Labirintos da Crueldade: A Política do Sofrimento e a Economia Libidinal da Dor
Labirintos da Crueldade: A Política do Sofrimento e a Economia Libidinal da Dor
Vanessa Maria de Castro
Da série: Cadernos de Estudo
Brasília, Maio de 2025
Este ensaio propõe uma análise crítica sobre o sofrimento humano a partir de uma abordagem multidisciplinar que articula perspectivas filosóficas, religiosas, psicanalíticas e políticas. A partir de um percurso histórico que vai da Antiguidade à contemporaneidade, o sofrimento é investigado como uma construção cultural e simbólica, ora como punição, ora como redenção, resistência ou denúncia. Examina-se, ainda, o modo como o sofrimento se inscreve na constituição da subjetividade e nas dinâmicas sociais, revelando-se como índice de desigualdade, exclusão e violação de direitos. Através do diálogo com autores como Freud, Lacan, Arendt, Levinas, Weil, Nussbaum, Fromm e Bauman, o ensaio enfatiza a importância do amor, da empatia e da solidariedade como caminhos ético-políticos para o enfrentamento do sofrimento e para a afirmação dos direitos humanos. A reflexão proposta visa não apenas compreender as formas como o sofrimento é produzido e instrumentalizado, mas também identificar possibilidades de resistência e transformação social.
Palavras-chave: sofrimento; subjetividade; psicanálise; direitos humanos; empatia; amor.
Introdução
O sofrimento humano, embora universal na experiência, não é homogêneo em sua significação. Ele atravessa a história como um fenômeno polissêmico, cujas formas de expressão e compreensão refletem estruturas de poder, regimes simbólicos e dispositivos de subjetivação. Mais do que um dado biológico ou psíquico, o sofrimento é uma construção histórica e cultural, forjada nos entrelaçamentos entre o corpo, a linguagem, a moral e a política. Sua presença — ora silenciada, ora exaltada — revela os contornos do humano, seus limites e possibilidades.
Este ensaio propõe uma travessia crítica pelo labirinto do sofrimento, articulando a psicanálise freudiana-lacaniana com a ética dos direitos humanos e com tradições filosóficas e religiosas que, ao longo dos séculos, moldaram as formas de nomear e de legitimar a dor. Do mundo antigo à contemporaneidade, o sofrimento foi concebido como castigo divino, expiação, destino trágico, fracasso moral ou sintoma social. Cada uma dessas leituras carrega implicações sobre quem sofre, como sofre e por que sofre — e, sobretudo, sobre quem tem o poder de interpretar ou ignorar essa dor.
A investigação parte de uma abordagem genealógica, examinando como o sofrimento foi teologicamente sacralizado, moralmente instrumentalizado e, por vezes, esteticamente sublizado. Avança, então, para a contribuição da psicanálise na compreensão da dor como estrutura da subjetividade: em Freud, a tensão entre pulsão e cultura; em Lacan, o sofrimento como efeito do desejo, da castração simbólica e do encontro com o Real. O ensaio explora também as interseções entre sofrimento e reconhecimento, desigualdade e exclusão, à luz do pensamento de autoras e autores como Arendt, Levinas, Weil, Nussbaum, Fromm e Bauman.
Ao considerar o sofrimento como índice daquilo que falta ao sujeito, mas também como espelho das violências que estruturam a vida social, propõe-se uma reflexão sobre os riscos de sua banalização, estetização ou instrumentalização política. Em especial, destaca-se o sofrimento das populações marginalizadas — mulheres, crianças, povos racializados — como forma de violência simbólica e material, muitas vezes naturalizada sob a lógica do patriarcado, do racismo estrutural e da necropolítica contemporânea.
O sofrimento humano, embora universal na experiência, não é homogêneo em sua significação. Ele atravessa a história como um fenômeno polissêmico, cujas formas de expressão e compreensão refletem estruturas de poder, regimes simbólicos e dispositivos de subjetivação. Mais do que um dado biológico ou psíquico, o sofrimento é uma construção histórica e cultural, forjada nos entrelaçamentos entre o corpo, a linguagem, a moral e a política. Sua presença — ora silenciada, ora exaltada — revela os contornos do humano, seus limites e possibilidades.
Este ensaio propõe uma travessia crítica pelo labirinto do sofrimento, articulando a psicanálise freudiana-lacaniana com a ética dos direitos humanos e com tradições filosóficas e religiosas que, ao longo dos séculos, moldaram as formas de nomear e de legitimar a dor. Do mundo antigo à contemporaneidade, o sofrimento foi concebido como castigo divino, expiação, destino trágico, fracasso moral ou sintoma social. Cada uma dessas leituras carrega implicações sobre quem sofre, como sofre e por que sofre — e, sobretudo, sobre quem tem o poder de interpretar ou ignorar essa dor.
A dor sempre nos moveu. Do grito inaugural à última lágrima, atravessamos a vida assinalados por perdas, rupturas, violências e silenciamentos. Sentimos dor para nascer e para morrer. Contudo, em tempos marcados por espetacularização, hiperexposição e algoritmos do desejo, a dor passa a ser não apenas vivida, mas também administrada, manipulada e explorada. Surge, assim, aquilo que pode-se nomear como “economia libidinal da dor”: uma engrenagem psíquica, cultural e política que transforma o sofrimento em energia circulante, em mercadoria afetiva, em valor de troca nas estruturas de poder.
Inspirado por autores como Jean-François Lyotard, que nos ofereceu o conceito de "economia libidinal" em sua obra homônima (Économie libidinale, 1974), este ensaio parte da hipótese de que há um circuito de investimento libidinal em torno da dor – uma economia simbólica que extrai gozo não apenas da violência explícita, mas da sua repetição, sua estetização e sua transformação em capital social ou político. Nesse contexto, o sofrimento alheio é constantemente mobilizado em mídias, discursos institucionais, práticas religiosas e até mesmo na política, gerando uma circulação de afetos que sustenta estruturas de dominação (LYOTARD, 1974).
A dor deixa de ser apenas uma experiência íntima e se torna performática. O sofrimento é convertido em narrativa pública, muitas vezes mediada por algoritmos que regulam sua visibilidade. Como analisa Byung-Chul Han (2021), vivemos numa era em que a transparência e a exposição tornaram-se exigências normativas. Assim, a dor ganha função: ou legitima a vítima (e seu lugar de fala), ou a transforma em objeto de consumo, reforçando a indiferença narcísica das sociedades neoliberais. A dor, quando narrada, pode ser escutada. Mas quando exposta em demasia, pode ser anestesiada.
A “economia libidinal da dor” não opera apenas no nível do espetáculo. Ela organiza a forma como certas vidas são consideradas sofríveis e outras não. Judith Butler (2015), ao discutir a precariedade, nos alerta que o reconhecimento do sofrimento é seletivo: certas populações (como corpos negros, indígenas, trans, periféricos) são cotidianamente expostas a sofrimentos que não geram comoção, pois foram historicamente desqualificadas como sujeitos de dor. Portanto, há uma “economia política” na administração do sofrimento, que define quem pode sofrer, quem pode mostrar seu sofrimento e quem é obrigado a sofrer em silêncio.
No campo psicanalítico, Freud já nos advertia sobre os circuitos pulsionais em que o sofrimento está implicado, especialmente nas formações do super-eu, do masoquismo moral e nas compulsões à repetição (FREUD, 1920, 1930). A dor, nesse sentido, pode se tornar uma forma de “gozo” – aquilo que Lacan (1985) chamaria de “jouissance”. Esse gozo da dor, em sua dimensão inconsciente, não é apenas um fenômeno clínico, mas também social e cultural. O sujeito pode encontrar na dor uma via de identificação, um modo de existir, de se sentir visto. E o laço social contemporâneo, atravessado por precarizações, vigilância e aceleramento, explora essa dimensão para sustentar sua engrenagem de controle.
Por fim, compreender a “economia libidinal da dor” exige uma ética. Não uma ética da compaixão passiva, mas da escuta comprometida e do enfrentamento político. É preciso reconhecer os dispositivos que organizam o sofrimento, mas também reconfigurar os sentidos que damos à dor, recusando sua fetichização e resgatando No limiar entre a psicanálise, a filosofia e a teoria política contemporânea, emerge uma expressão provocadora e potente: “economia libidinal da dor”. Mais do que uma figura de linguagem, ela propõe um deslocamento epistemológico, capaz de iluminar os modos como o sofrimento é produzido, investido de sentido, instrumentalizado e, por vezes, gozado pelas estruturas subjetivas e sociais. Este ensaio se propõe a explorar as múltiplas camadas dessa expressão, ancorando-se na tradição freudo-lacaniana, mas dialogando também com autores como Lyotard, Butler, Mbembe e Han.
A investigação parte de uma abordagem genealógica, examinando como o sofrimento foi teologicamente sacralizado, moralmente instrumentalizado e, por vezes, esteticamente sublizado. Avança, então, para a contribuição da psicanálise na compreensão da dor como estrutura da subjetividade: em Freud, a tensão entre pulsão e cultura; em Lacan, o sofrimento como efeito do desejo, da castração simbólica e do encontro com o Real. O ensaio explora também as interseções entre sofrimento e reconhecimento, desigualdade e exclusão, à luz do pensamento de autoras e autores como Hannah Arendt, Emmanuel Levinas, Simone Weil, Martha C. Nussbaum, Erich Fromm, Zygmunt Bauman e Michel Foucault.
Ao considerar o sofrimento como índice daquilo que falta ao sujeito, mas também como espelho das violências que estruturam a vida social, propõe-se uma reflexão sobre os riscos de sua banalização, estetização ou instrumentalização política. Em especial, destaca-se o sofrimento das populações marginalizadas — mulheres, crianças, povos racializados — como forma de violência simbólica e material, muitas vezes naturalizada sob a lógica do patriarcado, do racismo estrutural e da necropolítica contemporânea.
Trata-se de recusar uma leitura passiva do sofrimento e de convocar, em seu lugar, uma ética da responsabilidade que reconheça o outro em sua dor e afirme os direitos humanos como horizonte concreto de dignidade. Neste labirinto, o sofrimento não é apenas um sintoma — é também uma chave para repensar o humano, o laço social e a possibilidade de uma existência menos marcada pela crueldade.
O Sofrimento e Economia Libidinal da dor: Etimologia, Dimensões e Significados
A palavra sofrimento tem origem no latim sufferentia, derivada do verbo sufferre, que significa “suportar”, “tolerar” ou “aguentar”. Desde sua origem, o termo remete à ideia de resistência a algo penoso — uma carga que se suporta, uma dor que se atravessa. No uso contemporâneo, o sofrimento designa a experiência subjetiva de dor, aflição ou mal-estar, seja em sua forma física, emocional ou psíquica.
Como afirma Simone Weil (2001), “o sofrimento tem uma dignidade secreta, desconhecida àqueles que não o padecem”. Essa experiência subjetiva transcende a simples dor física, revelando camadas espirituais, morais e existenciais da condição humana. O sofrimento, portanto, “não é apenas uma perturbação, mas uma via de sentido” (RICŒUR, 1991).
Enquanto a dor física pode resultar de doenças ou lesões corporais, o sofrimento emocional emerge de perdas, traumas e frustrações. Já o sofrimento psíquico está ligado a estados mais duradouros de angústia, como ansiedade, depressão ou culpa. Para Freud (2010), o sofrimento humano provém de três fontes principais: o corpo, o mundo externo e as relações com os outros. Em O mal-estar na civilização, ele observa: “sofremos mais intensamente pelas relações com os outros do que pelas forças da natureza” (FREUD, 2010, p. 96).
Nas tradições religiosas, o sofrimento também é investido de sentido. No cristianismo, a dor é redentora; no budismo, é uma condição da existência (dukkha) que deve ser compreendida e superada. Já na tradição judaica, o sofrimento está ligado à fidelidade e à provação. Como observa Elie Wiesel (1987, p. 23), “em certas noites, Deus parece ausente, e o sofrimento é o único sinal de Sua lembrança”.
No campo filosófico, Nietzsche (2009, p. 43) rompe com a visão do sofrimento como mero mal a ser superado: “aquilo que não me mata, torna-me mais forte”. Em sua concepção, a dor é elemento constitutivo da vida e da criação de valores. Por sua vez, Schopenhauer (2001, p. 37) via o sofrimento como essência da existência: “a vida oscila como um pêndulo entre a dor e o tédio”.
Na modernidade, práticas médicas e psicológicas procuram aliviar o sofrimento por meio de terapias, cuidados paliativos e suporte psicossocial. No entanto, é fundamental lembrar, como adverte Paul Ricœur (1991, p. 112), que “não há técnica que dispense o trabalho do sentido no sofrimento”.
Por fim, o sofrimento é sempre uma experiência singular e subjetiva. Sua escuta e acolhimento ético tornam-se condições fundamentais para uma convivência verdadeiramente humana. Como afirma Levinas (2000), “a dor do outro me interpela, me convoca, antes mesmo de qualquer escolha”.
O Conceito Psicanalítico de Economia Libidinal [da dor]
A palavra "economia", na tradição psicanalítica, não se refere à administração de bens materiais, mas ao modo como o psiquismo regula, distribui e transforma a energia pulsional. Freud, em Projeto para uma psicologia científica (1895), propôs que o aparelho psíquico opera por uma lógica econômica, na qual a excitação busca ser descarregada para restabelecer um estado de menor tensão. Essa concepção reaparece em Além do princípio do prazer (1920), quando o autor introduz a pulsão de morte, problematizando a ideia de que o princípio do prazer — e a busca de gratificação — rege inteiramente o funcionamento mental (FREUD, 1996a; 1996b).
A pulsão de morte indica que há uma tendência intrapsíquica à repetição, à autodestruição, ao retorno a um estado inorgânico. Essa dimensão silenciosa e paradoxal da vida psíquica introduz a dor como componente estruturante do sujeito. O sofrimento, assim, não é apenas um desvio patológico, mas pode constituir um modo de existência, sustentado libidinalmente.
Lacan aprofunda essa noção ao elaborar o conceito de gozo (jouissance), que extrapola o prazer regulado pelo princípio homeostático. O gozo é aquilo que persiste para além da satisfação, frequentemente vinculado ao sofrimento. Através da repetição, da interdição e da castração simbólica, o sujeito encontra na dor não apenas um limite, mas um ponto de fixação libidinal (LACAN, 1998). O gozo é uma satisfação paradoxal, marcada por sua proximidade com o excesso, com o insuportável, e muitas vezes com o fracasso.
Jean-François Lyotard, em Économie libidinale (1974), desloca essa dinâmica para o plano social. Inspirado pela teoria freudiana, Lyotard argumenta que o capitalismo opera como uma economia de intensidades desejantes, explorando não apenas corpos e trabalhos, mas também afetos, sofrimentos e fantasias. As estruturas políticas e econômicas contemporâneas não apenas reprimem o desejo, mas o mobilizam, canalizam e monetizam. O sofrimento, nesse contexto, torna-se uma commodity — um recurso explorável e lucrativo (Lyotard, 1974).
Michel Foucault, ao longo de sua obra, oferece uma base teórica fundamental para compreender a produção da dor como técnica de poder. Em Vigiar e punir (1975), ele descreve como os corpos são historicamente moldados por regimes disciplinares que transformam o sofrimento em um instrumento pedagógico e de controle. A punição corporal, a exposição pública da dor e os mecanismos de vigilância operam como dispositivos que produzem subjetividades dóceis e sujeitas à norma (Foucault, 1987). Em sua genealogia do poder, a dor não é um acidente, mas um componente racional da governamentalidade. Foucault também antecipa, em suas análises do biopoder, a gestão da vida e da morte que será radicalizada nas formas necropolíticas descritas por Mbembe. A economia política da dor, em Foucault, revela-se como uma tecnologia de sujeição e normalização, estruturada por discursos médicos, jurídicos e morais
Judith Butler contribui com essa análise ao abordar a distribuição desigual da vulnerabilidade. Em Vida precária (2004), ela mostra que certos corpos e dores são visibilizados, valorizados e chorados, enquanto outros são descartados, esquecidos ou criminalizados. O reconhecimento da dor passa, assim, por uma política de valor e de linguagem, produzindo hierarquias afetivas e regimes morais de sofrimento (BUTLER, 2004).
Rita Laura Segato, ao investigar os fundamentos da violência sexual e da dominação patriarcal, oferece uma chave interpretativa que amplia a discussão da economia libidinal da dor. Para Segato (2013), a violação não é apenas um ato individual de perversidade, mas uma prática de poder com função comunicativa, pedagógica e política. O corpo violado é um campo de mensagem: inscreve hierarquias, impõe silenciamentos e marca posições de dominação. A dor sexualizada, nesse contexto, é gozada por estruturas de poder que produzem e reproduzem o sofrimento como espetáculo, como controle, como lição. Segato contribui, assim, para a compreensão da dor como dispositivo disciplinador, erotizado e sustentado por um pacto social de gênero, raça e classe que distribui a vulnerabilidade de forma desigual.
Achille Mbembe aprofunda esse panorama com o conceito de necropolítica: o poder de decidir quem deve viver e quem pode morrer. Nas margens da vida social — prisões, favelas, campos de refugiados — o sofrimento é não apenas tolerado, mas produzido deliberadamente. A dor torna-se um instrumento de governo, uma forma de dominação que erotiza o poder e transforma a vida em espetáculo da morte (MBEMBE, 2018).
Byung-Chul Han, por sua vez, alerta para um novo regime de dor na sociedade neoliberal. Em A sociedade do cansaço (2015) e A agonia do Eros (2017), ele descreve a subjetividade contemporânea como presa a uma lógica de desempenho e produtividade. A dor, aqui, é internalizada: o sujeito adoece tentando superar seus próprios limites, e fracassa em silêncio. A culpa, o esgotamento e a depressão se tornam sintomas de uma economia libidinal voltada para a autoexploração, onde o sofrimento é gerado e sustentado como parte do funcionamento social (HAN, 2015; 2017).
Resistência à Captura Libidinal da Dor
Falar em economia libidinal da dor é, portanto, reconhecer que o sofrimento não é apenas um resíduo ou um colateral do funcionamento psíquico ou social — ele pode ser um produto ativo, desejado, performado e espetacularizado. Essa captura da dor pelos dispositivos de poder e desejo exige uma crítica ética e política.
