auge da nação, Trump revela, sem saber, que a própria evocação do passado está atestando a perda da posição hegemônica dos Estados Unidos no cenário mundial. A política americana, nesse contexto, se torna uma tentativa desesperada de restaurar um passado que não pode mais ser recuperado.
A destruição promovida por Trump, em sua retórica de ódio e rejeição à mudança, não reflete apenas a política autoritária, mas também se configura como uma manifestação de um pânico existencial diante da inevitabilidade do declínio de um império. Walter Benjamin, ao afirmar que a história não segue uma linha reta, mas é composta por uma sucessão de ruínas, nos ajuda a entender que o presente está constantemente em diálogo com um passado em processo de desintegração. Para Benjamin, a história é vista como uma tempestade que destrói tudo ao seu redor, mas que também revela os destroços de um tempo anterior, que insiste em se fazer presente mesmo enquanto desmorona. Esse conceito de uma história feita de ruínas e memórias desfeitas pode ser refletido na retórica de Trump, que tenta fixar um poder já em decadência, ignorando o processo de transição inevitável que ocorre com o declínio de um império (BENJAMIN, 2006).
O prazer pelo gozo da destruição pode ser interpretado como um sintoma do desejo de fixar uma ordem de poder que, na realidade, já está em seus estágios finais. Essa busca por controle, em tempos de crise, é algo que Erich Fromm aborda em seu estudo sobre o medo da liberdade, em que observa que, diante do caos, os indivíduos tendem a buscar refúgio na figura de um líder autoritário. Em Medo à Liberdade, Fromm analisa como o medo das mudanças sociais e a busca pela segurança levam à adesão ao autoritarismo, fenômeno que se reflete na ascensão de Trump, que se apresenta como uma figura que oferece uma falsa estabilidade no meio da desordem (FROMM, 1997).
O ódio propagado por Trump e sua base não é apenas ideológico; ele expressa um pânico profundo diante da mudança. Se os Estados Unidos já não podem mais dominar o mundo como antes, então o mundo precisa ser culpado por essa decadência. Esse é o verdadeiro motor do trumpismo: a guerra contra o tempo, contra o inevitável, contra o avanço da história. Cada inimigo apontado – imigrantes, feministas, intelectuais, jornalistas – não é apenas um adversário político, mas um bode expiatório, um último esforço para atribuir a terceiros a culpa por um colapso que já está em curso.
Essa recusa em aceitar a nova ordem global se traduz na radicalização de seus seguidores, que veem na submissão a Trump uma promessa de restauração. A identificação com o líder, como Freud (1922) apontou, não se dá apenas pela admiração, mas pela necessidade de pertencimento a um projeto que promete devolver um suposto poder perdido. Ao incitar o medo, ao apontar constantemente inimigos internos e externos, Trump mantém sua base em estado de alerta permanente, convencendo-os de que estão em guerra contra forças invisíveis que ameaçam sua identidade e seu lugar no mundo.
Essa dinâmica pode ser analisada sob a ótica da psicanálise, mais especificamente no conceito de gozo de Lacan (1979), onde a repetição do sofrimento e da destruição se tornam, paradoxalmente, uma busca por um prazer doloroso. É como se o sofrimento imposto à nação e ao mundo se tornasse a única fonte de prazer disponível para aqueles que perderam o poder. Esse gozo na destruição, essa recusa em aceitar limites, é o que torna o trumpismo não apenas uma estratégia política, mas uma experiência coletiva de perversão. O gozo está na experiência de ver o mundo desmoronar sob os próprios pés, enquanto se alimenta da fantasia de que, em algum lugar, existe a promessa de um poder restaurado, embora inatingível.
Portanto, o trumpismo se torna mais do que um movimento político; ele se transforma numa experiência psíquica coletiva, em que o próprio processo de desintegração e colapso se torna a fonte de prazer, de identidade e de afirmação para aqueles que, no fundo, sabem que já perderam. A política de Trump, longe de ser apenas uma expressão de poder, é, na verdade, um grito desesperado de um império que não pode aceitar sua decadência, e, em sua agonia, tenta arrastar o mundo com ele.
