Entre o Gramado e a Exclusão: Raça, Classe e o Imaginário Nacional

 



  • Entre Raça, Classe e Futebol


Entre o Gramado e a Exclusão: Raça, Classe e o Imaginário Nacional

Vanessa Maria de Castro

Brasília, maio de 2025. 

Introdução 

Discutir as origens do futebol no Brasil, especialmente a formação de seus clubes, não é apenas um exercício de recuperação histórica, mas uma chave fundamental para compreender as dinâmicas de raça, classe e desigualdade que estruturam a sociedade brasileira. O futebol, frequentemente tratado como mero entretenimento ou paixão nacional, é, na realidade, um potente espelho das tensões, exclusões e disputas simbólicas que atravessam o país desde o período pós-abolição.


Ao longo do século XX, o futebol operou, simultaneamente, como espaço de inclusão e exclusão. A formação dos primeiros clubes, como o Fluminense, o Botafogo, o América e outros, estava profundamente ancorada nos ideais de branquitude, civilização e modernidade que orientavam a elite republicana, marcada por uma política explícita — formal ou informal — de branqueamento da população (PEREIRA, 2000; SOARES, 2004). Esses clubes reproduziam, em suas práticas institucionais, as hierarquias sociais e raciais da época, restringindo o acesso de pessoas negras, mestiças e das camadas populares, não apenas como jogadores, mas também como sócios e frequentadores dos espaços de sociabilidade.

Ignorar essa dimensão histórica significa reforçar o “mito da democracia racial brasileira”, uma narrativa que busca mascarar as formas persistentes de racismo estrutural e desigualdade social. O futebol nunca foi um território neutro. Pelo contrário, foi (e continua sendo) uma arena na qual se reproduzem, se tensionam e, em alguns casos, se transformam as relações sociais, raciais e econômicas do país (FILHO, 1947; LOPES, 1997).

Compreender como os clubes foram formados, quem teve acesso a eles, quais eram os critérios de pertencimento e como as resistências à presença de corpos negros e pobres foram construídas, permite desnaturalizar as relações desiguais que ainda marcam tanto o esporte quanto a sociedade brasileira de forma mais ampla. Além disso, esse debate evidencia que o racismo no futebol não é um acidente ou uma exceção, mas parte constitutiva de um projeto de nação que, desde a República Velha, buscou marginalizar e subalternizar a população negra, mesmo após a abolição formal da escravidão (SANTOS, 2011; GOELLNER, 2003).

Portanto, discutir as origens do futebol e a formação dos clubes é discutir também os fundamentos do próprio Brasil: suas contradições, seus projetos de identidade nacional e as permanências das desigualdades raciais e de classe. Só a partir desse entendimento crítico é possível reivindicar práticas verdadeiramente inclusivas e antirracistas, tanto no esporte quanto na sociedade.

O futebol no Brasil, desde suas origens, revela-se como um espelho das complexas dinâmicas sociais que atravessam o país, sobretudo no que tange às questões de raça, classe e exclusão. A trajetória dos clubes, em iramente inclusivas e antirracistas, tanto no âmbito esportivo quanto na sociedade em sua totalidade.

A Formação dos Clubes: Classe, Raça e Exclusão

O futebol chegou ao Brasil como uma prática importada por jovens das elites que estudavam na Europa, como Charles Miller em São Paulo e Oscar Cox no Rio de Janeiro (PEREIRA, 2000). Desde seus primeiros passos, o esporte foi apropriado como símbolo de civilização, modernidade e branqueamento, alinhando-se aos projetos raciais e sociais da República Velha.

Os clubes, enquanto instituições, reproduziram as estruturas da sociedaparticular o Fluminense Football Club e o Club de Regatas Vasco da Gama, traduz projetos históricos de branquitude e distinção social, ao mesmo tempo em que expõe os mecanismos de exclusão racial que permearam a sociedade brasileira desde o início do século XX.

Mais do que uma simples prática esportiva, o futebol configura-se como um espaço simbólico onde as tensões raciais e sociais se manifestam de forma contundente — ora reafirmando desigualdades estruturais, ora abrindo caminho para resistências e rupturas. A presença de clubes como o Vasco da Gama exemplifica a capacidade do esporte de atuar como campo de contestação, confrontando o racismo e as hierarquias de classe dominantes.