É necessário interrogar: que discursos legitimam o gozo com a dor alheia? Que sujeitos têm sua dor convertida em espetáculo, e quais são silenciados? Que estruturas lucram — simbolicamente ou materialmente — com o sofrimento humano?
Responder a essas perguntas implica resistir à fetichização da dor, desfazer os circuitos que erotizam a violência e reconstruir uma política do desejo pautada no cuidado, na escuta e na dignidade. Há dor que paralisa, mas há também dor que mobiliza: que denuncia, que convoca, que transforma. Apostar nessa potência é recusar o gozo mortífero da crueldade e abrir caminhos para uma outra economia libidinal: aquela que não se alimenta da destruição, mas do reconhecimento e da solidariedade.
1.1 O Sofrimento no Mundo Antigo: Punição e Destino
No contexto das primeiras civilizações, como a mesopotâmica, a egípcia e a grega arcaica, o sofrimento humano era compreendido, em grande medida, como expressão da vontade divina ou como cumprimento inexorável do destino. Essa concepção está profundamente enraizada nas cosmologias e narrativas míticas desses povos. Na tradição grega, por exemplo, a figura de Prometeu — aquele que transgride os limites ao roubar o fogo dos deuses para oferecê-lo à humanidade — exemplifica a ideia de sofrimento como punição pela hýbris, a desmedida frente à ordem divina e natural. Condenado a um suplício eterno, Prometeu representa o arquétipo do castigado pela transgressão (Vernant, 1990).
Nas tragédias clássicas gregas, especialmente nas obras de Sófocles e Eurípides, o sofrimento adquire um sentido ainda mais complexo: ele se torna um meio de revelação da condição humana, marcada pela finitude, pela ignorância e pela submissão à moira — o destino inevitável. Em Édipo Rei, a dor do protagonista não deriva de uma escolha moral consciente, mas da impossibilidade de escapar ao fado que lhe foi traçado antes mesmo de seu nascimento. Tal como observa Jean-Pierre Vernant (1990), o trágico grego reside precisamente na tensão entre a ação humana e a ordem cósmica, revelando a impotência do sujeito diante de forças que o transcendem.
Essa visão do sofrimento como punição ou expiação, associada à ordem divina e à estrutura do mundo, também está presente na tradição judaico-cristã em desenvolvimento nesse período, como será posteriormente aprofundado por Agamben (2007) ao tratar da genealogia da culpa e da soberania.
1.2. Filosofia Clássica: Razão, Equilíbrio e Sofrimento
A filosofia clássica grega representou uma inflexão no modo de compreender o sofrimento, deslocando-se das explicações mitológicas para uma abordagem racional e ética. O sofrimento, antes compreendido como punição ou destino, passou a ser objeto de análise da razão humana, tendo como horizonte a superação da dor pela sabedoria e pela autodenominação.
No estoicismo, escolas como as de Sêneca e Epicteto ensinaram que o sofrimento não decorre diretamente dos eventos externos, mas da forma como o sujeito os interpreta. A liberdade interior seria conquistada pela apatheia — estado de serenidade alcançado pelo domínio da razão sobre as paixões. Epicteto afirmava que “não são as coisas que perturbam os homens, mas a opinião que eles têm sobre elas” (EPICTETO, 2009, p. 22), expressão clara da ética estoica que busca enfrentar a dor com equanimidade e dignidade.
O epicurismo, por sua vez, também via o sofrimento como evitável, desde que se eliminassem os desejos vãos e o medo da morte. Para Epicuro, a ataraxia — tranquilidade da alma — seria atingida pela busca de prazeres simples, moderados, e pela compreensão racional dos fenômenos naturais. Segundo Epicuro (1997), o sofrimento surge do apego ao supérfluo e da ignorância diante da finitude da vida.
Aristóteles trouxe uma concepção estética e ética do sofrimento na Poética, ao afirmar que a tragédia promove a katharsis — uma purificação emocional dos afetos de piedade e temor. A dor experimentada pelo espectador, ao identificar-se com o herói trágico, cumpre uma função formativa: educar o sujeito moral e emocionalmente por meio da arte (ARISTÓTELES, 2013).
Entretanto, é necessário destacar que o pensamento filosófico clássico também foi marcado por silenciamentos. Figuras como Diotima, personagem do Banquete de Platão e mestra de Sócrates na arte do amor e da transcendência, bem como Hipátia de Alexandria, filósofa neoplatônica assassinada por razões políticas e religiosas, ofereceram reflexões sobre a dor e o conhecimento que foram marginalizadas na tradição filosófica. O reconhecimento dessas vozes excluídas permite repensar a história do sofrimento não apenas como elaboração racional masculina, mas também como experiência plural de resistência e sabedoria (WAITHE, 1987).
1.3 Cristianismo: Sofrimento como Redenção
Com o advento do cristianismo, o sofrimento passou a ser ressignificado como elemento central da experiência espiritual e como caminho de salvação. A dor, longe de ser apenas punição ou fruto da desordem humana, torna-se, na teologia cristã, um valor redentor e pedagógico. Trata-se de uma inflexão radical em relação às concepções clássicas, pois o sofrimento não apenas é tolerado, mas assumido como expressão do amor divino.
A figura de Jesus Cristo é paradigmática: sua paixão e morte são apresentadas nos Evangelhos como sofrimento inocente que salva a humanidade. A frase “Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração” (Mateus 11:29) evidencia uma espiritualização da dor, que deve ser compartilhada pelos fiéis como parte do seguimento de Cristo. A cruz transforma-se, assim, de instrumento de suplício em símbolo da redenção universal.
Para Agostinho de Hipona, o sofrimento tem raízes no pecado original, que introduziu a desordem no mundo e afastou o ser humano de Deus. Contudo, o sofrimento também é meio de purificação moral e espiritual. Em obras como Confissões, Santo Agostinho interpreta a dor não apenas como consequência do erro humano, mas como oportunidade de retorno ao Criador. “A dor, quando bem suportada, ensina, corrige e eleva” (AGOSTINHO, 1999, p. 77), escreve ele, mostrando como a experiência do sofrimento pode ter valor formativo e regenerador.
Na Idade Média, esse entendimento se aprofundou no culto aos mártires e na valorização da dor voluntária. Práticas como o ascetismo, o jejum extremo e a flagelação eram vistas como meios de identificação com o sofrimento de Cristo. Muitos santos medievais, como São Francisco de Assis e Santa Catarina de Sena, buscaram a dor como forma de união mística com Deus. Segundo Peter Brown (1988), os mártires cristãos converteram a dor corporal em linguagem pública de fé e resistência ao poder imperial, transformando o sofrimento em performance sagrada.
Essa teologia do sofrimento exerceu profunda influência sobre a cultura ocidental, normalizando a dor como experiência virtuosa e criando uma ética do sacrifício que ainda ressoa em muitos discursos contemporâneos sobre disciplina, mérito e sofrimento necessário.
1.3.1 Escrituras Sagradas: O Sofrimento como Provação e Redenção
Tanto na tradição judaica quanto na cristã, o sofrimento adquire um lugar central como instrumento de provação, purificação e aproximação de Deus. A dor é, frequentemente, apresentada nas Escrituras como meio de transformação interior, prova de fé e caminho para a redenção espiritual. Esse entendimento atravessa o Antigo e o Novo Testamento, revelando uma teologia da dor como parte integrante da experiência religiosa.
No Antigo Testamento, especialmente na Torá (os cinco primeiros livros da Bíblia hebraica), encontramos diversas passagens que vinculam sofrimento à fidelidade e ao amadurecimento espiritual. Um dos exemplos mais emblemáticos é o Sacrifício de Isaac (Aqedat Yitzhak), em Gênesis 22. Deus coloca Abraão à prova ao pedir que sacrifique seu filho amado:
"Depois destas coisas, pôs Deus Abraão à prova [...] Toma teu filho, teu único filho, Isaac, a quem amas, e oferece-o ali em holocausto" (GÊNESIS 22:1–2).
A cena, profundamente simbólica, apresenta o sofrimento não como punição, mas como teste de fidelidade e entrega total. A disposição de Abraão de renunciar ao que lhe é mais caro revela uma confiança absoluta na justiça divina. Na tradição judaica, essa narrativa se torna paradigma da emuná (fé resiliente), e, na cristã, prefiguração do sacrifício de Cristo.
Outra passagem marcante encontra-se no livro de Êxodo, que narra o sofrimento do povo hebreu sob escravidão no Egito como prelúdio da libertação:
“Tenho visto atentamente a aflição do meu povo que está no Egito e tenho ouvido o seu clamor por causa dos seus opressores, porque conheço as suas dores” (ÊXODO 3:7).
Aqui, o sofrimento coletivo torna-se catalisador da ação salvífica de Deus. A dor do povo clama por justiça e é respondida com libertação. A experiência do deserto que se segue — cheia de provações, privações e dúvidas — é, por sua vez, interpretada como processo pedagógico: o sofrimento molda o caráter espiritual do povo e prepara-o para a aliança no Sinai.
No livro de Jó, a relação entre sofrimento e fé atinge seu ponto mais filosófico e existencial. Jó, homem justo, é subitamente submetido a perdas e dores extremas, sem explicação aparente. A narrativa questiona a retribuição imediata e mostra que o sofrimento pode coexistir com a inocência. Ao final, Deus não dá respostas racionais ao sofrimento, mas convida Jó à humildade diante do mistério:
No Novo Testamento, essa teologia da dor se intensifica com a figura de Jesus Cristo, cujo sofrimento injusto adquire caráter redentor universal. O evangelho segundo Mateus registra:
“Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração [...] porque o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve” (MATEUS 11:29–30).
Aqui, o sofrimento não é evitado, mas resignificado: compartilhar o “jugo” de Cristo torna-se expressão de comunhão com Deus. O auge dessa teologia está na paixão e crucificação, nas quais a dor se converte em oferta redentora por todos. Como afirma o apóstolo Paulo:
“Completo na minha carne o que resta das aflições de Cristo, por amor ao seu corpo, que é a Igreja” (COLOSSENSES 1:24).
Essa concepção marca profundamente a espiritualidade cristã, inspirando práticas como o martírio, a penitência e o ascetismo. O sofrimento voluntariamente aceito transforma-se em instrumento de santificação, não apenas pela purificação do corpo, mas pela participação mística na dor salvífica de Cristo.
1.4 Idade Moderna: A Ciência e a Dor
Com o advento da modernidade, o sofrimento passa por uma profunda reconfiguração epistemológica. A partir do século XVII, o avanço da razão científica e do método experimental retira da dor seu estatuto sagrado ou metafísico. A dor deixa de ser concebida como manifestação divina, prova espiritual ou punição moral, e passa a ser tratada como fenômeno natural, passível de medição, diagnóstico e intervenção técnica. O sofrimento físico, em especial, é progressivamente medicalizado, tornando-se objeto do saber biomédico.
René Descartes (1596–1650) é figura central nesse processo. Ao propor a separação entre corpo e alma — res-extensa e res-cogitans —, Descartes rompe com a visão unitária e espiritualista do sofrimento. Em Traité de l’homme, ele descreve o corpo humano como uma máquina cujas engrenagens podem ser compreendidas e corrigidas, colocando a dor física no domínio da mecânica. Essa concepção inaugura a objetivação da dor, deslocando o foco do sentido existencial para a explicação causal. Como afirma Descartes: “Vejo claramente que há diferença entre a mente e o corpo, pois o corpo é por natureza sempre divisível, e a mente é completamente indivisível” (DESCARTES, 1996, p. 67). A partir dessa cisão, a dor passa a ser tratada como sintoma e não mais como linguagem da alma.
No século XVIII, o Iluminismo reforça essa tendência, ao vincular o sofrimento à ignorância, ao atraso social e à superstição. Para pensadores como Voltaire, Condorcet e Diderot, o sofrimento poderia ser combatido pelo conhecimento, pela razão e pelo progresso das instituições. A dor não era mais aceita como destino ou penitência, mas como problema a ser superado por reformas sociais, educacionais e tecnológicas. Voltaire, em seu Dicionário Filosófico, ironiza a teodicéia tradicional ao afirmar: “Se este é o melhor dos mundos possíveis, como são os outros?” (VOLTAIRE, 2005, p. 87), em referência ao terremoto de Lisboa de 1755 — evento que desestabilizou a fé na justiça divina e reforçou o ceticismo ilustrado.
Nesse contexto, o avanço da medicina e das ciências naturais desempenha papel central na dessacralização do sofrimento. A dor passa a ser medida, catalogada e tratada. A invenção da anestesia no século XIX, por exemplo, representa um marco simbólico: ela não apenas alivia a dor, mas afirma o ideal moderno de que o sofrimento é um problema técnico a ser erradicado. A figura do médico substitui o sacerdote, e o hospital passa a competir com o templo como lugar de alívio da dor.
Contudo, essa racionalização do sofrimento não o extingue, mas o reconfigura. A medicalização da dor física convive com o surgimento de novas formas de sofrimento psicológico, que seriam mais tarde tematizadas pela psicanálise. A tentativa moderna de eliminar o sofrimento por meios científicos revela, ao longo do tempo, seus próprios limites — mostrando que o mal-estar persiste, mesmo em sociedades tecnicamente avançadas.
1.5 Século XIX: Filosofia do Sofrimento
O século XIX representou uma virada radical na concepção ocidental do sofrimento. Deixando de ser apenas uma condição a ser evitada ou redimida, a dor passa a ser reconhecida como elemento fundamental da existência humana. Filósofos como Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche não apenas tematizaram o sofrimento, mas o colocaram no centro de suas ontologias, desafiando tanto o otimismo iluminista quanto as promessas religiosas de superação do mal.
Influenciado pela filosofia indiana e pelo pessimismo metafísico, Schopenhauer (2005, p. 87) propõe uma leitura trágica da existência em O mundo como vontade e representação (1818). Para ele, o sofrimento é inerente à vida, resultado de uma vontade cega, irracional e incessante que impulsiona todos os seres a desejar sempre mais, gerando frustração e dor contínuas. A vida, segundo Schopenhauer, “oscila, como um pêndulo, entre a dor e o tédio”. A saída para essa condição está na negação da vontade, alcançada por meio da arte, da compaixão e de práticas ascéticas que suspendem o desejo, oferecendo, ainda que temporariamente, alívio ao sofrimento existencial.
Nietzsche (2007), por sua vez, oferece uma inflexão decisiva, rejeitando o pessimismo metafísico e os pressupostos da moral cristã. Em obras como A gaia ciência e Assim falou Zaratustra, ele afirma o sofrimento não como mal a ser evitado, mas como força criadora e formadora da potência e da liberdade. O conceito de amor fati — amor ao destino — sintetiza essa postura: “Minha fórmula para a grandeza do homem é amor fati: não querer que nada seja diferente — nem no passado, nem no futuro, nem por toda a eternidade” (NIETZSCHE, 2007, p. 201). Para Nietzsche, a dor testa e amplia o sujeito, sendo condição essencial da criação de sentido e da individuação.
Ambos os filósofos criticam os artifícios ideológicos que negam ou banalizam o sofrimento. Schopenhauer o reconhece como inevitável, recomendando o desligamento da vontade; Nietzsche o afirma como caminho de elevação e expressão da vontade de potência. Em comum, reconhecem que a dor é constitutiva da existência e que qualquer projeto — ético, político ou espiritual — que a ignore estará condenado à superficialidade.
Essa revalorização do sofrimento no século XIX preparou o terreno para as inquietações do século XX, marcado por guerras, genocídios e crises que desvelaram os limites das grandes narrativas de sentido. Nesse contexto, a escrita moderna emerge como expressão literária privilegiada para dar voz ao sofrimento da subjetividade fragmentada e complexa.
Autores modernistas como Virginia Woolf, Marcel Proust e Clarice Lispector desenvolveram técnicas narrativas — como o fluxo de consciência e a exploração da temporalidade subjetiva — capazes de captar as oscilações emocionais, as angústias difusas e os conflitos inconscientes do eu. Essa abordagem literária dialoga profundamente com a psicanálise, que entende o sofrimento para além do corpo, como resultado de forças psíquicas recalcadas e dinâmicas internas (FREUD, 1996).
Ao romper com estruturas narrativas tradicionais e com a linearidade do tempo, a escrita moderna expressa a condição aberta, ambígua e por vezes insolúvel do sofrimento humano. Ela traduz a crise da modernidade anunciada por Nietzsche, na qual a ausência de garantias metafísicas e morais confronta o sujeito com o vazio existencial e a dor que não se encerram em soluções fáceis.
Assim, a escrita moderna amplia o entendimento do sofrimento, incorporando-o como elemento constitutivo da subjetividade e da cultura contemporâneas. Essa perspectiva amplia a compreensão filosófica ao integrar as dimensões psíquica, social e estética da dor, revelando seu papel não apenas como experiência de perda ou angústia, mas também como espaço de resistência, criação de sentido e afirmação da liberdade.
1.6. Século XX: Sofrimento, Modernidade e Subjetividade
O século XX foi atravessado por guerras, genocídios, colapsos econômicos e regimes totalitários — eventos que trouxeram o sofrimento para o centro das reflexões filosóficas, psicanalíticas e sociológicas. A dor humana passou a ser pensada não apenas como experiência individual, mas como sintoma de patologias sociais, políticas e civilizacionais. Os grandes sistemas de sentido — religião, razão e progresso — mostraram-se insuficientes diante da barbárie, abrindo espaço para leituras críticas, existencialistas e psicanalíticas do sofrimento. Assim, o século XX foi um período de intensas transformações sociais, políticas e culturais, marcado por eventos traumáticos de grande impacto coletivo e individual. Guerras mundiais, genocídios, crises econômicas, regimes totalitários e conflitos ideológicos colocaram o sofrimento no centro das experiências humanas, deslocando sua compreensão da esfera puramente individual para uma dimensão social e civilizacional.
As duas grandes guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945) expuseram o horror da destruição em massa, a perda indiscriminada de vidas e a devastação física e psicológica de povos inteiros. O sofrimento causado pela violência bélica desnudou os limites das promessas da modernidade, que acreditava no progresso técnico e na racionalidade como motores da civilização e do bem-estar humano. Além disso, os genocídios — como o Holocausto — revelaram a face extrema da barbárie institucionalizada, o que levou filósofos como Theodor Adorno e Hannah Arendt a refletirem sobre a banalidade do mal e o colapso dos valores éticos tradicionais (ADORNO, 2005; ARENDT, 1963).