Mas há algo ainda mais perverso nesse processo. O gozo do trumpismo não está apenas na promessa de um retorno à glória passada, mas na própria destruição do presente. A violência, o caos, a erosão das instituições não são apenas consequências de sua política – são parte essencial do espetáculo. Se o casamento acabou e não há mais volta, que reste ao menos a satisfação de assistir ao outro sofrer. Se os Estados Unidos já não podem ser a potência hegemônica que um dia foram, que o mundo inteiro pague por isso. Esse gozo na destruição, essa recusa em aceitar limites, é o que torna o trumpismo não apenas uma estratégia política, mas uma experiência coletiva de perversão.
Conclusão: O Gozo da Perversão e o Último Suspiro de uma Potência em Declínio
A análise do governo Trump, à luz dos pensamentos de Foucault, Arendt, Freud, Mbembe e dos estudos feministas, revela um regime fundamentado na manipulação do medo, na desinformação e na supressão da pluralidade. O que o distingue, no entanto, não é apenas sua política autoritária, mas a forma como a perversão se inscreve em sua estrutura de poder. O gozo na política de Trump não se resume ao exercício do autoritarismo, mas à satisfação gerada pela humilhação, pela exclusão e pelo sofrimento do outro. Esse gozo perverso não é apenas individual, mas compartilhado entre líder e seguidores, reforçando a coesão social pelo ódio e pelo desprezo ao diferente.
Ao atacar instituições democráticas, naturalizar a violência e instaurar uma “verdade oficial” que nega a diversidade, Trump não apenas enfraquece os direitos humanos – sobretudo os das mulheres, das minorias e dos grupos historicamente marginalizados –, mas também legitima um modelo de governança baseado na insegurança e na ameaça constante. Assim, sua política não se restringe às fronteiras dos Estados Unidos; é sintoma e catalisador de um movimento global que coloca a democracia em risco. O medo e o sofrimento, ao invés de serem efeitos colaterais, tornam-se instrumentos centrais na engenharia do poder autoritário, que se sustenta na destruição da alteridade e na reafirmação do privilégio por meio da violência.
Talvez estejamos assistindo não apenas à ascensão de um líder autoritário, mas ao último suspiro de uma potência em declínio. O gozo perverso de Trump e de seus seguidores não reside apenas na opressão interna, mas na recusa em aceitar a perda do domínio global. Os Estados Unidos, que por décadas ditaram as regras da ordem mundial, agora encaram sua própria ruína, presos em uma crise interna que fragiliza sua posição de liderança. Perder esse lugar é angustiante, e o desespero se traduz na radicalização, na recusa da mudança e na violência como resposta ao inevitável. Mas o tempo não retrocede, e a história segue seu curso. Se este é o último fôlego antes do colapso, resta saber o que emergirá das cinzas – e se o mundo será capaz de reconstruir algo para além do gozo da destruição.
Em um contexto de declínio, um império como os Estados Unidos pode recorrer à guerra como uma estratégia desesperada para preservar seu lugar de poder, mesmo quando a decadência estrutural do sistema se torna inevitável. Quem viver, verá o que acontecerá, mas a história já nos ensina que esse caminho dificilmente será favorável, não apenas para aqueles que vivem no império, mas também para os que sofrem as agruras de um império em derrocada.
Referências
ARENDT, Hannah. Os Origens do Totalitarismo. Tradução de Vera Ribeiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2005.
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1949.
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Walter Benjamin: Obras Escolhidas. São Paulo: Editora Brasiliense, 2006.
BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990.
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FOUCAULT, Michel. A vontade de saber: história da sexualidade I. 1. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1976.
FOUCAULT, Michel. A História da Sexualidade – Volume 1: A Vontade de Saber. Tradução de Maria Thereza de Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
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FROMM, Erich. Medo à liberdade. 10. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
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SEGATO, Rita. A Guerra contra as Mulheres. São Paulo: Editora Escrituras, 2018.
Texto alentado, muito pertinente e interessante. Precisamos ir decifrando esta esfinge brutal. Diria também que, ao invés de estar ressuscitando seu império, os sintomas são de decadência talvez até iminente, tamanho é o desespero de causa. Vozes importantes internas começam a ver nesta esfinge um ditador voraz que será preciso conter.
ResponderExcluirQuerido mestre Pedro Demo, suas palavras são sempre um alento e uma inspiração. Decifrar essa esfinge brutal exige coragem e persistência, e seus apontamentos nos ajudam a enxergar os sinais dessa possível decadência. Que possamos seguir atentos, ampliando as vozes que denunciam essa voracidade autoritária. Sua leitura generosa do meu texto me honra imensamente. Um abraço
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