Ao iluminar essas trajetórias, é possível desconstruir a persistente narrativa da democracia racial no futebol brasileiro, ressaltando a urgência de promover práticas verdadede. A admissão de sócios por indicação, as taxas elevadas e os códigos de conduta e vestimenta funcionaram como barreiras para a participação de pessoas negras, mestiças e das classes populares (SOARES, 2004).

Exemplo Carioca:

  • Fluminense (1902) – Clube da elite branca carioca, ligado à aristocracia cafeeira e aos descendentes de imigrantes europeus. Operou como espaço de distinção social e resistência à mestiçagem, até ser pressionado pela profissionalização do esporte (FILHO, 1947).

  • Botafogo (1904) – Também de perfil elitista, fundado por jovens brancos, oriundos de famílias da elite intelectual e econômica. Seguiu as mesmas práticas de exclusão racial e de classe no início de sua história (PEREIRA, 2000).

  • Vasco da Gama (1898, no remo e 1915 no futebol) – Contraponto importante no cenário carioca. A partir da década de 1920, rompeu com a lógica de exclusão ao incluir jogadores negros e operários, enfrentando resistência dos clubes tradicionais (SOARES, 2004).


Exemplo Paulista:

  • São Paulo FC (1930) – Fundado por dissidentes da elite do Paulistano, clube exclusivamente voltado à elite econômica, manteve até meados do século XX práticas simbólicas de distinção (LOPES, 1997).

  • Corinthians (1910) – Surge como um clube operário, inspirado no Corinthian FC, da Inglaterra. Desde sua fundação, assumiu um caráter popular, atraindo trabalhadores e imigrantes pobres (GOELLNER, 2003).

  • Palmeiras (1914) – Fundado como Palestra Itália, por imigrantes italianos. Representou uma camada média e de imigrantes, que também sofreram discriminação étnica, mas reproduziram, em parte, lógicas de exclusão racial (BELLOS, 2002).

Outros clubes relevantes:

  • Bahia (1931) – Surge em um contexto em que o futebol na Bahia já estava popularizado, mas ainda com estruturas raciais e de classe muito presentes.

  • Atlético Mineiro (1908) – Embora fundado por estudantes de classe média e alta, se popularizou mais rapidamente em comparação aos clubes cariocas.

  • Grêmio (1903) – Clube da elite gaúcha, com práticas explícitas de exclusão racial até meados do século XX.

  • Internacional (1909) – Fundado como contraponto democrático ao Grêmio, com abertura desde cedo a jogadores de origem popular e negra.


O Vasco da Gama, Raça e Resistência: Uma Análise a partir da História e da Experiência

Este ensaio não poderia se furtar a trazer para a análise o clube que carrego desde a infância no meu coração: o Club de Regatas Vasco da Gama. Mais do que uma escolha afetiva, trata-se de um movimento epistemológico e ético. Ao refletir sobre futebol, raça e desigualdade no Brasil, o Vasco surge como um objeto privilegiado de análise, justamente por encarnar, em sua própria história, os embates e as tensões que estruturam a sociedade brasileira.

Fundado em 1898, inicialmente como clube de remo, e inserindo-se no futebol em 1915, o Vasco consolidou-se, já na década de 1920, como um dos primeiros clubes a romper com os dispositivos de segregação racial e social que caracterizavam o futebol brasileiro de então. Como destacam Soares (2004) e Pereira (2000), o futebol carioca e brasileiro era, desde sua gênese, um espaço elitista, branco e restritivo. Jogadores negros, mestiços e das camadas populares eram sistematicamente excluídos, tanto dos quadros associativos quanto dos times.

A decisão do Vasco de incluir jogadores negros e operários em seu elenco principal não foi apenas uma escolha pragmática ou esportiva, mas um gesto político de resistência contra a ordem racializada e classista vigente. O episódio dos "Camisas Negras", na década de 1920, sintetiza esse enfrentamento. Diante das tentativas de exclusão promovidas pelos clubes tradicionais, o Vasco respondeu com um documento que se tornou marco na história do esporte e dos movimentos antirracistas no Brasil: a "Resposta Histórica", em 1924.


Esse documento não apenas denunciava as práticas discriminatórias, mas afirmava, de forma contundente, o direito à participação dos negros, dos pobres e dos operários no futebol e, por extensão, nos espaços de prestígio social (SOARES, 2004; FILHO, 1947).