O colapso econômico, especialmente a Grande Depressão de 1929, aprofundou o sofrimento social, expondo as desigualdades estruturais e a vulnerabilidade das populações diante das crises capitalistas. O desemprego em massa, a fome e a precarização das condições de vida ampliaram o sofrimento material, mas também impactaram a saúde mental coletiva, gerando sentimentos de desesperança e angústia generalizada (HOBSBAWM, 1995).
Os regimes totalitários — fascismo, nazismo e stalinismo — impuseram formas inéditas de violência política e controle social, associadas a perseguições, prisões arbitrárias, torturas e censura. A experiência dessas ditaduras evidenciou como o sofrimento pode ser utilizado como instrumento de dominação e repressão, desafiando a noção de direitos humanos e dignidade (Freud, 1930; Fanon, 1961).
Neste contexto, os grandes sistemas de sentido da tradição moderna — a religião, a razão e a ideia de progresso — mostraram-se insuficientes para dar conta da magnitude da dor e da crise existencial que se instaurou. Isso abriu espaço para abordagens críticas e plurais que passaram a interpretar o sofrimento não apenas como um fenômeno individual, mas como um sintoma das patologias sociais, políticas e culturais. A filosofia existencialista, por exemplo, com autores como Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, explorou a angústia, a liberdade e o absurdo da condição humana diante de um mundo sem certezas metafísicas (SARTRE, 1943).
A psicanálise ampliou seu escopo, analisando o sofrimento a partir das dinâmicas inconscientes e das contradições subjetivas, mas também em relação às estruturas sociais e históricas que moldam a experiência do indivíduo (Lacan, 1966; Freud, 1926). O sofrimento, assim, tornou-se objeto de investigação que articulava as dimensões psíquica, social e cultural, buscando compreender seus múltiplos sentidos e possibilidades de resistência.
Portanto, as grandes dores do século XX — a guerra, o genocídio, a repressão política, a crise econômica e a crise existencial — não só desafiaram as respostas tradicionais, como estimularam uma reflexão profunda sobre as condições da subjetividade e da cultura moderna, destacando a centralidade do sofrimento como experiência humana fundamental e multifacetada.
1.6.1. Freud e Lacan: A Dor como Estrutura da Subjetividade
Sigmund Freud (1856–1939), médico austríaco, e Jacques Lacan (1901–1981), psiquiatra e psicanalista francês, ambos figuras centrais da psicanálise, oferecem contribuições fundamentais para a compreensão do sofrimento humano, especialmente no que diz respeito à constituição da subjetividade. Para esses autores, o sofrimento não é um evento acidental ou episódico, mas algo estruturalmente vinculado à própria formação do sujeito. A dor, nesse contexto, não é um elemento externo, mas um componente intrínseco da psique humana, que emerge das tensões entre os desejos inconscientes e as exigências da civilização.
Sigmund Freud, em O Mal-estar na Civilização (1930), argumenta que o sofrimento é um preço inevitável da civilização. Através de sua teoria do inconsciente e das pulsões, Freud vê o sujeito como sendo constantemente atravessado por três fontes principais de sofrimento: a fragilidade do corpo humano, a hostilidade da natureza e os conflitos com os outros em uma sociedade organizada. Essa tensão entre os impulsos primitivos e as restrições impostas pela sociedade gera um estado constante de angústia e insatisfação.
Em sua teoria, Freud afirma que, para que a vida em sociedade seja possível, é necessário reprimir os impulsos sexuais e agressivos dos indivíduos, os quais são naturais, mas potencialmente destrutivos. No entanto, essa repressão não ocorre sem custo. Ao suprimir esses impulsos, o sujeito experimenta neurose, angústia e culpa, sentimentos que são manifestações do sofrimento psíquico. Segundo Freud, a civilização exige que o indivíduo abrace um sofrimento contínuo em nome da ordem social, o que leva ao "mal-estar" do sujeito moderno. Ele escreve: "O sofrimento que a civilização impõe ao homem é inevitável. Mas é, ao mesmo tempo, o preço da sobrevivência da sociedade e da segurança coletiva."
A repressão de instintos e desejos, que é uma condição necessária para a convivência em sociedade, transforma o sofrimento em um aspecto estrutural da experiência humana. Freud reconhece que, embora a civilização traga avanços e conquistas, ela também acarreta um preço emocional significativo. O sofrimento, portanto, não é apenas uma consequência da violência ou da dor física, mas também da perda da liberdade instintiva e do constante conflito interno gerado pela vida civilizada.
Jacques Lacan, que retoma e expande as ideias de Freud, radicaliza a visão do sofrimento, considerando-o como uma estrutura essencial da subjetividade humana. Lacan postula que a dor não é uma condição circunstancial ou algo a ser evitado, mas algo constitutivo do sujeito. Para ele, o sofrimento emerge da própria constituição do sujeito, marcada pela falta. Desde o momento em que o sujeito é inserido na linguagem e entra em contato com o "Outro", ele é, de certa forma, "fendido" — isto é, o sujeito nunca pode ser completo, nunca pode atingir a plenitude de seu desejo.
O desejo lacaniano é sempre caracterizado pela perda, pela ausência e pela falta. O sujeito nunca pode se satisfazer plenamente, pois a sua existência é estruturada pela falta constitutiva do objeto do desejo. Essa falta se reflete no sofrimento, que não é apenas uma consequência dos conflitos internos, mas uma condição fundamental do ser humano. Lacan afirma que "não há sujeito sem sofrimento", porque o sofrimento não está restrito a momentos específicos de dor ou angústia, mas faz parte da estrutura fundamental do sujeito. Em outras palavras, o sofrimento é inerente ao processo de subjetivação, ao movimento do sujeito em direção ao reconhecimento de sua própria falta.
Outro conceito central em Lacan é o de "gozo" (jouissance), que ele associa diretamente ao sofrimento. O gozo, para Lacan, é uma forma paradoxal de prazer dolorosa que ultrapassa o princípio do prazer, que Freud descreveu como a tendência de buscar o prazer e evitar a dor. O gozo, por sua vez, está relacionado ao encontro do sujeito com o real, aquilo que escapa à simbolização e à linguagem. Ao se confrontar com o real, o sujeito experimenta uma forma de prazer que, simultaneamente, é dolorosa, porque o gozo está sempre imerso na impossibilidade de satisfação plena. Essa dialética entre prazer e dor, entre desejo e impossibilidade, é o que gera o sofrimento estrutural da subjetividade.
Tanto Freud quanto Lacan concordam que o sofrimento é uma característica fundamental da psique humana, mas enquanto Freud vê o sofrimento como uma consequência da repressão de impulsos e da necessidade de adaptação à sociedade, Lacan o interpreta como uma consequência da falta constitutiva do sujeito. Para Lacan, a repressão e a internalização de normas sociais não são apenas fontes de sofrimento, mas parte do processo mais amplo de constituição da subjetividade, na medida em que o sujeito é formado através da linguagem e do desejo que é sempre marcado pela perda ou ausência.
Ambos os teóricos concordam, no entanto, que o sofrimento não pode ser evitado ou erradicado, e que ele faz parte da própria condição humana. O sofrimento, portanto, não é uma anomalia ou uma falha da psique, mas um elemento estruturante da experiência humana. O sofrimento que Freud descreve como uma consequência do "mal-estar na civilização" se cruza com o conceito de Lacan de que a falta e o desejo são condições inevitáveis da subjetividade. A relação entre dor, desejo e falta é central tanto para a psicanálise freudiana quanto para a lacaniana, e reflete a complexidade do sofrimento na vida humana.
Assim, o sofrimento psíquico, para Freud e Lacan, não é apenas uma reação às adversidades externas ou às frustrações da vida cotidiana, mas uma parte integral da experiência subjetiva que define o próprio ser do sujeito. Ambos os teóricos oferecem uma visão do sofrimento que, longe de ser um problema a ser resolvido, deve ser entendido como um aspecto fundamental da existência humana, profundamente enraizado nas estruturas da psique e nas exigências sociais que moldam o indivíduo.
1.6.2 Existencialismo: Sofrimento e Liberdade
Na esteira da crise das grandes narrativas, o existencialismo coloca o sofrimento no centro da condição humana, articulando-o diretamente à experiência da liberdade e da responsabilidade. Para pensadores como Søren Kierkegaard (1813–1855), precursor do existencialismo, o sofrimento emerge da angústia inerente à liberdade individual e à inevitável decisão diante do sentido da existência. A angústia não é um mero desconforto, mas o “vértice da liberdade”, a dor de confrontar-se consigo mesmo e com a possibilidade da autenticidade ou do desespero.
O existencialismo coloca o sofrimento no centro da condição humana. Jean-Paul Sartre e Albert Camus destacam que a existência precede a essência, e que o ser humano está condenado à liberdade — o que implica angústia, responsabilidade e, muitas vezes, dor. Camus, em O mito de Sísifo, identifica no sofrimento e na revolta as marcas da lucidez trágica: “O que é o homem revoltado? Um homem que diz não. Mas se recusa, é porque a sua dor é intolerável” (CAMUS, 1995, p. 39). Para Camus, o desafio não é explicar o sofrimento, mas enfrentá-lo com dignidade, sem apelo a ilusões metafísicas.
Na filosofia, o sofrimento é tratado de diversas maneiras, especialmente no campo do existencialismo, que se debruça sobre a angústia e a busca por sentido. O sofrimento humano é apresentado como uma consequência inevitável da liberdade e da responsabilidade, que são centrais na filosofia de Jean-Paul Sartre. Em O Ser e o Nada (1943), Sartre analisa o sofrimento como uma expressão da tensão entre o ser e o desejo, sendo a angústia existencial uma consequência direta da liberdade de escolha. A busca incessante por sentido, em um mundo sem significados pré-estabelecidos, gera o sofrimento, pois o sujeito está condenado a dar sentido à sua existência, muitas vezes sem encontrar respostas satisfatórias.
Por outro lado, Arthur Schopenhauer, em O Mundo como Vontade e Representação (1819), adota uma visão mais pessimista sobre o sofrimento, considerando-o uma parte fundamental da vida humana. Segundo Schopenhauer, o sofrimento é causado pela vontade incessante, que nunca é satisfeita, pois o desejo humano é insaciável. Essa insatisfação contínua resulta em sofrimento, que é uma característica intrínseca à condição humana. Para Schopenhauer, a única maneira de mitigar esse sofrimento seria a negação da vontade, o que remeteria à renúncia do desejo e ao desprendimento do mundo material.
Simone Weil, em A Gravidade e a Graça (1947), oferece uma visão sobre o sofrimento como uma experiência espiritual. Para Weil, o sofrimento é uma condição necessária para a transcendência, uma vez que ele pode levar à compreensão mais profunda da existência e à união com o divino. O sofrimento, visto como uma espécie de provação, pode conduzir à purificação espiritual, permitindo ao ser humano reconhecer sua fragilidade e dependência do transcendente.
Martin Heidegger (1889–1976), por sua vez, não trata o sofrimento como um conceito isolado, mas como algo implicado na experiência fundamental do Dasein — o ser-aí humano — diante de sua própria finitude. Em Ser e tempo (1927), ele introduz a noção de angústia (Angst) como uma experiência ontológica distinta do medo: enquanto o medo se volta para algo determinado, a angústia revela o nada e desvela a total ausência de fundamento da existência. É nesse estado que o ser humano se confronta com a possibilidade mais própria de si: a morte. Assim, a dor existencial não decorre de um evento exterior, mas da estrutura mesma do ser: somos seres para a morte (Sein-zum-Tode), e é no reconhecimento dessa finitude que se abre a possibilidade de uma existência autêntica. O sofrimento, portanto, emerge como um efeito inevitável da experiência de liberdade e do confronto com o limite radical da existência.
Emmanuel Levinas (1906–1995), filósofo lituano radicado na França, propõe uma inflexão ética no debate sobre o sofrimento. Para ele, a dor do outro é o que irrompe e interrompe qualquer ontologia totalizante. Em obras como Totalidade e Infinito (1961), o sofrimento é abordado não como experiência interior, mas como clamor ético: o rosto do outro que sofre nos convoca à responsabilidade. Levinas rompe com a tradição que buscava compreender o sofrimento, deslocando a questão para o campo do cuidado e da responsabilidade irreparável. Não se trata de explicar a dor, mas de responder a ela. O sofrimento, assim, não é apenas uma condição existencial, mas o fundamento de uma ética do acolhimento.
Embora não seja propriamente um existencialista clássico, Martin Buber (1878–1965) oferece uma contribuição fundamental para ampliar a compreensão do sofrimento no contexto da liberdade e da existência. Sua filosofia do diálogo enfatiza a dimensão relacional do sofrimento humano, centrando-se na relação Eu-Tu, onde o encontro autêntico com o outro possibilita a superação da solidão existencial. Em Eu e tu (1923), Buber mostra que a existência plena se realiza no diálogo genuíno, que acolhe a vulnerabilidade e o sofrimento do outro, criando um espaço de comunhão e transcendência. O sofrimento, assim, não é apenas um fato individual, mas um acontecimento compartilhado que pode abrir caminho para a experiência da presença e do sentido.
1.6.3 Teoria Crítica: Sofrimento como Produto Social
A Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, particularmente nas obras de Theodor W. Adorno, Max Horkheimer e, em certa medida, Herbert Marcuse, propõe uma leitura contundente do sofrimento humano como um produto das estruturas sociais de dominação e alienação. O sofrimento não é apenas uma condição existencial ou subjetiva, mas um fenômeno que se enraíza nas contradições do sistema capitalista, nas formas de reificação da vida cotidiana e na mercantilização das relações humanas.
Em Dialética do Esclarecimento (1947), Adorno e Horkheimer argumentam que o projeto da razão iluminista, ao buscar emancipar a humanidade das amarras da superstição e da ignorância, paradoxalmente gerou novas formas de dominação por meio da racionalidade instrumental. Essa racionalidade, voltada à eficiência, ao cálculo e ao controle, contribuiu para a desumanização dos sujeitos e para a consolidação de um mundo onde o sofrimento se torna estrutural. A barbárie moderna, exemplificada pelo nazismo, é, para eles, a culminação lógica de um processo em que a razão é esvaziada de conteúdo ético.
Adorno, profundamente marcado pela experiência do exílio, do antissemitismo e da catástrofe do Holocausto, desenvolve uma ética da memória e da negatividade, na qual o sofrimento irredutível deve ser reconhecido como um imperativo ético inescapável. Em Mínima Moralia (1951), ele afirma que “a dor clama por expressão, mesmo quando não pode ser comunicada” (ADORNO, 1995, p. 35), apontando para a necessidade de dar voz ao sofrimento como uma forma de resistência ao silenciamento imposto pelas estruturas dominantes.
A estética, nesse sentido, ocupa um lugar privilegiado na crítica adorniana. A arte moderna, ao não oferecer consolo nem reconciliação, torna-se um espaço de elaboração simbólica do sofrimento que a sociedade tenta negar. A obra de arte que se recusa a ser consumida ou compreendida facilmente espelha o trauma social e revela a falência das promessas da modernidade.
Marcuse, em Eros e Civilização (1955), articula o sofrimento à repressão libidinal imposta pelas exigências de produtividade e conformismo da sociedade industrial. Ele vislumbra a possibilidade de uma subversão dessa lógica por meio da liberação das pulsões de vida e da imaginação estética, promovendo um horizonte utópico onde o sofrimento não seja mais necessário como instrumento de controle social.
Dessa forma, a Teoria Crítica denuncia a naturalização do sofrimento social, desmascarando suas origens históricas e ideológicas. Ao evidenciar como a dor humana é manipulada, instrumentalizada e frequentemente invisibilizada pelo sistema capitalista e por seus aparatos ideológicos, os frankfurtianos convocam a consciência crítica a resistir — não apenas por meio da denúncia racional, mas também pela sensibilidade estética e pela solidariedade ética.
1.6.4. Hannah Arendt e a Banalidade do Sofrimento
Hannah Arendt, uma das mais influentes filósofas políticas do século XX, oferece uma análise perturbadora e profunda do sofrimento político e social, particularmente em relação ao totalitarismo e à violência burocratizada. Sua reflexão sobre o sofrimento não se limita aos aspectos diretos da violência física, mas se expande para compreender a maneira pela qual a indiferença, a desumanização e a despersonalização das vítimas contribuem para a perpetuação do sofrimento em larga escala.
Em Eichmann em Jerusalém: Um Estudo sobre a Banalidade do Mal (1963), Arendt introduz o conceito da "banalidade do mal", que se refere à capacidade de indivíduos comuns, sem características ou intenções malignas evidentes, de cometer atrocidades quando inseridos em estruturas sociais e políticas desumanizantes. Este conceito foi desenvolvido a partir de sua observação do julgamento de Adolf Eichmann, um dos principais responsáveis pela logística do Holocausto. Eichmann, ao contrário do que se poderia esperar de um monstro ou psicopata, não era particularmente demoníaco, mas sim um burocrata medíocre e obediente, totalmente imerso em uma lógica de eficiência e cumprimento de ordens. Ele demonstrou uma falta de reflexão moral sobre suas ações, guiado pela adesão cega à autoridade e pelo desejo de ascensão na hierarquia do regime nazista.
Para Arendt, a banalidade do mal não significa que os crimes cometidos sejam triviais ou sem importância, mas sim que, em determinados contextos, indivíduos podem realizar atos terríveis sem um juízo moral ativo, muitas vezes porque perderam a capacidade de pensar criticamente sobre suas ações. Eichmann, em sua obediência à máquina burocrática do Estado nazista, representa uma espécie de desintegração da responsabilidade moral individual, na qual o sofrimento é causado não apenas por ações violentas, mas também pela indiferença institucionalizada.
Arendt argumenta que o sofrimento extremo não é uma mera consequência dos atos de violência explícita, mas também da “banalização” do sofrimento, ou seja, da transformação de crimes contra a humanidade em procedimentos burocráticos, desprovidos de um contexto ético ou humano. O sistema totalitário, segundo ela, cria condições nas quais os perpetradores podem ser transformados em "funcionários" de um projeto ideológico, disfarçando a crueldade de suas ações sob a fachada da obediência ao dever. Nessa lógica, os indivíduos responsáveis pelo sofrimento se distanciam moralmente de suas vítimas, tratando-as como números, objetos ou estatísticas, o que facilita a perpetuação da violência sem qualquer culpa ou arrependimento.
A ideia de que a banalidade do mal se reflete no sofrimento imposto pela indiferença organizacional é central na crítica de Arendt às estruturas totalitárias. Ela enfatiza que, em regimes autoritários, o sofrimento é frequentemente invisibilizado, neutralizado ou justificado por narrativas de eficiência, segurança ou necessidade política. Assim, a banalidade do sofrimento surge quando se cria uma esfera em que a dor humana deixa de ser reconhecida como um sofrimento legítimo, sendo tratada como um dado impessoal que pode ser manipulado em nome de objetivos maiores.
Arendt também explora a ideia de que a política, quando desprovida de valores humanos e morais, torna-se um terreno fértil para a produção de sofrimento em massa. Para ela, o totalitarismo representa o ápice da alienação política, onde a capacidade de julgamento crítico, fundamental para a vida pública e para a preservação da dignidade humana, é sistematicamente erradicada. O sofrimento, portanto, se torna uma consequência inevitável de um sistema que despersonaliza seus cidadãos e destrói a capacidade de discernir entre o certo e o errado, entre o humano e o desumano.
A reflexão de Arendt sobre o sofrimento não se limita apenas ao contexto do nazismo ou das atrocidades da Segunda Guerra Mundial, mas se estende a uma análise crítica das estruturas de poder modernas, onde a burocracia e a obediência a normas impessoais ainda podem ser usadas como justificativas para a perpetuação do sofrimento humano. Em sua visão, a luta contra o sofrimento não deve ser apenas uma resposta a atos violentos explícitos, mas também uma resistência à indiferença e à perda do juízo moral que tornam essas violências possíveis.
O pensamento de Hannah Arendt sobre a banalidade do sofrimento convida à reflexão sobre a responsabilidade ética e política dos indivíduos e das sociedades diante da dor humana, destacando a importância da memória, do julgamento moral e da capacidade de pensar de forma crítica e autônoma em tempos de crise. Para Arendt, a verdadeira humanidade só pode ser preservada quando reconhecemos e combatemos as formas de sofrimento, seja por violência direta ou pela indiferença organizada, que emergem em contextos políticos de despersonalização e desumanização.
2 O estudo do sofrimento como campo do conhecimento
O sofrimento constitui uma experiência humana fundamental, cuja complexidade desafia explicações unidimensionais. Por essa razão, tornou-se objeto de estudo de múltiplas disciplinas, cada qual oferecendo perspectivas e metodologias específicas para sua compreensão, representação e manejo. O entrecruzamento dessas abordagens revela o sofrimento como um campo de saber transdisciplinar, situado na confluência entre corpo, linguagem, cultura e subjetividade (Freud, 2010; Lacan, 2008; Schopenhauer, 2005).
Na psicanálise, o sofrimento é compreendido como expressão da dor emocional e dos conflitos inconscientes que atravessam a constituição da subjetividade. Os sintomas são tomados como forma de linguagem, revelando algo da história singular do sujeito, de seus desejos, perdas e impasses. O processo analítico se propõe a escutar essas manifestações, permitindo a elaboração psíquica do sofrimento, a partir da fala e da construção de sentido. Como afirmou Freud, “a lembrança do que foi esquecido e recalcado tem o efeito de um trauma” (Freud, 1917, p. 260), evidenciando que o sofrimento psíquico não é apenas um excesso, mas uma memória viva que insiste no corpo e na linguagem.
A medicina, por sua vez, dedica-se ao sofrimento físico, voltando-se ao tratamento da dor, das doenças e das limitações corporais. O foco recai sobre o diagnóstico, a terapêutica e os cuidados paliativos, mas também sobre a escuta e o reconhecimento da dor do outro, especialmente em contextos de terminalidade ou sofrimento crônico. René Leriche, renomado cirurgião e filósofo da medicina, afirmava que “a saúde é a vida no silêncio dos órgãos”, e que a medicina deve, antes de tudo, aprender a “escutar o sofrimento” (Leriche, 1936), compreendendo a dor não apenas como um sintoma, mas como experiência subjetiva e existencial.
A filosofia contribui ao tematizar o sofrimento como experiência existencial e questão ética. Desde os estóicos até os existencialistas, passando por pensadores como Schopenhauer, Nietzsche, Levinas e Ricoeur, o sofrimento é compreendido enquanto condição da finitude, do absurdo, da alteridade e da responsabilidade (Lacan, 2008; Schopenhauer, 2005; Nietzsche, 2007; Ricoeur, 1991).
Nos estudos teológicos e religiosos, o sofrimento é interpretado à luz de sistemas de crenças, simbolismos e práticas de fé. Questões como o problema do mal, a dor redentora, o sacrifício e a provação espiritual são centrais em tradições como o cristianismo, o budismo e o islamismo, que propõem modos específicos de compreender, suportar e ressignificar a dor (Weil, 2001).
A antropologia oferece contribuições essenciais ao investigar como o sofrimento é vivido, nomeado e respondido em diferentes contextos culturais. As formas de expressão da dor, os rituais de luto, as crenças sobre doença e cura, bem como os marcadores sociais da dor, são analisados como construções culturais que moldam a experiência do sofrer (Agamben, 2007).
A sociologia, por sua vez, evidencia as dimensões coletivas do sofrimento. Fatores como pobreza, desigualdade, violência estrutural, racismo, sexismo e exclusão social são identificados como fontes de sofrimento sistemático, que afetam populações inteiras de maneira desproporcional (Freud, 1930). Estuda-se, assim, como as estruturas sociais podem tanto agravar quanto mitigar a dor humana.
A neurociência investiga os correlatos biológicos do sofrimento, analisando os circuitos cerebrais envolvidos na dor física e emocional, as respostas neuroquímicas ao estresse e os efeitos de traumas sobre o funcionamento do sistema nervoso (NIETZSCHE, 2007). Ainda que seu enfoque seja mais técnico, contribui para uma compreensão integrada entre corpo e mente.
As artes e a literatura constituem campos privilegiados de expressão do sofrimento. Ao representar a dor em narrativas, imagens, performances ou músicas, essas linguagens criam espaços de partilha simbólica e de elaboração estética da experiência traumática, permitindo ao público reconhecer, refletir e ressignificar o sofrimento próprio e alheio (RICOEUR, 1991).
A ética médica e a bioética abordam o sofrimento em situações clínicas complexas, como cuidados de fim de vida, interrupção terapêutica, sofrimento fetal ou tratamentos que envolvem riscos elevados. Refletem sobre o direito ao alívio da dor, os limites da intervenção médica e a autonomia do paciente (Weil, 2001).
No campo jurídico, o sofrimento é considerado em diversas áreas: no direito penal, nas situações de violência e tortura; no direito civil, nas indenizações por danos morais; no direito do trabalho, em contextos de assédio e sofrimento laboral; e, especialmente, no campo dos direitos humanos, que busca proteger os indivíduos contra formas cruéis, degradantes ou desumanas de sofrimento (Freud, 2010). O direito opera, assim, como dispositivo normativo de reconhecimento e reparação da dor socialmente causada (Silva, 2009).
Essas múltiplas abordagens não apenas se complementam, mas também se desafiam mutuamente, abrindo espaço para um entendimento mais amplo e complexo do sofrimento. Trata-se de uma experiência ao mesmo tempo subjetiva e social, corporal e simbólica, contingente e estrutural — o que exige, portanto, uma escuta atenta, interdisciplinar e situada de suas manifestações (Agamben, 2007; Schopenhauer, 2005).
Quadro 01: Disciplinas que estudam o sofrimento – enfoques, autores e temporalidades
Fonte: Elaboração própria com base nas seguintes obras: Boas (2004); Bourdieu (1999); Durkheim (2000); Farmer (2005); Freud (2010); Grotius (2005); Guimarães Rosa (2001); Harvey (1992); Hipócrates (2006); James (2011); Kierkegaard (2011); Lacan (1998); Leriche (1951); Marx (2017); Minow (1998); Nietzsche (2013); Rogers (1977); Rosaldo (1993); Santos (1996); Sartre (1987); Schopenhauer (2005); Soja (1996); Tuan (1983); Turner (2005); Weber (2004); Woolf (2015); Cassin (1972); Arendt (1999); Bauman (2001); Beck (1997).
História das Teorias do Sofrimento: uma introdução crítica
A concepção de sofrimento acompanha a história da humanidade, atravessando filosofias, teologias e teorias sociais que buscaram explicá-lo, racionalizá-lo ou superá-lo. O percurso abaixo, ancorado em autores e obras-chave, apresenta uma genealogia do sofrimento, revelando sua historicidade e sua plasticidade enquanto experiência humana e construção simbólica.
Na Antiguidade, encontramos em Epicuro de Samos uma das primeiras tentativas sistemáticas de domesticar o sofrimento por meio da razão. Na Carta sobre a felicidade, ele propõe a ataraxia — a paz interior — como o bem maior, alcançável pela redução dos desejos desnecessários e pela superação dos medos infundados, sobretudo o da morte. Já Marco Aurélio, imperador estoico, propõe, em Meditações, uma ética da aceitação do destino, fundamentada no amor fati, a disposição para amar tudo aquilo que ocorre como parte da ordem natural do mundo.
Durante a Idade Média, o sofrimento é reinserido no campo teológico. Santo Agostinho, em A cidade de Deus, interpreta o sofrimento como consequência do pecado original, mas também como possibilidade de redenção espiritual. A dor, nesse contexto, ganha um valor transcendental, sendo modulada pela ideia de graça divina.
No século XVII, com a modernidade política, Thomas Hobbes introduz o sofrimento na origem do contrato social. Em Leviatã, ele descreve a condição humana fora do Estado como marcada pela guerra de todos contra todos, onde o medo da morte violenta — forma extrema de sofrimento — justifica a submissão ao soberano.
No século XVIII, Jean-Jacques Rousseau, em seu Discurso sobre a origem da desigualdade, oferece uma crítica à civilização, sustentando que a sociedade corrompe o homem natural e instaura novas formas de sofrimento. O mito do “bom selvagem” emerge como contraponto à artificialidade das dores sociais impostas pelo progresso.
O século XIX é um período especialmente denso para a reflexão sobre o sofrimento. Arthur Schopenhauer, em O mundo como vontade e representação, vê o sofrimento como estrutural à existência, pois nasce da “vontade cega” — um impulso irracional que nos condena à insatisfação. Karl Marx, por sua vez, desloca a análise para a economia política: no capitalismo, o sofrimento deriva da alienação do trabalhador e da exploração da força de trabalho, conceitos centrais em O capital. Friedrich Nietzsche, em Assim falou Zaratustra, reage tanto ao pessimismo quanto ao moralismo cristão, e propõe uma ética afirmativa da dor como potência: “o que não me mata, me fortalece”. A “vontade de poder” inclui o sofrimento como parte da afirmação trágica da vida.
Com a psicanálise, no início do século XX, o sofrimento passa a ser analisado como estruturante do sujeito. Sigmund Freud, especialmente em O mal-estar na civilização, articula o conflito entre pulsões (de vida e de morte) e repressões sociais como origem do sofrimento psíquico. A civilização, ao impor normas, exige a renúncia ao gozo e à satisfação pulsional. Em Além do princípio do prazer, Freud aprofunda a noção de pulsão de morte, fonte silenciosa e insistente de destruição interna. Jacques Lacan retoma Freud e reformula o sofrimento à luz da linguagem: o desejo é sempre faltoso e o sujeito é condenado ao gozo (jouissance) — uma forma de prazer que também implica dor.
Na vertente existencialista, o sofrimento emerge como experiência fundamental da existência. Martin Heidegger, em Ser e tempo, interpreta a angústia como reveladora da condição de ser-para-a-morte, expondo o sujeito à sua finitude radical. Albert Camus, no Mito de Sísifo, defende que reconhecer o absurdo da vida — sua falta de sentido — é o ponto de partida para uma revolta criadora. Já Jean-Paul Sartre, em O ser e o nada, analisa o sofrimento existencial que nasce da má-fé e da convivência com os outros, sintetizado na frase “o inferno são os outros”.
A teoria política crítica oferece outra chave de leitura: Hannah Arendt, em Eichmann em Jerusalém, analisa o sofrimento produzido pela burocratização do mal nos regimes totalitários. Seu conceito de “mal radical” revela que o sofrimento pode ser banalizado quando a responsabilidade moral se dilui.
A biopolítica, inaugurada por Michel Foucault em Vigiar e punir, desloca o foco para os modos como o poder incide sobre os corpos, regulando a vida e o sofrimento pela normatização e pelo controle. Giorgio Agamben, em Homo Sacer, identifica a “vida nua” — vidas expostas à morte sem valor político — como forma extrema de sofrimento político. Achille Mbembe, em Necropolítica, desenvolve esse diagnóstico mostrando como os Estados modernos exercem o poder de decidir quem pode viver e quem deve morrer — forma radical de sofrimento imposta por regimes coloniais, racistas e neoliberais.
Na contemporaneidade, Byung-Chul Han diagnostica um novo tipo de sofrimento: a exaustão subjetiva na sociedade do cansaço. Em vez de repressão, o sujeito hoje é explorado por meio da liberdade — ele se autoexplora em nome da performance, adoecendo psiquicamente sob a forma de depressão, burnout e ansiedade, formas de violência invisível que ele chama de “violência neuronal”.
Quadro 02: Sofrimento: Principais Teorias e Conceitos da Antiguidade à Contemporaneidade
Fonte: Elaboração própria com base nas seguintes obras: Epicuro (2018); Marco Aurélio (2006); Agostinho (1990); Hobbes (1974); Rousseau (1973); Schopenhauer (2005); Marx (2017); Nietzsche (2011); Freud (2010; 2011); Lacan (1998); Heidegger (2012); Camus (2011); Sartre (1987); Arendt (1999); Foucault (2005); Agamben (2002); Mbembe (2018); Han (2015).
Esse panorama histórico revela que o sofrimento é uma constante, mas suas formas, causas e sentidos variam conforme os contextos históricos, filosóficos, religiosos, políticos e subjetivos. A partir dessas referências, é possível não apenas compreender os modos como o sofrimento tem sido concebido, mas também questionar suas funções e implicações em nossa experiência contemporânea.
A luta dos movimentos sociais contra as múltiplas formas de sofrimento
Ao longo do século XX, diversos movimentos sociais emergiram como respostas às múltiplas formas de sofrimento e exclusão presentes nas sociedades modernas. Esses movimentos, que abrangem desde as lutas sindicais até as causas ambientais, refletem a mobilização coletiva contra injustiças estruturais, como exploração do trabalho, discriminação de gênero, racismo, pobreza, violência e degradação ambiental. Cada um deles contou com lideranças emblemáticas e surgiu em contextos históricos específicos, moldando-se às realidades locais e globais. A compreensão desses movimentos e dos sofrimentos enfrentados por seus sujeitos é fundamental para apreender os processos de resistência e transformação social que marcaram o século XX e continuam a influenciar as lutas contemporâneas por direitos humanos e justiça social.
Quadro 03: Principais Movimentos Sociais do Século XX: Contexto, Lideranças e Sofrimentos Enfrentados
Ao longo do século XX, diversos movimentos sociais emergiram como respostas às múltiplas formas de sofrimento e exclusão presentes nas sociedades modernas. Esses movimentos, que abrangem desde as lutas sindicais até as causas ambientais, refletem a mobilização coletiva contra injustiças estruturais, como exploração do trabalho, discriminação de gênero, racismo, pobreza, violência e degradação ambiental. A gramática desses conflitos sociais pode ser compreendida à luz da luta por reconhecimento, como propõe Axel Honneth (2003), ao afirmar que as experiências de injustiça estão profundamente enraizadas em sentimentos de desrespeito e negação de dignidade.
As mobilizações sindicais, por exemplo, surgem diante da exploração do trabalho e da alienação provocada pela lógica capitalista (Weil, 1979). A organização coletiva dos trabalhadores buscou, desde o final do século XIX, reivindicar melhores condições de vida frente a jornadas exaustivas, salários ínfimos e ambientes insalubres, constituindo uma resposta ética e política à degradação da experiência operária.
O movimento feminista, em suas diversas ondas, desafiou as estruturas patriarcais que mantêm as mulheres em posições de subordinação (Fraser, 2019). Ao denunciar a violência de gênero, a desigualdade salarial e a invisibilização das mulheres na esfera pública, o feminismo ampliou o escopo dos direitos humanos e introduziu novas categorias de análise e ação, como o gênero (Butler, 2003).
A luta pela proteção das infâncias, formalizada na Declaração de Genebra (1924) e consolidada com a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), evidencia como o sofrimento das crianças foi historicamente negligenciado. A emergência de um sujeito de direitos infantil representa, como observa Chakrabarty (2021), a ampliação da sensibilidade moral das sociedades modernas, ainda que marcada por fortes desigualdades entre centro e periferia.
Movimentos por melhores condições de vida e contra a pobreza urbana e rural articulam-se com reivindicações por saúde, moradia e educação, demandando do Estado políticas redistributivas e justiça social (Fraser, 2019). No mesmo sentido, os movimentos pelos direitos civis e humanos desafiaram o racismo estrutural, a segregação e a violência policial, como apontado por Fanon (2008), ao expor o sofrimento psíquico e social imposto às populações racializadas.
As mobilizações antiguerra, ambientais e pelos direitos dos trabalhadores informais ampliam ainda mais o campo de ação dos movimentos sociais. A luta contra os desastres ambientais e as guerras imperialistas inscreve-se em uma ética da responsabilidade compartilhada, conforme sugerem Haraway (2020) e Chakrabarty (2021), ao discutirem os efeitos da crise ecológica e climática na vida humana e não humana.
Cada movimento contou com lideranças emblemáticas e surgiu em contextos históricos específicos, moldando-se às realidades locais e globais. A compreensão desses movimentos e dos sofrimentos enfrentados por seus sujeitos é fundamental para apreender os processos de resistência e transformação social que marcaram o século XX e continuam a influenciar as lutas contemporâneas por direitos humanos e justiça social.
Movimentos sociais e o enfrentamento do sofrimento: uma análise crítica
Os movimentos sociais constituem uma resposta fundamental às diversas formas de sofrimento e opressão estruturais presentes nas sociedades contemporâneas. Cada movimento surge em um contexto histórico específico, enfrentando problemas que variam desde a exploração econômica até a discriminação social e a violência institucionalizada. A análise desses movimentos permite compreender como sujeitos coletivos mobilizam recursos, discursos e práticas para desafiar e reconfigurar as relações de poder.