Fonte: Acervo do Vasco da Gama  Oficial 

O Vasco, portanto, não é apenas um clube de futebol. Ele se inscreve na história como um símbolo da luta contra o racismo estrutural e a exclusão social no Brasil. Como observa Mário Filho (1947), foi através da porta aberta pelo Vasco que o futebol brasileiro pôde, progressivamente, tornar-se o espetáculo popular e multicultural que hoje conhecemos. Mas essa transformação não foi linear nem pacífica; ela exigiu enfrentamento, coragem e ruptura com as normas excludentes.

Ao trazer o Vasco para este debate, enquanto pesquisadora e torcedora, reafirmo que as análises acadêmicas, sobretudo quando tratam de temas como raça e desigualdade, não podem se dissociar das histórias vividas, dos afetos e das memórias coletivas. O futebol, nesse sentido, não é apenas um jogo, mas um campo de disputas simbólicas, de reprodução e, também, de resistência às desigualdades raciais e de classe que estruturam a sociedade brasileira.

Portanto, compreender a história do Vasco é compreender um capítulo fundamental da luta antirracista no Brasil. Um clube que, desde sua origem no futebol, recusou-se a aceitar que a cor da pele ou a origem social fossem critérios para exclusão, e que permanece, até hoje, como referência quando se fala em resistência, dignidade e justiça no esporte brasileiro.


O Futebol Brasileiro como Espelho das Desigualdades Sociais e Raciais

O desenvolvimento do futebol no Brasil reflete, com rara precisão, as contradições de um país estruturado na desigualdade racial e de classe. Clubes como Fluminense, Botafogo, São Paulo e Grêmio foram, inicialmente, instrumentos de reafirmação da branquitude, da distinção social e do controle simbólico dos espaços urbanos.

Por outro lado, iniciativas como as do Vasco da Gama e do Corinthians representaram rupturas significativas, ainda que parciais, com esses modelos. O Vasco, ao se recusar a excluir jogadores negros e operários, emitiu em 1924 o histórico "Manifesto dos Camisas Negras", que denunciava as práticas racistas dos clubes cariocas (SOARES, 2004).

A profissionalização do futebol, a partir dos anos 1930, sob o governo de Getúlio Vargas, alterou essa dinâmica. A pressão pelo desempenho esportivo tornou mais importante a habilidade dos jogadores do que sua origem social ou racial. No entanto, como alertam autores como Mário Filho (1947) e Silvana Goellner (2003), isso não significou o fim do racismo ou da elitização simbólica do futebol.

O mito da democracia racial no futebol foi, em parte, forjado pela presença massiva de jogadores negros e mestiços nas seleções e nos grandes clubes, mas sempre acompanhado de discursos que os associavam à força física e à intuição, enquanto jogadores brancos eram identificados com a inteligência e o raciocínio tático (LOPES, 1997).


Quadro – História dos Principais Clubes de Futebol do Brasil: Origens, Classe e Raça

Clube

Fundação

Local

Origem Social e Contexto

História e Trajetória Social e Racial

Fluminense

1902

Rio de Janeiro

Elite branca carioca, filhos de imigrantes europeus

Clube da elite carioca; exclusão racial indireta por critérios de classe.

Botafogo

1904

Rio de Janeiro

Elite da zona sul carioca, intelectuais e comerciantes

Origem elitista; inclusão gradual de jogadores negros com o tempo.

Flamengo

1895 (remo) / 1911 (futebol)

Rio de Janeiro

Elite ligada ao remo, esporte náutico

Popularização rápida no futebol; abriu espaço para negros e classes populares.

Vasco da Gama

1898 (remo) / 1915 (futebol)

Rio de Janeiro

Imigrantes portugueses, comerciantes e trabalhadores

Quebra do racismo estrutural no futebol; inclusão de negros e operários.

Corinthians

1910

São Paulo

Operários, ferroviários e trabalhadores paulistanos

Clube popular desde sua origem; sempre inclusivo racial e socialmente.

Palmeiras

1914

São Paulo

Imigrantes italianos (colônia italiana de SP)

Fundado como Palestra Itália; voltado à comunidade italiana; populariza-se.