No campo do movimento operário e sindical, as contribuições de Marx (1995) e Luxemburg destacam a exploração do trabalho e as condições degradantes enfrentadas pela classe trabalhadora, que motivaram mobilizações para a conquista de direitos trabalhistas básicos e a melhoria das condições de vida. Hobsbawm (1995) e Tilly (2004) aprofundam essa perspectiva, analisando a emergência e a evolução desses movimentos no contexto da industrialização capitalista.
O movimento feminista, por sua vez, enfrenta a longa história do patriarcado e da desigualdade de gênero, lutando contra a violência e a exclusão das mulheres do espaço público e dos direitos civis. Simone de Beauvoir (1949), em sua obra seminal O Segundo Sexo, problematiza a construção social da feminilidade e a opressão sistêmica. Autoras como Joan Scott (1998) e Freedman (2002) reforçam a importância de compreender o gênero como categoria analítica central para as ciências sociais e a história das lutas femininas.
A defesa dos direitos da criança também merece destaque, sobretudo diante da exploração e violência sofridas por menores em contextos de vulnerabilidade. O trabalho da UNICEF e teóricas como Lansdown (2011) reafirma o reconhecimento da criança como sujeito de direitos, especialmente após a aprovação da Convenção sobre os Direitos da Criança em 1989, que representa um marco internacional no campo dos direitos humanos.
Movimentos por melhores condições de vida, especialmente em áreas urbanas, evidenciam a persistência da pobreza, da exclusão e da precariedade habitacional. Frances Fox Piven (1977) e Mike Davis (2006) exploram a dinâmica das populações marginalizadas, demonstrando como a mobilização social emerge como resposta às condições adversas geradas pela desigualdade estrutural nas cidades contemporâneas.
No tocante ao movimento pelos direitos civis, a luta contra o racismo institucionalizado nos Estados Unidos exemplifica a persistência do sofrimento causado pela segregação e violência racial. As ações de líderes como Martin Luther King Jr. e Malcolm X se relacionam diretamente às análises de W.E.B. Du Bois (1903) e Michelle Alexander (2010), que contextualizam historicamente o racismo como mecanismo de exclusão social e controle.
Finalmente, o movimento LGBTQIA+ revela as múltiplas formas de discriminação e invisibilização que esses grupos enfrentam. A obra de Judith Butler (1990), que questiona as normas de gênero, e de Foucault (1975), que discute as relações entre poder e corpo, são fundamentais para compreender as estratégias de resistência e afirmação identitária que emergem nesse campo.
Assim, esses movimentos sociais expressam, cada um a seu modo, a tentativa de transformar sofrimento em luta política, buscando reconhecimento, direitos e justiça social. A interlocução com os autores mencionados permite um entendimento aprofundado dos processos históricos e sociais que moldam essas mobilizações e suas reivindicações.
Quadro 04: Movimentos sociais e o enfrentamento do sofrimento: protagonistas, contextos e referências teóricas
Fonte: Elaboração da autora com base em Hobsbawm (1995), Tilly (2004), Kropotkin (1892), De Beauvoir (1949), Scott (1998), Freedman (2002), UNICEF (1989), Lansdown (2011), Piven e Cloward (1977), Davis (2006), Harvey (2013), Du Bois (1903), Alexander (2010), Butler (1990) e Foucault (1975).
Os movimentos sociais no Brasil: sofrimento, resistência e reinvenção da política
A história dos movimentos sociais no Brasil é inseparável da história do sofrimento vivido pelas maiorias marginalizadas. Desde o século XIX, mas com maior densidade no século XX, as mobilizações populares emergem como formas coletivas de enfrentamento à opressão e de reivindicação de novos horizontes de existência. Em cada ciclo de lutas — seja por terra, por moradia, por educação, por saúde, por igualdade de gênero, racial e de classe — encontra-se uma gramática do sofrimento que se converte em ação política. Nesse sentido, o movimento social é também um dispositivo de elaboração coletiva da dor, da indignação e da esperança.
Durante a ditadura militar (1964–1985), por exemplo, movimentos como o das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), o Movimento Negro Unificado (MNU, fundado em 1978), o movimento feminista e as pastorais sociais constituíram-se como formas de resistência à repressão e às múltiplas formas de violência institucional. Tais movimentos atuaram não apenas na denúncia das violações de direitos, mas também na criação de espaços de acolhimento e construção subjetiva frente ao trauma social da repressão. A psicanálise social e a teoria crítica revelam como tais experiências coletivas podem atuar como instâncias de ressignificação do sofrimento e de reconstrução simbólica do sujeito político (Butler, 2006; Adorno, 1995).
Nos anos 1980 e 1990, com a redemocratização e a ascensão da nova Constituição de 1988, o Brasil viu emergir uma pluralidade de movimentos que expressavam as novas formas de sofrimento estrutural: pobreza extrema, exclusão urbana, racismo institucional, violências de gênero, e descaso com populações indígenas e quilombolas. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST, 1984), por exemplo, politiza a dor histórica da expropriação e da fome, transformando-a em ação coletiva organizada e com forte conteúdo pedagógico. O sofrimento deixa de ser apenas carência e passa a ser uma força crítica: aquilo que denuncia a violência da estrutura fundiária e exige uma reinvenção do campo político (Stedile, 2012).
No campo urbano, movimentos como o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), criado em 1997, denunciam a dor cotidiana da moradia precária, da desigualdade territorial e do abandono estatal. As ocupações não são apenas gestos materiais de resistência, mas também atos simbólicos de afirmação da dignidade e da pertença social. Como sublinha Judith Butler (2015), tornar-se visível no espaço público é já uma forma de luta contra o apagamento da existência.
Os movimentos indígenas, por sua vez, revelam um sofrimento ancestral — resultado de séculos de violência colonial, epistemicídio e deslocamentos forçados. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), fundada em 2005, tem se afirmado como voz fundamental na defesa dos direitos originários, da terra e da cultura, reatualizando saberes e formas de vida que desafiam a lógica predatória do capitalismo e do extrativismo. Nesse contexto, autores como Ailton Krenak (2019) e Davi Kopenawa (2015) oferecem não apenas denúncia, mas cosmologias alternativas ao sofrimento causado pela racionalidade ocidental.
O movimento feminista, em suas múltiplas vertentes, tornou-se uma das mais potentes formas de enfrentamento do sofrimento psíquico e social imposto pelo patriarcado. Desde Bertha Lutz e a conquista do voto feminino em 1932, passando pela luta das mulheres trabalhadoras e negras, até os recentes coletivos de juventude, o feminismo tem desvelado as violências cotidianas (domésticas, simbólicas, institucionais) e proposto novas formas de viver, sentir e se relacionar. A produção teórica de autoras como Lélia Gonzalez (1983) e Sueli Carneiro (2003) associa raça, gênero e classe como eixos estruturantes do sofrimento e da resistência.
Finalmente, movimentos mais recentes, como o movimento LGBTQIA+, os coletivos de juventude periférica, os fóruns de defesa das infâncias, os movimentos por saúde mental antimanicomial e as mobilizações antirracistas nas universidades públicas, expressam a radicalização contemporânea das lutas por reconhecimento. Em todos esses campos, o sofrimento não é apenas sintoma de uma ordem injusta, mas ponto de partida para práticas de cuidado, solidariedade e reinvenção coletiva do político.
Essas mobilizações, articuladas a partir da dor e da exclusão, constroem novos sentidos para a política. Elas mostram que o sofrimento, longe de paralisar, pode ser mobilizado como força ética, estética e transformadora. Reconhecer o sofrimento como fundamento de muitos movimentos sociais no Brasil é reconhecer também a centralidade da dignidade na luta por justiça.
Quadro 05: Movimentos sociais no Brasil: lutas contra o sofrimento e por direitos
Fonte: Elaboração própria com base em Fausto (1997), Antunes (2009), Saffioti (2004), Gonzalez (1982), Carneiro (2003), Almeida (2019), Krenak (2019), Cunha (1992), Fernandes (2000), Mançano (2005), Facchini (2005), Mott (2003), Demo (2002), Abramovay (2005), Acselrad (2004), Porto-Gonçalves (2006), Rolnik (2015), Maricato (2011).
Sofrimento como marca histórica: entre estruturas de dominação e resistências coletivas
O sofrimento, longe de ser apenas uma experiência individual ou um estado de alma, constitui um traço estruturante das formações sociais. No Brasil, ele atravessa a história como resultado de violências fundantes, sistemicamente naturalizadas e continuamente reproduzidas. A dor social, ao contrário de ser um efeito colateral da história, é aqui uma de suas engrenagens centrais: ela emerge dos modos como o poder se exerce sobre os corpos, os territórios e as subjetividades — com intensidade variável, mas persistente.
A colonização, a escravidão, o racismo estrutural, as desigualdades de classe e de gênero, a violência política e a necropolítica do presente inscrevem marcas duradouras no tecido social, afetando especialmente os grupos historicamente marginalizados. Esses atos não são meramente eventos do passado, mas dispositivos ativos de um presente que continua a produzir sofrimento como forma de governo e exclusão.
Entender o sofrimento no contexto brasileiro exige, portanto, uma abordagem histórica, crítica e interseccional, que reconheça os atravessamentos entre raça, classe, gênero e poder. Mais do que identificar eventos traumáticos, é preciso compreender como eles operam como matrizes de subjetivação e dominação. Nesse sentido, o quadro a seguir propõe uma cartografia dos principais atos históricos que produziram — e ainda produzem — efeitos de sofrimento na população brasileira, associados aos autores e autoras que pensaram criticamente esses processos.
Quadro 06: Atos e Efeitos do Sofrimento na População Brasileira
Fonte: Elaboração própria com base em obras e contribuições de:
Romero, S. (1995); Freyre, G. (2003); Fernandes, F. (2008); Nascimento, A. (2003); Gonzalez, L. (2020); Moura, C. (1988); Munanga, K. (2012); Prado Júnior, C. (2000); Ribeiro, D. (1995); Tavares, F. (2005); Ventura, Z. (2004); Souza, J. (2017); Chaui, M. (2000); Krenak, A. (2019); Viveiros de Castro, E. (2002); Silva, M. (2021); Segato, R. L. (2003); Dias, M. B. (2007); Mazzetti, C. (2021); Lima, N. T. (2022).
O quadro 06 demonstra que o sofrimento social e político no Brasil é resultado de processos históricos longos, estruturais e multifacetados, que atravessam diferentes épocas e contextos, impactando diversas camadas da população.
1. Colonização e Escravidão (1500 – século XIX):
Este período fundacional é marcado por uma violência profunda e duradoura. A escravidão imposta aos povos africanos e a genocídio dos povos indígenas deixaram marcas irreparáveis nas estruturas sociais, econômicas e culturais do país. Autores como Silvio Romero (1851–1914), Gilberto Freyre (1900–1987), Florestan Fernandes (1920–1995), Abdias do Nascimento (1914–2011) refletem sobre o racismo estrutural e a exclusão social que derivam desse período. O sofrimento aqui é material, físico, mas também simbólico, afetando identidades e direitos fundamentais.
Durante o período colonial e escravista, o sistema jurídico e político vigente no Brasil foi profundamente atravessado por normas legais e instituições que formalizaram e legitimaram o sofrimento de povos africanos escravizados, indígenas e populações pobres. Esse quadro de violência institucionalizada foi amparado por leis e práticas que organizaram a desigualdade racial, étnica e social, consolidando um sistema de dominação duradouro, cujos efeitos se estendem até o presente.
Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas
Desde os primeiros séculos da colonização portuguesa, o Brasil foi regido pelas Ordenações do Reino, como as Ordenações Afonsinas (1446), Manuelinas (1512) e Filipinas (1603). Essas codificações estabeleceram uma base jurídica para o funcionamento da sociedade colonial e, especialmente nas Filipinas, consolidaram o regime escravocrata.
→ As Ordenações Filipinas, em particular, legitimaram a escravidão africana e a repressão às culturas e crenças indígenas, criminalizando práticas religiosas não católicas e reforçando a hierarquia colonial.
Lei de Terras (Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850)
Esta lei foi um divisor de águas na normatização do sofrimento socioeconômico no Brasil. Ela proibiu o acesso gratuito à terra por parte da população negra recém-liberta e dos povos indígenas, estabelecendo a compra como única forma legítima de acesso à terra.
→ Com isso, instituiu-se um modelo excludente de propriedade fundiária, que consolidou o racismo estrutural e a marginalização de camadas populares.
→ A Lei de Terras também precedeu a Lei Eusébio de Queirós, mostrando que a abolição formal da escravidão já era planejada sob bases de exclusão.
Código Criminal do Império (1830)
O Código Criminal brasileiro de 1830, embora não abolisse a escravidão, representou um marco legal de institucionalização da desigualdade. Estabeleceu normas que puniam severamente condutas de escravizados e pobres, ao mesmo tempo que protegia os direitos dos senhores.
→ A seletividade penal era evidente, criminalizando sobretudo atos de insubordinação de negros e indígenas.
Código de Posturas Municipais (diversos, século XIX)
Muitas cidades brasileiras elaboraram Códigos de Posturas que restringiam o deslocamento, o trabalho autônomo e as manifestações culturais de negros e indígenas.
→ Essas normas disciplinavam os corpos e os espaços, controlando o comportamento de populações consideradas “perigosas” ou “indesejáveis”.
Abolição Formal sem Reparações: Lei Áurea (Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888)
A Lei Áurea extinguiu a escravidão formal no Brasil, mas sem qualquer política de reparação, inclusão social ou garantia de direitos fundamentais.
→ Essa ausência de medidas compensatórias perpetuou o sofrimento das populações negras, mantendo-as à margem do sistema político, econômico e educacional brasileiro.
2. Abolição da Escravidão (1888):
Embora tenha representado a libertação formal dos escravizados, a Lei Áurea não garantiu inclusão social, nem reparação às vítimas do sistema escravocrata. A persistência do racismo, a marginalização econômica e social dos negros e a desigualdade permanecem um legado doloroso, destacado por autoras como Lélia Gonzalez e Clóvis Moura. O sofrimento, portanto, se transforma, passando a se manifestar em exclusão estrutural e desigualdade.
Lei Áurea (Lei nº 3.353/1888): “É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil.”
A simplicidade do texto revela o silêncio do Estado diante da urgência de enfrentar os efeitos de mais de três séculos de escravidão. Ao não oferecer mecanismos de integração (como reforma agrária, escolarização ou moradia), o Estado manteve os ex-escravizados em condições de vulnerabilidade extrema, abrindo caminho para a favelização, a precarização do trabalho e a marginalização racial.
3. República Velha e Manutenção das Elites (1889-1930):
A construção da República no Brasil manteve as elites agrárias no poder, excluindo amplos setores populares do processo político e econômico. Essa exclusão estrutural se traduz em sofrimento social e violência, principalmente em áreas rurais. Autores como Caio Prado Júnior apontam para as desigualdades como resultado dessa estrutura. O sofrimento aqui é uma consequência direta da marginalização política e econômica.
4. Ditadura Militar (1964-1985):
Um dos momentos mais violentos da história recente brasileira, marcado por repressão política, censura e violações de direitos humanos, incluindo torturas e desaparecimentos. Esse período simboliza o sofrimento psíquico, social e político de uma população que viu negados seus direitos básicos. A produção literária e acadêmica sobre esse período, como a de Zuenir Ventura, ressalta a importância da memória para a superação do trauma coletivo.
5. Neoliberalismo e Desigualdade Contemporânea (1990 – presente):
A transição para políticas neoliberais aprofundou as desigualdades econômicas e sociais no Brasil. O aumento da pobreza, do desemprego e da violência urbana são manifestações contemporâneas do sofrimento estrutural. Autores como Jessé Souza discutem as novas formas de exclusão e a reprodução das desigualdades sociais, indicando que o sofrimento, embora tenha mudado de forma, persiste e se intensifica.
6. Violência contra Populações Indígenas (Anos 2000 – 2020):
A luta territorial e os conflitos com interesses econômicos intensificam o sofrimento dos povos originários. O genocídio cultural e físico desses grupos representa uma das faces mais graves da violência estrutural. Autores como Ailton Krenak e Eduardo Viveiros de Castro refletem sobre a resistência e a dor desses povos, alertando para a urgência do reconhecimento e da reparação.
7. Violência de Gênero (Anos 2010 – presente):
O sofrimento específico de mulheres vítimas de violência física e simbólica tem ganhado destaque no debate público e acadêmico. A atuação de autoras como Rita Segato contribui para a compreensão do sofrimento ligado à opressão patriarcal e à luta por direitos e reconhecimento.
8. Pandemia COVID-19 (2020-2022):
Um evento recente que potencializou diversas formas de sofrimento, com milhares de mortes, colapso na saúde pública e agravamento da pobreza. O sofrimento aqui é multidimensional, atingindo física, emocional e socialmente a população. Pesquisadoras como Nísia Trindade Lima têm destacado a importância da resposta estatal e da solidariedade social para mitigar esses impactos.
O quadro 06 revela que o sofrimento na história brasileira está intimamente ligado às relações de poder, exclusão e violência. Cada ato listado não apenas provocou dor imediata, mas também gerou consequências duradouras que continuam a moldar as condições de vida e a experiência subjetiva de inúmeros brasileiros.
Além disso, a análise interdisciplinar — com autores das ciências sociais, filosofia, antropologia e direitos humanos — é fundamental para entender as múltiplas dimensões do sofrimento, que vai do corporal ao simbólico, do individual ao coletivo.
O reconhecimento dessas raízes históricas e estruturais do sofrimento é essencial para que políticas públicas e movimentos sociais possam atuar de forma eficaz na promoção da justiça social, reparação e inclusão.
Quadro 07: Dados e Fontes Detalhadas sobre Mortes e Sofrimento no Brasil
Fonte: Elaboração propria com base em APIB (2023), CNV (2014), Carvalho (2001), Cunha (1992), Fiocruz (2021), FBSP (2023), Hemming (1978), Klein (2010), MS (2022) e ONU Mulheres (2022).
A produção jurídica e institucional do sofrimento dos corpos negros no Brasil
A história do sofrimento dos corpos negros no Brasil não pode ser compreendida à parte do ordenamento jurídico que, ao longo dos séculos, legitimou, organizou e reproduziu as violências raciais. O racismo brasileiro não é apenas um legado colonial; ele é, sobretudo, um dispositivo estrutural, tecido nas instituições, nas leis e nos saberes oficiais que definiram o lugar social do negro como subalterno, perigoso, descartável ou folclórico. A partir da lógica escravocrata e colonial, criou-se um sistema de sofrimento racializado que sobreviveu à abolição e se reconfigurou nas dinâmicas modernas de exclusão.
No período colonial, o tráfico atlântico de pessoas escravizadas foi organizado e regulado pela Coroa portuguesa por meio de alvarás régios e regimentos como o de Tomé de Souza (1548), que autorizavam a entrada forçada de africanos no território. Ao longo de três séculos, os corpos negros foram mercantilizados em escala massiva, sem qualquer reconhecimento de sua humanidade ou de suas famílias, sistematicamente desmembradas nos mercados de venda. A escravidão, oficialmente respaldada por documentos como o Código Filipino (1603) e a Lei de Terras (1850), estruturou não apenas a economia, mas a forma como o Estado brasileiro passou a organizar a cidadania: como privilégio branco e letrado.
A violência física e simbólica contra negros era garantida pelo Estado. O Código Criminal do Império (1830) e as Ordenações Filipinas toleravam castigos corporais e a disciplina violenta dos cativos. A ausência de qualquer proteção legal à mulher negra também permitia que o estupro e a violência sexual fossem práticas constantes e impunes, legitimadas por uma cultura jurídica que não reconhecia as mulheres negras como sujeitos de direito (Davis, 1981; Gonzalez, 1983).
Com a abolição formal da escravidão em 1888, sem qualquer compensação material ou política para os ex-escravizados, o Estado passou a implementar leis que criminalizavam a presença negra nos espaços urbanos, como a Lei da Vadiagem (1890) e o novo Código Penal da República. As promessas republicanas não incluíram a população negra. Não houve reforma agrária, acesso sistemático à educação ou políticas de reparação. A cidadania negra foi adiada — e o sofrimento, recriado sob novas formas.
No século XX, a perpetuação do racismo institucional ganhou novas expressões: práticas culturais e religiosas afro-brasileiras foram perseguidas com base no Código Penal de 1940, que enquadrava o candomblé e a umbanda como “curandeirismo”. Simultaneamente, consolidava-se o mito da democracia racial, que, ao negar o racismo, desautorizava as denúncias das violências cotidianas sofridas pela população negra (Munanga, 2006; Nascimento, 1989).
No campo da segurança pública, o Brasil desenvolveu uma política de controle baseada na lógica da eliminação: a guerra às drogas, iniciada na década de 1980 e consolidada com a Lei nº 11.343/2006, ampliou a repressão às favelas e periferias, fazendo da juventude negra o principal alvo da violência policial e do encarceramento em massa. Esse processo é hoje compreendido como um genocídio da população negra, sustentado por políticas públicas que articulam racismo, desigualdade e militarização da vida (Werneck, 2016; Cerqueira et al., 2019).
Mesmo após a promulgação da Constituição Federal de 1988, que reconhece o racismo como crime inafiançável (art. 5º, XLII), o sofrimento negro continuou sendo negligenciado ou silenciado. O marco legal foi importante, mas a efetivação dos direitos ainda é desigual. Apenas no século XXI surgiram políticas de ação afirmativa, como a Lei nº 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira, e a Lei de Cotas (nº 12.711/2012), que impulsionou o acesso de negros ao ensino superior. Tais medidas representam não o fim da desigualdade, mas a emergência de uma luta por reconhecimento, como diria Fraser (2006), que recoloca a dor histórica como tema central da disputa por cidadania.
Por fim, é preciso destacar o papel dos movimentos negros, das comunidades quilombolas, das mulheres negras intelectuais, artistas e militantes que, desde o século XVI até hoje, atuam na reinvenção do sofrimento como linguagem política. Seus saberes, práticas e resistências desafiam as formas jurídicas que institucionalizaram a dor e propõem outras epistemologias de cuidado, justiça e memória.
Assim, o sofrimento dos corpos negros no Brasil não é resultado de fracassos individuais ou acidentes históricos, mas de um sistema persistente de opressão, juridicamente organizado e simbolicamente reproduzido. Compreender esse processo é condição fundamental para construir políticas emancipatórias que rompam com o ciclo de dor e exclusão e devolvam à população negra o direito à dignidade, à memória e à liberdade.
Quadro 08 : A produção histórica de sofrimento nos corpos negros no Brasil — sistemas legais e dispositivos institucionais
Fonte: Elaboração da autora com base em Alencastro (2000), Conrad (1985), Mattoso (2004), Schwarcz (2019), Reis (1996), Carvalho (2020), Gomes (2005), Ratty (2011), Gonzalez (1983), Davis (1981), Bento (2002), Hunnicutt (1997), Lima (2017), Nascimento (1989), Munanga (2006), Hall (2003), Werneck (2016), Cerqueira et al. (2019), Almeida (2019), Carneiro (2003), Fraser (2006) e Kilomba (2019).
Histórico do Sofrimento Indígena no Brasil: Entre Violências Institucionais e Formas de Resistência
O sofrimento dos povos indígenas no Brasil configura-se como um fenômeno histórico estruturado por múltiplas formas de violência, institucionalizadas ao longo dos séculos por meio de normas legais, políticas públicas e práticas sociais que negam direitos básicos e impõem exclusão e apagamento cultural. O quadro que sintetiza os marcos legais, formas de violência e resistências indígenas permite uma reflexão aprofundada sobre a historicidade desse sofrimento e sua persistência até os dias atuais.
No período colonial (1500–1822), o sofrimento já se manifesta de forma contundente com a escravização direta ou disfarçada, os deslocamentos forçados e o extermínio físico e cultural, sustentados por documentos oficiais como as Cartas Régias e o Diretório dos Índios. A imposição religiosa e o apagamento linguístico, propagados pela Companhia de Jesus e pela legislação missionária, marcam uma violência simbólica profunda que visou a deslegitimação dos modos de vida indígenas. No entanto, mesmo nesse contexto adverso, emergiram formas de resistência como as rebeliões e a manutenção secreta de línguas e rituais, apontando para a resiliência desses povos diante da violência colonial.
A continuidade do sofrimento pode ser observada no Império (1822–1889), período em que o Código Criminal do Império e as políticas indigenistas tutelares intensificaram a negação da cidadania indígena, fortalecendo o paternalismo estatal e a usurpação territorial para fins econômicos. A invisibilização jurídica e social dos indígenas configurou uma violência estrutural que limitava a autonomia e o reconhecimento desses sujeitos como cidadãos plenos. Tal cenário se manteve e se agravou na Primeira República e na Era Vargas (1889–1945), com a criação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e o reconhecimento dos indígenas como “relativamente incapazes” no Código Civil de 1916, permitindo práticas de internamento forçado e documentadas violações de direitos no Relatório Figueiredo (1967). A militarização das terras indígenas e as denúncias públicas feitas por figuras como Marechal Rondon ilustram a tensão entre violência institucional e esforços isolados de proteção.
Durante a Ditadura Civil-Militar (1964–1985), o sofrimento indígena assume novas dimensões com o incentivo a grandes obras nos territórios indígenas, resultando em genocídios silenciosos por doenças e deslocamentos, perdas territoriais significativas e mortes por contaminação e conflitos armados. O Estatuto do Índio (1973) não conseguiu conter a violência, ainda que tenha fomentado a mobilização de organizações indígenas, que ganharam espaço em conferências nacionais e internacionais, apontando para um processo emergente de organização política e reivindicação de direitos.
Com a redemocratização e a promulgação da Constituição de 1988, incorporando artigos específicos para proteção dos direitos indígenas, e a ratificação da Convenção 169 da OIT, há um avanço formal no reconhecimento dos povos indígenas. Todavia, a morosidade na demarcação de terras, as pressões políticas de ruralistas, o racismo institucional e a negligência do Estado em políticas de saúde e educação perpetuam o sofrimento contemporâneo. Na atualidade, marcado por conflitos como o enfrentamento ao Marco Temporal, invasões ilegais e a contaminação por mercúrio, o sofrimento dos povos indígenas persiste em contextos de abandono estatal e violência contínua. Simultaneamente, lideranças indígenas e movimentos sociais ampliam suas vozes, utilizando desde as mídias digitais até a participação institucional para reivindicar direitos, denunciar violências e resistir.
Dessa forma, o sofrimento indígena no Brasil não pode ser compreendido apenas como um efeito colateral da história, mas como resultado de um processo estrutural e sistemático de exclusão, violência e apagamento. Ao mesmo tempo, a persistência das resistências aponta para a existência de uma força política e cultural que desafia o sofrimento, buscando transformar as condições de vida e garantir o reconhecimento e a reparação. Essa dupla dimensão do sofrimento — como violência imposta e como locus de luta e reinvenção — deve estar no centro da análise crítica dos direitos humanos e das políticas públicas que envolvem os povos indígenas no Brasil.
Quadro 09 – O sofrimento dos povos indígenas no Brasil: marcos legais, formas de violência e resistência
Fonte: Elaboração da autora com base em Cunha (1992), Ramos (1998), Ribeiro (1996), Oliveira Filho (2006), Figueiredo (1967), APIB (2023), Guajajara e Xakriabá (2022), Constituição Federal (1988), OIT (2004), ADPF 709 (2020).
O sofrimento das mulheres no mundo: entre a violência estrutural e a potência política
O sofrimento das mulheres, embora frequentemente tratado como experiência privada ou naturalizada, constitui-se historicamente como expressão concreta de estruturas de dominação, exclusão e violência. Longe de ser homogêneo ou puramente individual, esse sofrimento deve ser compreendido à luz de múltiplas determinações — patriarcais, raciais, econômicas, políticas, culturais e subjetivas — que atravessam a vida das mulheres de maneira interseccional e persistente. Em distintas partes do mundo, mulheres compartilham formas específicas de dor e resistência, resultado de relações sociais que subordinam seus corpos, desautorizam suas vozes e limitam seus direitos.
Este texto busca mapear algumas das principais dimensões do sofrimento das mulheres no mundo contemporâneo, sistematizando suas causas, manifestações e possibilidades de enfrentamento. A partir de uma abordagem crítica e multidisciplinar, o objetivo é evidenciar como esse sofrimento não apenas denuncia as violências simbólicas e materiais estruturantes das sociedades patriarcais e coloniais, mas também convoca à construção de alternativas ético-políticas baseadas na justiça, na escuta e no reconhecimento das mulheres como sujeitos históricos e políticos.
Quadro 10: Dimensões do Sofrimento das Mulheres no Mundo
Fonte: Elaboração própria com base em BBeauvoir (1949), Butler (2004), Segato (2014, 2016), Hooks (2000, 1992), ONU Mulheres (2020, 2021), WHO (2013, 2020), CEDAW, Fraser (2016), Hirata (2007), OIT (2022), IBGE (2023), Davis (1981), Carneiro (2003), Kilomba (2019), Gonzalez (1982), ALICE/UE (2016), PNUD (2023), Ribeiro (2017), CEPAL (2022), Federici (2019), Corrêa & Parker (2008), Bordo (1993), Wolf (1991), Nogueira (2011), Cohen (2001), Benjamin (1988), Nascimento (2019) e Roudinesco (2000).
O quadro 10 apresentado organiza o sofrimento das mulheres em múltiplas dimensões que se inter-relacionam, revelando a complexidade e a historicidade desse fenômeno. Cada dimensão corresponde a fontes específicas de opressão e violência, expressões particulares do sofrimento e estratégias de resistência que emergem de contextos políticos, sociais e culturais distintos.
A dimensão patriarcal e simbólica constitui a base estruturante desse sofrimento, na medida em que o patriarcado se expressa não apenas em práticas concretas, mas também em discursos morais, religiosos e mitológicos que culpabilizam, silenciam e invisibilizam as mulheres. Simone de Beauvoir (1949) já apontava a construção da mulher como “Outro” dentro de uma ordem simbólica dominada pelo masculino, ideia ampliada por Judith Butler (2004) ao destacar a performatividade de gênero e por Rita Segato (2014), que analisa a violência simbólica atrelada ao controle dos corpos femininos. Essa dimensão é fundamental para compreender as múltiplas formas de opressão que atravessam a vida das mulheres e que se perpetuam via normas sociais internalizadas (hooks, 2000).
A violência de gênero, destacada como uma dimensão autônoma, expressa-se em níveis extremos como o feminicídio, o estupro e a violência doméstica. O sofrimento resultante manifesta-se em traumas profundos, medo constante e retraimento social. Dados da Organização Mundial da Saúde (WHO, 2013) e relatórios da ONU Mulheres (2021) mostram que esses tipos de violência são fenômenos globais e estruturais, reforçados por sistemas legais e sociais insuficientes para proteger as vítimas (CEDAW). As mobilizações contemporâneas, como o movimento #MeToo, são exemplos concretos de resistência coletiva e denúncia pública dessas violências (Segato, 2016).
No campo econômico e laboral, as mulheres enfrentam uma dupla exploração: pela desigualdade salarial e pela sobrecarga do trabalho doméstico e reprodutivo não remunerado. Fraser (2016) destaca que a economia do cuidado é invisibilizada nas análises econômicas tradicionais, o que reforça a exclusão das mulheres do reconhecimento pleno em termos de trabalho e direitos. As contribuições de Hirata (2007) sobre a informalidade do trabalho feminino, e dados recentes da Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2022) e do IBGE (2023) apontam para a precarização crescente das condições laborais, que geram sofrimento físico e psíquico, porém também resistência por meio de sindicalismo feminista e políticas públicas de redistribuição.
A dimensão racial e colonial evidencia as intersecções entre gênero, raça e classe. O sofrimento das mulheres negras e indígenas é multifacetado, marcado pela marginalização múltipla e pela violência institucionalizada. Autoras como Angela Davis (1981) e Manuela Carneiro da Cunha (2003) oferecem análises fundamentais para compreender como o racismo estrutural e as heranças coloniais atravessam o corpo e a subjetividade dessas mulheres. A intelectualidade negra e indígena, representada por Kilomba (2019) e Gonzalez (1982), constrói uma resistência epistemológica que articula políticas afirmativas e alianças antirracistas, desafiando a exclusão e o silenciamento.
No plano político e representacional, a sub-representação das mulheres em espaços de poder e a violência política de gênero configuram uma forma de sofrimento que se expressa pelo apagamento e assédio institucional. Organizações como UN Women (2020) e pesquisas do PNUD (2023) indicam que cotas de gênero e parlamentos feministas são estratégias essenciais para reverter essa exclusão. Autoras brasileiras como Ribeiro (2017) ressaltam a importância do fortalecimento político feminino como resistência às práticas discriminatórias e à violência simbólica.
A dimensão reprodutiva e corporal destaca o controle social sobre os corpos das mulheres, manifestado pela criminalização do aborto, mutilação genital e esterilização forçada. O sofrimento físico e psíquico que disso decorre é documentado por instituições como a Organização Mundial da Saúde (WHO, 2020) e a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL, 2022). A obra de Federici (2019) denuncia o corpo feminino como campo de disputa política e controle, enquanto Corrêa e Parker (2008) enfatizam a luta pelos direitos sexuais e reprodutivos como central para a autonomia feminina.
No âmbito cultural e midiático, a objetificação e os padrões estéticos opressivos contribuem para transtornos alimentares e sofrimento psíquico, deteriorando a autoimagem das mulheres. Bordo (1993) e Wolf (1991) são referências clássicas na crítica a esses fenômenos, enquanto hooks (1992) e Nogueira (2011) propõem a utilização da mídia feminista e da arte como instrumentos de denúncia e valorização da diversidade corporal, promovendo formas de resistência simbólica e cultural.
Finalmente, a dimensão psíquica e subjetiva evidencia como o sofrimento é também uma experiência internalizada, transmitida transgeracionalmente e marcada por depressão, ansiedade e angústia existencial. A psicanálise crítica, representada por Cohen (2001) e Roudinesco (2000), junto às terapias feministas e práticas de escuta empática defendidas por Benjamin (1988) e Nascimento (2019), constituem caminhos fundamentais para acolher e superar essas dores profundas, ampliando a capacidade de resistência individual e coletiva.
Em suma, as múltiplas dimensões do sofrimento feminino, articuladas entre si, reforçam a necessidade de abordagens interseccionais e políticas integradas, que reconheçam as especificidades históricas e culturais, ao mesmo tempo que potenciem a solidariedade, o empoderamento e a afirmação dos direitos humanos. O quadro e sua análise revelam que o sofrimento das mulheres não é um dado natural ou individual, mas sim resultado de estruturas sociais complexas, cuja desconstrução passa necessariamente pela luta feminista, pelos movimentos sociais e por políticas públicas inclusivas e transformadoras.
Análise Integrada dos Quadros sobre o Sofrimento
O estudo do sofrimento, conforme demonstrado pelos quadros de um a 10 apresentados, revela-se um campo interdisciplinar, multifacetado e fundamental para compreender as diversas expressões da dor humana, suas causas, suas interpretações e os caminhos possíveis para o enfrentamento e a resistência. A riqueza dos dados e das abordagens sistematizadas nos quadros indica que o sofrimento não é um fenômeno isolado ou meramente individual, mas um constructo social, histórico e político, atravessado por desigualdades e disputas de poder.
O Quadro 01 destaca as múltiplas disciplinas que se dedicam ao estudo do sofrimento — da filosofia e história à psicanálise e ciências sociais — indicando que as diferentes temporalidades e perspectivas se complementam para oferecer uma compreensão mais ampla e crítica. Essa interdisciplinaridade é essencial para captar a complexidade do sofrimento em suas diversas formas.
O Quadro 02 aprofunda essa análise com as principais teorias do sofrimento desde a Antiguidade, evidenciando que a dor foi interpretada como castigo divino, tragédia, síntoma moral ou social, e, mais recentemente, como fenômeno estrutural e subjetivo. A genealogia crítica das ideias sobre sofrimento mostra que essas interpretações refletem regimes simbólicos e condições históricas específicas, o que orienta a necessidade de contextualizar sempre as experiências de dor.
Nos Quadros 03, 04 e 05, o enfoque nos movimentos sociais evidencia que o sofrimento social mobiliza lutas políticas, que buscam reconhecer, denunciar e transformar as condições que o produzem. As lideranças e as referências teóricas apresentadas apontam para o papel central da ação coletiva na construção de direitos e na resistência às múltiplas formas de opressão. O Brasil, destacado no Quadro 05, mostra que as lutas sociais locais dialogam com demandas universais, enfrentando o sofrimento associado a desigualdades raciais, econômicas, de gênero e territoriais.