São Paulo FC

1930 (refundado em 1935)

São Paulo

Elite industrial paulistana, empresários e intelectuais

Clube das elites econômicas; forte marca de distinção social e simbólica.

Grêmio

1903

Porto Alegre

Elite germânica, comerciantes e empresários

Forte tradição elitista; resistiu à inclusão de jogadores negros até 1952.

Internacional

1909

Porto Alegre

Classes médias e populares, estudantes

Clube fundado como espaço democrático e popular; aberto à diversidade racial.

Atlético Mineiro

1908

Belo Horizonte

Estudantes, intelectuais e setores médios urbanos

Rápida popularização; maior inclusão social e racial desde o início.

Cruzeiro

1921

Belo Horizonte

Comunidade de imigrantes italianos (como Società Sportiva Palestra Itália)

Origens étnicas italianas; logo amplia e se torna popular e diverso.

Bahia

1931

Salvador

Setores médios urbanos e comerciantes locais

Desde o início, clube mais aberto à diversidade racial, refletindo Salvador.

Sport Recife

1905

Recife

Elite pernambucana, comerciantes, médicos, intelectuais

Origem elitista; abre-se gradualmente às camadas populares e diversidade racial.

Santa Cruz

1914

Recife

Estudantes, trabalhadores e setores populares

Clube do povo; inclusão racial e social desde sua fundação.

Fonte: Elaboração própria.




O futebol no Brasil não pode ser compreendido fora das dinâmicas históricas de construção das desigualdades sociais, raciais e econômicas que estruturaram o país. Desde sua chegada, no final do século XIX, essa prática esportiva foi apropriada pelas elites urbanas como um espaço de sociabilidade restrita, reprodução de privilégios e manutenção das fronteiras de classe e de raça (LEITE LOPES, 1997).

De acordo com Gilmar Mascarenhas (2012), o futebol foi inicialmente um território de distinção das elites, formado em clubes fechados, onde as práticas esportivas importadas da Europa serviam para reafirmar um ideal de branquitude, civilidade e modernidade. Clubes como o Fluminense Football Club (fundado em 1902 no Rio de Janeiro) e o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense (fundado em 1903) simbolizam esse projeto de exclusão, pois, além de restringirem o acesso de negros e pobres, reproduziam as dinâmicas raciais da sociedade brasileira do início do século XX.

No entanto, essa lógica foi tensionada pela criação de clubes formados por trabalhadores, operários, estudantes e imigrantes. O Sport Club Corinthians Paulista (fundado em 1910), por exemplo, surge como uma proposta contra-hegemônica, inspirado nos clubes operários ingleses. Segundo Mário Filho (2003), o Corinthians nasceu das camadas populares, sendo desde o princípio um clube aberto aos pobres, aos negros e aos mestiços, diferentemente dos clubes aristocráticos.

O caso do Club de Regatas Vasco da Gama é emblemático na luta contra o racismo no futebol brasileiro. Fundado em 1898 por portugueses, sua entrada no futebol ocorreu em 1915. Na década de 1920, o Vasco foi pressionado a excluir atletas negros e operários sob a alegação de que “não atendiam aos padrões de civilidade” exigidos pela liga da época. A resposta do clube, conhecida como a "Resposta Histórica", recusando-se a ceder às práticas racistas, marca um divisor de águas na democratização do futebol (FILHO, 2003).

Da mesma forma, clubes como o Santa Cruz Futebol Clube (fundado em 1914, em Recife) e o Esporte Clube Bahia (fundado em 1931) nascem profundamente ligados às classes populares e rapidamente se tornam símbolos de resistência cultural e racial em suas regiões (MASCARDO, 2012).

A formação dos clubes, portanto, reflete o espelho das desigualdades brasileiras, como observa Leite Lopes (1997), destacando que a inserção de negros no futebol não foi uma dádiva das elites, mas fruto de resistência, negociação e, muitas vezes, de confrontos simbólicos e materiais.

No Sul, o Sport Club Internacional, fundado em 1909, foi criado em oposição direta às práticas excludentes do Grêmio, consolidando-se como o clube mais popular e inclusivo do Rio Grande do Sul. Segundo Mascarenhas (2012), o Internacional adotou, desde sua fundação, o lema de ser “um clube do povo”, o que contribuiu para sua enorme popularidade entre trabalhadores, imigrantes e populações negras.