O sofrimento como marca histórica das estruturas de dominação fica evidente no Quadro 06, que traz dados sobre a população brasileira, demonstrando como atos e efeitos da violência, exclusão e desproteção impactam coletivamente, reforçando ciclos de sofrimento. Esse quadro conecta as análises teóricas com a realidade concreta, evidenciando a urgência de políticas públicas efetivas e justiça social.
A produção jurídica e institucional do sofrimento, especialmente dos corpos negros, é aprofundada nos Quadros 07 e 08, que revelam a historicidade das leis e dispositivos institucionais que legitimaram a violência e a exclusão. Essa perspectiva crítica é fundamental para desnaturalizar as condições de sofrimento e reconhecer sua origem em sistemas legais e sociais excludentes.
O sofrimento dos povos indígenas, apresentado no Quadro 09, reforça a dimensão interseccional e cultural das dores vividas, mostrando as violências específicas e as formas de resistência desses povos, cuja luta também envolve a proteção de direitos territoriais, culturais e coletivos.
Finalmente, o Quadro 10 sobre o sofrimento das mulheres no mundo sintetiza as múltiplas dimensões da dor feminina, entrelaçando violência estrutural, simbólica e material com as potências políticas do feminismo e das resistências coletivas. Essa dimensão é crucial para compreender as dinâmicas específicas que atravessam o gênero e se expressam em diversas esferas da vida social.
Assim, os quadros apresentados constituem um percurso sistemático e aprofundado para compreender o sofrimento em sua diversidade e complexidade, revelando que ele é simultaneamente experiência individual e fenômeno social. Eles expõem a historicidade das formas de sofrimento, bem como as estratégias de enfrentamento, que vão das resistências culturais e políticas às transformações institucionais.
Compreender o sofrimento como resultado de estruturas sociais, políticas e culturais permite superar leituras reducionistas e essenciais, apontando para a necessidade de políticas integradas e éticas que valorizem a escuta, o reconhecimento e a solidariedade. A articulação entre o conhecimento acadêmico e as lutas sociais demonstra que o enfrentamento do sofrimento está intrinsecamente ligado à afirmação dos direitos humanos, à justiça social e à construção de sociedades plurais e democráticas.
A análise dos quadros reafirma a centralidade das populações historicamente marginalizadas — mulheres, negros, indígenas e outros grupos — tanto na experiência do sofrimento quanto nas práticas de resistência e transformação social. Reconhecer essa centralidade é um passo fundamental para garantir que as respostas ao sofrimento não se limitem ao cuidado individualizado, mas envolvam mudanças estruturais que promovam dignidade e igualdade.
Assim, o estudo do sofrimento emerge não apenas como um campo acadêmico, mas como um compromisso ético-político, que convida à reflexão crítica e à ação coletiva para a construção de um mundo menos violento, mais justo e solidário.
3 Sofrimento: Uma Perspectiva Psicanalítica
A psicanálise, desde sua fundação por Sigmund Freud, tem se debruçado sobre as profundezas do sofrimento humano, buscando entender suas origens, suas manifestações e suas implicações no universo psíquico. Na psicanálise, o sofrimento não é apenas um fenômeno físico ou social, mas um componente central da dinâmica psíquica, que permeia a estrutura do sujeito e sua relação com o mundo externo. A dor, a angústia e os conflitos internos são interpretados como manifestações de processos inconscientes que moldam a subjetividade.
Freud, ao desenvolver suas teorias sobre o inconsciente, a repressão e os mecanismos de defesa, introduziu uma nova compreensão do sofrimento, afastando-se de explicações simplistas ou moralistas. Para ele, o sofrimento é parte integrante da condição humana, sendo resultado das tensões entre os desejos instintivos, a moralidade internalizada e as exigências da vida em sociedade. Em sua obra O Mal-estar na Civilização (1930), Freud analisa como a repressão dos impulsos naturais, necessária para a convivência social, gera sofrimento psíquico, como a neurose, a culpa e a angústia.
A teoria psicanalítica também desenvolve um olhar específico sobre a dor emocional e psicológica, considerando que o sofrimento não se limita a eventos externos, mas surge de conflitos internos não resolvidos, traumas e a dinâmica complexa entre o consciente e o inconsciente. Ao longo dos anos, psicoterapeutas psicanalíticos, como Melanie Klein, Donald Winnicott e Jacques Lacan, acrescentaram novas dimensões à análise do sofrimento, ampliando o entendimento sobre o papel do desejo, da falta e do gozo (jouissance) no sofrimento humano.
O sofrimento a partir dessa perspectiva psicanalítica, explorando suas raízes nos processos psíquicos e nos mecanismos que estruturam a subjetividade. O sofrimento psíquico, como abordado pela psicanálise, é simultaneamente uma experiência pessoal e uma expressão das tensões sociais, culturais e históricas. Ao entender o sofrimento sob a ótica psicanalítica, é possível aprofundar a compreensão das formas como o sujeito se relaciona consigo mesmo, com o outro e com as normas sociais que o atravessam.
3.1 Sofrimento: Origem, Significado e Dimensão Subjetiva
A palavra sofrimento origina-se do latim sufferentia, derivada de sufferre, que significa “suportar” ou “tolerar”. Desde sua etimologia, o termo remete à experiência de suportar dor, angústia ou adversidades, sejam elas físicas, emocionais ou psíquicas. Trata-se de uma condição inerente à existência humana, que se manifesta de formas diversas: dor corporal, angústia existencial, frustração afetiva ou inquietação subjetiva.
No final do século XIX e início do século XX, o entendimento predominante sobre o sofrimento estava fortemente marcado por perspectivas médicas, filosóficas e religiosas que tendiam a tratá-lo como um sintoma de doença física, uma prova moral ou um castigo divino. Nesse cenário, Sigmund Freud propôs uma ruptura significativa ao conceber o sofrimento como um fenômeno psíquico fundamental na constituição do sujeito humano.
Freud, ao desenvolver a psicanálise, deslocou o foco do sofrimento do corpo e da moral para a mente inconsciente, mostrando que a dor e a angústia são inseparáveis das dinâmicas internas do aparelho psíquico. Para ele, o sofrimento não é apenas uma resposta a fatores externos, mas nasce do conflito entre as pulsões inconscientes — desejos, impulsos e memórias reprimidas — e as exigências da civilização e da consciência moral. Essa abordagem é evidente em obras clássicas como A Interpretação dos Sonhos (1900) e Além do Princípio do Prazer (1920).
Diferentemente do paradigma médico, que via o sofrimento apenas como sintoma a ser eliminado, Freud entendeu o sofrimento como uma manifestação necessária da condição humana, resultado da tensão entre o desejo de satisfação imediata e as limitações impostas pelo mundo externo e pelo próprio psiquismo. Em O Mal-Estar na Civilização (1930), ele detalha como a civilização, ao estabelecer regras e proibições, gera frustração e sofrimento, mas também possibilita a convivência social.
Além disso, Freud foi pioneiro ao estudar a angústia como uma forma específica de sofrimento psíquico, ligada à percepção interna de perigo e não apenas a ameaças externas. Essa ideia contrastava com o entendimento mais simplista da angústia como medo irracional. Freud explicou que a angústia funciona como um mecanismo de alerta do ego diante de conflitos internos profundos.
Essa concepção psicanalítica do sofrimento foi inovadora porque considerava as dimensões inconscientes, culturais e sociais da experiência humana, abrindo caminho para novas formas de tratamento e compreensão da saúde mental, que iam além do corpo e da moralidade tradicionais.
A análise do sofrimento em Freud, especialmente em sua obra O mal-estar na civilização, revela uma compreensão profundamente original e complexa da experiência humana. Freud (2010) não reduz o sofrimento a uma mera consequência de causas externas ou a um simples problema individual, mas o situa no cerne da constituição do sujeito, como uma condição inescapável da existência. Essa perspectiva desafia leituras simplistas e permite um entendimento multifacetado da dor psíquica.
Freud (2010) identifica três fontes principais desse sofrimento: o corpo, o mundo externo e os vínculos humanos. O corpo, como sede das pulsões e sensações, está inevitavelmente marcado pela finitude, decadência e dor, impondo limites que o sujeito deve enfrentar desde seu nascimento. O mundo externo, por sua vez, é imprevisível e muitas vezes hostil, impondo desafios que escapam ao controle individual, como desastres naturais, doenças e as exigências sociais que regulam a convivência. Por fim, os vínculos humanos são simultaneamente a principal fonte de satisfação e de sofrimento; as relações interpessoais, atravessadas por conflitos, ambivalências e frustrações, são fundamentais para a formação da subjetividade, mas também geradoras de dor psíquica.
Essa tríplice origem do sofrimento expõe a impossibilidade de uma existência plenamente satisfatória e aponta para a angústia e o mal-estar como elementos constitutivos da vida psíquica e social. Diferentemente de outras abordagens da época, que tendiam a buscar a eliminação do sofrimento como um ideal terapêutico absoluto, Freud (1920; 2010) compreende que o sofrimento é inerente à condição humana, resultado do embate entre pulsões inconscientes e as normas culturais, sociais e morais que regulam a civilização.
Além disso, Freud (1920) destaca que a cultura civilizatória, ao restringir e sublimar as pulsões para garantir a convivência e a ordem social, impõe uma carga inevitável de renúncia e frustração que gera sofrimento. Essa dialética entre desejo e restrição é central para entender não apenas o mal-estar individual, mas também os conflitos sociais e políticos. Assim, o sofrimento não é um mero obstáculo a ser eliminado, mas uma dimensão estruturante do sujeito e da vida coletiva.
Em outras obras, como Além do princípio do prazer (Freud, 1922), ele aprofunda essa compreensão, mostrando que o sofrimento está ligado a pulsões fundamentais, inclusive à pulsão de morte, evidenciando o caráter ambíguo e paradoxal da vida psíquica. Essa visão amplia o campo da psicanálise para além do tratamento clínico, configurando-se como uma reflexão crítica sobre a existência humana em suas contradições essenciais.
Portanto, o estudo do sofrimento em Freud não apenas iluminou as bases do mal-estar psíquico, mas também ofereceu uma crítica profunda das condições civilizatórias e da própria experiência humana, revelando que o sofrimento é inseparável da vida, da cultura e da subjetividade.
Freud não concebe o sofrimento apenas como algo a ser eliminado, mas como via privilegiada de acesso ao inconsciente. A análise, na psicanálise, permite que o sujeito ressignifique suas experiências dolorosas, compreendendo as causas ocultas de seu sofrimento e abrindo a possibilidade de transformações subjetivas.
Jacques Lacan, ao retomar e radicalizar a teoria freudiana, amplia a compreensão do sofrimento ao vinculá-lo à estrutura do desejo e à entrada do sujeito na linguagem. Para Lacan, o sofrimento é inseparável da falta constitutiva do sujeito, efeito da alienação simbólica. Ao ingressar no campo da linguagem, o sujeito perde algo irrecuperável — o objeto do desejo. O sofrimento aparece, assim, como “efeito da cisão entre o que se é e o que se deseja ser, entre o que se diz e o que se vive” (Lacan, 1998, p. 823).
Lacan introduz ainda o conceito de gozo (jouissance), que complexifica a relação entre prazer e dor. O gozo é uma forma de prazer excessivo que toca o limite do suportável, aproximando-se da dor. Muitas vezes, o sujeito repete formas de sofrimento familiar — mesmo que destrutivas — porque ali encontra uma satisfação inconsciente (Lacan, 1998). Sofrer, paradoxalmente, pode ser uma forma de gozar.
Apesar de inevitável, o sofrimento pode ser também uma via de transformação. Diversas tradições religiosas e filosóficas — como o budismo, o cristianismo e o existencialismo — compreendem a dor como caminho de iluminação, redenção ou autenticidade. Na psicanálise, o sofrimento pode abrir espaço para a criação de sentido, para a reconstrução subjetiva e para o surgimento de novas formas de estar no mundo.
Reconhecer o sofrimento como uma experiência singular e profundamente subjetiva é essencial. Cada indivíduo o vivencia de modo único, conforme sua história, estrutura psíquica e contexto sociocultural. Por isso, é fundamental cultivar empatia, escuta e acolhimento diante da dor alheia, além de buscar apoio clínico, social ou espiritual quando necessário. Não se trata de negar a dor, mas de oferecer condições para que ela seja simbolizada, elaborada e, eventualmente, transformada.
3.1.1 O Sujeito em Freud e Lacan
A concepção do sujeito, nas obras de Sigmund Freud e Jacques Lacan, passa por uma série de transformações, mas ambos veem o sujeito como uma construção complexa e multifacetada, profundamente influenciada pela relação com o inconsciente, o Outro e as estruturas sociais e culturais. Embora compartilhem uma base comum, a psicanálise freudiana, com sua ênfase no inconsciente, e a psicanálise lacaniana, com sua centralidade na linguagem e na falta, apresentam visões distintas sobre o sujeito.
As Tópicas do Aparelho Psíquico em Freud
Ao longo de sua obra, Freud desenvolveu dois modelos teóricos distintos – conhecidos como primeira e segunda tópicas – com o objetivo de descrever a estrutura e o funcionamento do aparelho psíquico. Cada uma dessas formulações reflete uma etapa distinta do pensamento freudiano e está ancorada em diferentes momentos históricos e conceituais de sua produção.
A primeira tópica, também denominada modelo topográfico, foi formulada entre os anos de 1900 e 1915, com base em textos como A Interpretação dos Sonhos (1900) e O inconsciente (1915). Nesse modelo, o psiquismo é concebido como dividido em três sistemas: inconsciente (Ics), pré-consciente (Pcs) e consciente (Cs). O inconsciente abriga os conteúdos reprimidos, inacessíveis à consciência de forma direta, mas que retornam por meio de formações como sonhos, atos falhos e sintomas. O pré-consciente funciona como uma zona intermediária, na qual os conteúdos podem tornar-se conscientes sob determinadas condições. Já o consciente diz respeito ao que é percebido no campo atual da atenção (Freud, 1915).
A segunda tópica, é introduzida em O Ego e o Id (1923), quando Freud reformula sua concepção do psiquismo a partir de novas observações clínicas e teóricas. Essa nova formulação descreve três instâncias fundamentais: o id, o ego e o superego. O id representa o polo pulsional do aparelho, regido pelo princípio do prazer e inteiramente inconsciente.
Ao substituir a lógica espacial da primeira tópica por uma dinâmica funcional entre instâncias, a segunda tópica permite uma compreensão mais complexa da subjetividade. Importante ressaltar que essas duas modelizações não se anulam, mas coexistem e se articulam como diferentes formas de pensar os conflitos psíquicos e os processos inconscientes.
Assim, para Freud, o sujeito é fundamentalmente marcado pela presença do inconsciente, uma parte da psique que contém desejos, impulsos e memórias reprimidas, que não são acessíveis à consciência. Como ele afirma em O ego e o id (1923): “o ego não é senhor em sua própria casa” (Freud, 1923, p. 285), destacando que a consciência racional não detém o controle sobre todos os processos mentais.
O sujeito, para Freud, é fragmentado e dividido, não sendo uma unidade plena e coerente. Sua subjetividade é organizada em torno de três instâncias psíquicas: o id, o ego e o superego.
i) O Id representa a instância mais primitiva da mente, regida pelo princípio do prazer e formada por impulsos pulsionais inconscientes. Sendo a parte mais primitiva e instintiva do sujeito, que busca a satisfação imediata dos desejos e impulsos, sem considerar as consequências sociais ou morais. O id está ligado aos desejos inconscientes e às pulsões, sendo a fonte de grande parte do sofrimento, quando esses desejos entram em conflito com as demandas do mundo social.
ii) O Ego é a instância responsável pela mediação entre os impulsos do id e as exigências do superego e da realidade externa. O ego tenta equilibrar os desejos inconscientes do id com as exigências do mundo social e as normas internalizadas no superego. O sofrimento, para Freud, muitas vezes surge desse conflito entre os desejos do id e as limitações impostas pela moralidade do superego e pela realidade externa.
iii) O Superego é a instância moral do sujeito, que internaliza as normas, valores e proibições da sociedade e dos pais. Quando o sujeito não atende a essas normas, surgem sentimentos de culpa e ansiedade, que são formas de sofrimento psíquico. O superego, portanto, é central na formação da consciência moral, mas também pode ser fonte de sofrimento, quando o sujeito se vê incapaz de atender a suas exigências.
Assim, em Freud, o sujeito é visto como uma instância dividida, marcada por tensões internas e externas que produzem sofrimento. O inconsciente, em sua forma mais primitiva, e os conflitos entre os impulsos, a moralidade e a realidade, moldam a experiência subjetiva e o sofrimento.
A estrutura psíquica proposta por Sigmund Freud e abordada por Jacques Lacan oferece uma compreensão profunda das diferentes formas de subjetividade e dos modos como os indivíduos organizam e experienciam o sofrimento psíquico. Para entender melhor essa estrutura, é necessário primeiro compreender os conceitos de neurose, psicose e perversão na teoria psicanalítica, e como Lacan reinterpreta esses conceitos.
Neurose
Para Freud, a neurose é o resultado de um conflito psíquico entre desejos inconscientes e as exigências da realidade externa e interna. Esse conflito, geralmente ligado às pulsões sexuais e agressivas, produz sintomas como fobias, compulsões e inibições, que funcionam como tentativas de simbolizar o impasse vivido pelo sujeito (Freud, 1894). Ao contrário de uma falha individual, a neurose é um modo estruturado de subjetivação, revelando a tensão constitutiva entre desejo e lei.
É essencial destacar que, na teoria freudiana, a sexualidade não se limita ao genital. Desde seus primeiros escritos, Freud desconstrói a ideia de uma sexualidade exclusivamente ligada à reprodução, propondo o conceito de pulsões parciais, que envolvem zonas erógenas, como a oral, a anal e a escópica, e formas de satisfação que não obedecem a uma finalidade biológica (FREUD, 1905). A sexualidade humana, marcada pela infância e pela linguagem, é polimorfa e desviante, escapando à normatividade genital.
Lacan retoma e radicaliza essa concepção. Para ele, “não há relação sexual” (il n'y a pas de rapport sexuel) no sentido de que não existe complementaridade plena entre os sexos no plano simbólico. O desejo está sempre estruturado pela falta, e o gozo — conceito que complexifica a noção de prazer — frequentemente se aproxima da dor. Assim, na neurose, o sujeito sofre, mas esse sofrimento é também uma forma de satisfação inconsciente, uma repetição gozosa que resiste à simbolização (Lacan, 1998, p. 838).