No Sudeste, o Clube de Regatas do Flamengo, inicialmente um clube de remo das elites cariocas, fez uma transição durante as primeiras décadas do século XX, tornando-se um dos clubes mais populares do país, graças à sua aproximação com as classes populares (FILHO, 2003).

Diante desse cenário, é possível afirmar que o futebol brasileiro não foi apenas um espaço de lazer, mas um campo de disputa por direitos, visibilidade e reconhecimento. A inclusão dos negros e dos pobres no futebol profissional foi, portanto, uma conquista social que dialoga diretamente com as lutas maiores por cidadania no Brasil.

1. A origem do Fluminense: um projeto da elite branca carioca

O Fluminense Football Club foi fundado em 21 de julho de 1902, no bairro das Laranjeiras, Rio de Janeiro — então capital federal e centro político, econômico e simbólico do país. Seu fundador, Oscar Cox, era um jovem branco, filho de empresário britânico, formado em engenharia na Suíça. Cox, assim como os demais fundadores, integrava a elite branca carioca, composta majoritariamente por descendentes de imigrantes europeus, herdeiros da aristocracia cafeeira e membros das elites burocráticas da República recém-estabelecida (PEREIRA, 2000).

O futebol chega ao Brasil como uma prática de elite, trazido por jovens que estudaram na Europa, como Charles Miller em São Paulo e Oscar Cox no Rio de Janeiro. O esporte era compreendido como uma prática civilizatória, capaz de disciplinar corpos e alinhar comportamentos aos ideais europeus de modernidade, progresso e, sobretudo, de branquitude (SOARES, 2004).

Os primeiros estatutos do clube não faziam referência explícita à exclusão racial, mas os critérios de admissão — dependentes de indicação de sócios, pagamento de taxas elevadas e adesão a códigos de conduta e vestimenta — operavam como barreiras concretas de classe e raça. Isso num contexto de sociedade marcada pelo racismo estrutural e pelas feridas ainda abertas da escravização, abolida apenas em 1888 (LOPES, 1997; SANTOS, 2011).

Portanto, afirmar que o Fluminense nasce como um clube da elite branca carioca não é mito, mas fato histórico amplamente documentado (PEREIRA, 2000; SOARES, 2004; FILHO, 1947).

2. O futebol como tecnologia de branquitude

O futebol no início do século XX não era apenas um esporte, mas também uma tecnologia social profundamente associada ao projeto de branqueamento que guiava as elites brasileiras na Primeira República. As políticas imigratórias, que estimularam a vinda de europeus, dialogavam diretamente com o ideal de "branquear" a população e, consequentemente, a imagem da nação (GOELLNER, 2003).

Nesse cenário, clubes como Fluminense, Botafogo, América e Flamengo (este ainda no remo) operavam como instituições de reprodução dos valores da branquitude: disciplina, autocontrole, racionalidade e distinção (SANTOS, 2011).

O futebol não era apenas uma prática esportiva, mas um marcador de pertencimento. Praticá-lo em clubes como o Fluminense era afirmar-se como parte das elites, tanto econômica quanto simbolicamente.

3. O futebol como instrumento de distinção social

O Fluminense, desde sua fundação, consolidou-se como espaço de sociabilidade restrito, operando por mecanismos seletivos:

  • Adoção de sistema de sócios por indicação;

  • Taxas de adesão e manutenção elevadas;

  • Códigos de vestimenta e etiqueta rigidamente eurocentrados.

Esses critérios, embora não explicitassem a segregação racial, efetivamente funcionavam como barreiras raciais, dado que a população negra e mestiça, recém-liberta, encontrava-se majoritariamente nas camadas empobrecidas da sociedade (SOARES, 2004; SANTOS, 2011).

4. As resistências à mestiçagem no futebol

Até a década de 1920, havia forte resistência dos clubes de elite — entre eles o Fluminense — à participação de jogadores negros e mestiços. Essa resistência não se limitava à cor da pele, mas ao que ela simbolizava: a ruptura das fronteiras simbólicas entre o mundo dos "civilizados" e o dos "subalternizados" (FILHO, 1947; PEREIRA, 2000).

O episódio do "Pó de Arroz" — quando Carlos Alberto, jogador negro, usou pó branco no rosto para disfarçar sua cor — sintetiza a contradição de um clube que, por um lado, dependia do talento técnico de atletas racializados, mas, por outro, rejeitava sua integração simbólica à comunidade social do clube.

Essa ambiguidade reflete o racismo estrutural da sociedade brasileira, que após a abolição manteve hierarquias raciais rigidamente estruturadas (LOPES, 1997).

5. Quando e como isso começa a mudar?

A mudança se inicia na década de 1930, com a profissionalização do futebol, impulsionada pelo governo de Getúlio Vargas, que buscava nacionalizar o esporte. Com isso, o desempenho esportivo passou a se sobrepor, ainda que parcialmente, aos critérios raciais e de classe (PEREIRA, 2000).

O Fluminense, como outros clubes, começou a integrar jogadores negros e mestiços, porém sem alterar profundamente sua lógica de exclusão nas esferas sociais internas. As festas, os cargos administrativos e os espaços de lazer permaneceram dominados por uma elite branca até, pelo menos, meados do século XX (SANTOS, 2011; GOELLNER, 2003).

6. O mito da democracia racial no futebol

A partir dos anos 1940 e 1950, consolida-se o mito de que o futebol brasileiro seria um espaço de democracia racial — uma ideia que mascara as tensões e violências raciais vividas por jogadores negros. A romantização da história do futebol brasileiro ignora episódios recorrentes de racismo, tanto nas arquibancadas quanto na imprensa e nas estruturas internas dos clubes (SOARES, 2004; BELLOS, 2002).

Expressões como "craque de cor", amplamente utilizadas na imprensa esportiva da época, reforçavam a ideia de que o talento de jogadores negros era uma exceção e não uma regra. A associação entre branquitude e inteligência, por um lado, e entre negritude e força física, por outro, era recorrente nos discursos midiáticos e sociais (FILHO, 1947; PEREIRA, 2000).

Fato, não mito

O Fluminense nasceu, sim, como um clube da elite branca carioca, alinhado aos projetos de civilização, modernidade e branqueamento que estruturaram a República Velha. Esse dado não é uma invenção ou narrativa enviesada: é um fato historiográfico amplamente documentado por pesquisadores da história social do esporte no Brasil.

A tentativa, recorrente, de apagar ou suavizar esse passado faz parte de uma dinâmica maior da sociedade brasileira de negação do racismo estrutural. O futebol, longe de ser apenas um espaço de lazer e integração, é uma arena política onde se disputam sentidos de pertencimento, identidade e memória.

Conclusão

O futebol brasileiro, longe de ser apenas um espetáculo esportivo ou uma paixão nacional, revela-se como um espaço privilegiado para compreender as engrenagens da exclusão social e racial que moldaram — e continuam moldando — a sociedade brasileira. Desde sua chegada ao país, o futebol foi apropriado pelas elites como instrumento de distinção, projetando sobre os gramados os valores de branquitude, civilidade e progresso que marcaram o imaginário da Primeira República. Os clubes, enquanto instituições, funcionaram como dispositivos de reprodução dessas hierarquias, filtrando o acesso de acordo com critérios raciais e de classe.

A história do futebol, nesse sentido, é também a história das resistências. O caso do Vasco da Gama, ao romper com as barreiras impostas à participação de negros e trabalhadores, é emblemático da possibilidade de desafiar as estruturas vigentes e abrir brechas para novos arranjos sociais. Essa experiência, no entanto, foi e continua sendo exceção em um campo ainda marcado por profundas desigualdades, tanto no acesso às posições de destaque quanto na forma como atletas são representados, valorizados ou marginalizados.

Compreender o futebol como uma arena simbólica, atravessada por disputas raciais, de classe e de gênero, é fundamental para desconstruir mitos fundadores como o da democracia racial, tão frequentemente instrumentalizado para silenciar denúncias de racismo e desigualdade. É preciso resgatar a memória dos clubes, dos jogadores e das torcidas que desafiaram (e desafiam) essas estruturas, reconhecendo o futebol como campo de luta, memória e identidade.

Ao fim, discutir futebol é discutir o Brasil: seus projetos de nação, suas exclusões históricas e suas possibilidades de transformação. Que a crítica à formação excludente dos clubes e às marcas da desigualdade no esporte nos ajude a pensar não só um futebol mais justo, mas também uma sociedade verdadeiramente democrática, na qual raça, classe e origem não determinem o direito de pertencer.



Referências

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