Portanto, tanto em Freud quanto em Lacan, a sexualidade não se reduz à genitalidade, nem a uma função biológica ou normativa. Ela é, antes, uma experiência estruturante da subjetividade, atravessada pela linguagem, pela fantasia e pela castração simbólica. E a neurose, longe de ser um desvio patológico isolado, revela como o sujeito neurótico lida — ou tenta lidar — com a impossibilidade constitutiva do desejo.
A neurose ocorre quando o ego não consegue integrar adequadamente as exigências do id (desejos) e do superego (normas sociais), resultando em síntomas neuróticos como ansiedade, fobias, compulsões, etc.
A neurose é um tipo de defesa contra a realidade psíquica interna, onde o sujeito recorre a mecanismos de defesa (como repressão, negação, racionalização, etc.) para lidar com o conflito interno. A importância dessa estrutura psíquica está no fato de que, apesar de dolorosa, a neurose mantém o sujeito ainda em contato com a realidade, o que permite que ele se engaje em uma forma de adaptação social e relacional.
Perversão
A perversão, na teoria freudiana, é vista como uma estrutura psíquica que envolve uma subversão das normas sexuais e morais socialmente aceitas. No caso da perversão, o sujeito não busca o prazer de maneira espontânea ou natural, mas é guiado por práticas que violam as normas estabelecidas, como a fixação em fetiches ou práticas sexuais não convencionais. Freud considerou que a perversão está intimamente relacionada a uma fixação sexual em uma fase pré-edípica ou a uma reinterpretação distorcida da sexualidade.
A perversão, para Freud, está diretamente ligada ao prazer, mas esse prazer está desvinculado da norma social. O perverso não está em conflito com sua realidade interna (como o neurótico), mas mantém uma relação funcional com o mundo externo, mas de forma disfuncional no que se refere à sexualidade e à moralidade.
c) Psicose
A psicose, em contrapartida, é uma ruptura mais profunda com a realidade. Para Freud, a psicose ocorre quando o ego perde a capacidade de lidar com as tensões entre as demandas internas (do id) e as normas sociais (do superego). O sujeito psicótico não consegue elaborar o que Freud chamou de "realidade externa" de maneira suficiente, o que leva a distúrbios como alucinações e delírios.
Freud via a psicose como uma falha mais grave no processo de elaboração simbólica, uma incapacidade do ego de mediar e integrar as tensões entre o id e o superego com a realidade externa. Isso leva o sujeito a viver em um mundo interno distorcido, onde ele tenta criar uma nova "realidade" que faça sentido para ele, mas que o desconecta da realidade compartilhada.
Sujeito como linguagem em Lacan
Jacques Lacan, em sua releitura e expansão da psicanálise freudiana, introduz uma noção mais radical e complexa de sujeito, focada na linguagem, na falta e na alienação. Para Lacan, o sujeito é constituído pela linguagem e pela relação com o Outro, e sua identidade é marcada pela falta estrutural, ou seja, uma lacuna fundamental que nunca pode ser preenchida.
i) A Linguagem e o Sujeito: Lacan argumenta que "o inconsciente é estruturado como uma linguagem". Para ele, o sujeito não é pré-existente à linguagem, mas é constituído por ela. A linguagem, e a entrada no “Estádio do Espelho”, é o momento crucial na formação da identidade do sujeito, quando ele se reconhece pela primeira vez em sua imagem refletida. No entanto, essa imagem é uma ilusão de totalidade, pois o sujeito se vê como completo, embora esteja permanentemente marcado pela falta. A identidade do sujeito é, portanto, uma construção baseada em uma representação (linguística e visual), mas que é fundamentalmente falha e inacabada.
ii) A Falta e o Desejo: Para Lacan, o sujeito é sempre definido pela falta, uma lacuna estrutural que nunca pode ser completamente preenchida. A falta está relacionada ao desejo — o sujeito é um ser desejante, mas esse desejo está sempre marcado pela ausência do objeto perdido, o objet petit a (objeto do desejo). O sofrimento, para Lacan, surge dessa impossibilidade de atingir um objeto ou uma completude que é sempre desejada, mas que nunca pode ser realizada. O desejo é infinitamente insatisfeito, o que gera a dor da falta.
iii) O Outro e a Alienação: O sujeito lacaniano é também constitutivamente marcado pela relação com o Outro. Esse "Outro" pode ser entendido tanto como o Outro social, ou seja, as outras pessoas e as normas sociais, quanto como o Outro simbólico, a linguagem e as regras que estruturam a subjetividade. A entrada do sujeito no campo do Outro implica uma alienação, pois o sujeito se perde na identificação com as imagens e significados que são dados a ele pelo Outro. Essa alienação é a fonte de uma angústia fundamental, pois o sujeito nunca é capaz de se atingir de forma plena e autêntica.
Ambos Freud e Lacan veem o sujeito como dividido, marcado por um inconsciente que determina e estrutura sua experiência. Para ambos, o sofrimento surge dessa divisão, da impossibilidade de realização plena do desejo e da tensão entre os impulsos do inconsciente e as exigências da realidade externa.
A principal diferença entre os dois está na ênfase que Lacan dá à linguagem como constitutiva do sujeito e na centralidade que ele atribui à falta estrutural. Enquanto Freud enfatiza as forças instintivas e os mecanismos psíquicos de defesa, Lacan focaliza a relação do sujeito com o Outro e a função simbólica da linguagem na constituição da subjetividade.
Desta forma, o sujeito em Freud é uma entidade psíquica dividida entre os impulsos instintivos e as exigências da sociedade, marcada por tensões internas. Em Lacan, o sujeito é uma construção falha, marcada pela relação com a linguagem e pela falta estrutural que define o desejo e o sofrimento. Ambos os autores fornecem uma base para a compreensão do sofrimento humano como algo que transcende a simples experiência individual e é profundamente condicionado por fatores inconscientes, sociais e culturais.
Em Lacan: O Real, o Imaginário e o Simbólico
Jacques Lacan, que reinterpreta e reformula muitas das ideias freudianas, introduz novos conceitos fundamentais na psicanálise, como os registros do Imaginário, Simbólico e Real. Esses três registros ajudam a entender como o sujeito se constitui e como ele organiza seu sofrimento e sua subjetividade.
Imaginário: Está relacionado à imagem do eu e à formação do sujeito a partir da identificação com o espelho. Esse registro tem a ver com a formação da imagem do sujeito e sua relação com o outro, o que pode gerar distorções, especialmente nos casos de psicose ou neurose.
Simbólico: Refere-se à linguagem, à cultura e às normas que estruturam o sujeito dentro de uma rede social. O registro simbólico é o da lei e da ordem, representado pelo pai simbólico e pela castração, e é aqui que ocorrem as relações de subordinação e identificação social.
Real: É o registro que escapa à simbolização e que está sempre fora do alcance da linguagem. O Real é aquilo que não pode ser totalmente representado e que é, por isso, fonte de sofrimento. No caso da psicose, por exemplo, o sujeito está excessivamente confrontado com o Real, sendo incapaz de simbolizá-lo adequadamente, o que leva ao distúrbio psíquico.
3.1.2 A Importância para o Estudo do Sofrimento Psíquico
A compreensão das estruturas psíquicas propostas por Freud e desenvolvidas por Lacan — neurose, psicose e perversão — é fundamental para pensar as diferentes formas de sofrimento humano, tanto em sua dimensão subjetiva quanto em suas manifestações sociais e culturais.
Essas estruturas não devem ser entendidas como categorias clínicas rígidas ou como diagnósticos patológicos no sentido biomédico, mas como formas estruturais de relação do sujeito com a linguagem, com o desejo, com a lei simbólica e com o Outro. Cada estrutura expressa um modo específico de organização psíquica e de enfrentamento da castração simbólica, conceito central na teoria lacaniana que remete ao limite, à perda e à entrada do sujeito na ordem do significante.
Neurose: Na neurose — estrutura mais comum na clínica psicanalítica — o sujeito reconhece a existência da Lei (o interdito simbólico), mas sofre justamente por não saber como se posicionar diante dela. A castração é aceita, mas vivida como uma perda angustiante. Freud identificou, nas neuroses, manifestações como a histeria e a neurose obsessiva, que revelam diferentes estratégias de lidar com o desejo e o recalque. O neurótico se caracteriza por uma constante tentativa de conciliar o desejo inconsciente com as exigências do Outro social, o que gera um sofrimento marcado por culpa, angústia, sintomas conversivos ou compulsões.
No plano social, o neurótico é aquele que, mesmo em conflito com as normas, se submete a elas, internalizando os valores e as contradições do laço social. Sua adaptação à realidade é possível, mas nunca plena, pois é mediada por uma inquietação constante, uma dúvida estrutural sobre o próprio lugar no desejo do Outro.
A Neurose: conflito, recalcamento e compromisso com a realidade
A neurose é pensada como o resultado de um conflito entre as pulsões inconscientes e as exigências do Eu e da realidade externa. O neurótico vive sob o regime do recalcamento, mecanismo pelo qual desejos inaceitáveis são banidos da consciência, mas retornam de forma deslocada e disfarçada, sobretudo sob a forma de sintomas. Essa estrutura é marcada pela angústia e pela culpa, e a realidade é mantida, ainda que a um custo psíquico considerável.
Freud trabalha a neurose extensivamente em obras como A Interpretação dos Sonhos (1900), O Caso do Homem dos Ratos (1909) e Inibição, Sintoma e Angústia (1926), mostrando como os sintomas neuróticos são formações de compromisso entre o desejo inconsciente e a censura do Eu. O neurótico, em suma, reconhece a Lei (o Nome-do-Pai), mas sofre por isso — sofre por desejar o que não pode ter.
Lacan retoma essa estrutura e a relê à luz da linguagem. Para ele, o neurótico é aquele que se posiciona como faltoso diante do desejo do Outro. Em seminários como A Angústia (1962–1963) e A direção do tratamento e os princípios de seu poder (1958), ele mostra como a neurose está organizada em torno da castração simbólica e da busca pela decifração do enigma do desejo do Outro. A angústia do neurótico é, assim, a angústia do desejo — uma angústia diante daquilo que se quer, mas que não se pode querer completamente.
Perversão: A perversão, por sua vez, não é a recusa da Lei, como poderia parecer à primeira vista, mas uma forma específica de se posicionar em relação a ela. O perverso não desconhece a Lei, mas a desafia conscientemente, colocando-se como seu executor ou sua exceção. O que está em jogo aqui é a manutenção do gozo (jouissance) — um gozo que se obtém não pela negação da Lei, mas pela sua instrumentalização. O perverso ocupa, assim, uma posição estratégica: ele se propõe a "completar" o Outro, responder por sua falta, negando a castração do Outro e se oferecendo como objeto de gozo ou como agente de gozo sobre o outro.
Freud descreve a perversão como uma fixação em formas específicas do desejo que não se submetem ao recalque, como no fetichismo ou na sexualidade sádico-masoquista. Lacan, no entanto, amplia o conceito, ao compreendê-la como uma estrutura subjetiva e discursiva, marcada pela montagem de uma cena em que o Outro é colocado como espectador ou partícipe de um ato que transgride a Lei para mantê-la em funcionamento.
Socialmente, a perversão pode se manifestar na figura do sujeito que manipula os discursos da moralidade, da lei ou do saber para instaurar relações de poder assimétricas, com gozo, crueldade ou cinismo. Em contextos autoritários, por exemplo, o discurso perverso pode aparecer sob a máscara da legalidade, sustentando práticas de exclusão, tortura ou dominação em nome da ordem.
A Perversão: a negativa da castração e a sustentação do gozo
Por fim, a estrutura perversa não se define por práticas ou comportamentos sexuais desviantes, mas por uma lógica específica de relação com a Lei. Freud, nos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905), já havia indicado que as “perversões” fazem parte da sexualidade infantil e que sua permanência na vida adulta não deve ser tomada como anormalidade moral. Em O Fetichismo (1927), ele descreve como o sujeito perverso nega a castração materna, criando um objeto (o fetiche) que serve para tamponar essa percepção insuportável.
Lacan retoma essa estrutura com base no lugar que o sujeito ocupa em relação ao desejo do Outro. No Seminário 7, A Ética da Psicanálise (1959–1960), e no Seminário 17, O Avesso da Psicanálise (1969–1970), Lacan descreve o perverso como aquele que se faz instrumento do gozo do Outro, ocupando a posição de “objeto a” — o objeto causa do desejo. Ao contrário do neurótico, que sofre diante da Lei, o perverso desafia a Lei, transgredindo-a justamente para reafirmá-la, como uma espécie de encenação do poder sobre o desejo.
Psicose: Na psicose, diferentemente da neurose, o sujeito não consegue simbolizar a castração — ela não é recalcada, mas foracluída (termo lacaniano que designa a exclusão radical de um significante do campo do Outro). Isso significa que o Nome-do-Pai, enquanto operador simbólico que introduz a Lei e a mediação do desejo, não se inscreveu no campo do sujeito. Com isso, a relação com o real e com o Outro se dá sem os filtros da metáfora paterna, o que pode levar a fenômenos de invasão do real, como alucinações, delírios e desorganizações da linguagem.
Freud estudou a psicose sobretudo na sua obra sobre o caso Schreber, onde mostra como o delírio pode funcionar como uma tentativa de “reconstrução do mundo”, uma nova ordenação simbólica frente à falência da estrutura. Lacan, ao reler esse caso, afirma que o delírio é uma resposta criativa à foraclusão do significante paterno — ou seja, não é mero colapso, mas uma elaboração singular diante do impensável.
No plano social, a psicose se relaciona com a dificuldade de inserção em uma realidade consensual e compartilhada. Mas isso não deve ser compreendido de forma estigmatizante. Muitos sujeitos psicóticos constroem modos singulares de existência, inclusive altamente criativos, quando encontram redes simbólicas de sustentação (como a arte, a militância ou vínculos transversais estáveis). A psicose, portanto, interroga os limites do social em incluir a alteridade radical.
Essas três estruturas — neurose, psicose e perversão — não são patologias em si mesmas, mas formas distintas de constituição do sujeito no campo da linguagem e do desejo. Compreendê-las é fundamental para pensar o sofrimento psíquico não como falha individual, mas como efeito de um modo de inserção na cultura, na lei e no laço social. Elas nos ajudam a ler o modo como cada sujeito responde ao real da falta, aos impasses do desejo e aos discursos dominantes — e, nesse sentido, revelam não apenas formas clínicas, mas também expressões políticas e éticas do estar-no-mundo.
A Psicose: a foraclusão da Lei e o colapso do simbólico
A psicose, por sua vez, representa uma relação estruturalmente distinta com a linguagem e o simbólico. Freud, em Notas Psicanalíticas sobre um Relato Autobiográfico de um Caso de Paranoia (1911) — o famoso caso Schreber —, identificou que, na psicose, há um mecanismo diferente do recalque: trata-se de uma rejeição radical (Verwerfung) de uma significação fundamental, que compromete a capacidade de simbolização e de articulação com a realidade compartilhada.
Lacan aprofunda essa leitura introduzindo o conceito de foraclusão: na psicose, o significante do Nome-do-Pai, que organiza a entrada do sujeito na ordem simbólica, não é apenas recalcado — ele nunca foi simbolicamente inscrito. Essa ausência estrutural faz com que, em determinados momentos, o sujeito psicótico enfrente o que Lacan chama de “retorno no real” daquilo que foi foracluído, como delírios, alucinações ou distorções radicais da realidade.
Essas formulações são desenvolvidas sobretudo em O Seminário, Livro 3: As Psicoses (1955–1956) e no texto De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1958). Em O Sinthoma (1975–1976), Lacan ainda introduz o conceito de sinthoma como amarração suplementar possível para psicóticos como James Joyce, cuja escrita serviu de sustentação simbólica alternativa.
A importância da psicanálise, tanto em Freud quanto em Lacan, reside em sua capacidade de ilustrar como as tensões internas e os conflitos entre o id, ego e superego (em Freud) ou os registros do Imaginário, Simbólico e Real (em Lacan) podem se manifestar em diferentes formas de sofrimento psíquico e como essas estruturas podem ser vistas como estratégias para lidar com o sofrimento. Isso é essencial para a compreensão do sofrimento humano, principalmente no contexto de desigualdades sociais, violência e sofrimento psíquico no campo dos Direitos Humanos.
3.1.2 Estágio do Espelho: Estrutura e Significado
O Estádio do Espelho é um conceito fundamental na teoria psicanalítica de Jacques Lacan. Ele se refere a um momento crucial no desenvolvimento da subjetividade do sujeito, ocorrendo aproximadamente entre os seis e os dezoito meses de idade. Esse conceito descreve o processo pelo qual o bebê se reconhece em um espelho e começa a formar a primeira imagem de si mesmo como um "eu" coeso e distinto. Esse reconhecimento, no entanto, é ilusório, pois o bebê, ainda não completamente desenvolvido, não tem uma percepção real de seu corpo e sua totalidade, mas se vê como um todo, ao observar a imagem refletida.
Lacan considera o Estágio do Espelho um ponto decisivo no desenvolvimento do sujeito. Ele argumenta que, ao se reconhecer na imagem refletida, o bebê se identifica com uma totalidade que ainda não existe em sua realidade psíquica ou corporal. Isso é um reflexo da "falta estrutural" que definirá a subjetividade humana: a partir desse momento, o sujeito se tornará um ser dividido entre o que ele é realmente (a totalidade do corpo, que é fragmentada e em desenvolvimento) e o que ele se percebe ser (a imagem idealizada no espelho, que é uma unidade e completude).
O Estádio do Espelho marca a entrada do sujeito no campo do Outro, simbolizando o início da constituição do "eu" através da linguagem e das imagens sociais. A primeira imagem de si, no espelho, é carregada de um desejo profundo de ser reconhecido e de se sentir completo. No entanto, esse desejo é marcado pela impossibilidade de realizar essa completude, o que será um tema central em Lacan: o sujeito está sempre marcado pela falta e pela perda de uma totalidade que jamais poderá ser alcançada.
A inclusão do conceito de Estádio do Espelho no seu ensaio sobre sofrimento, psicanálise e direitos humanos é de extrema importância, pois ele ilustra como o sujeito, desde os primeiros momentos de sua formação, é marcado por uma divisão interna e uma falta estrutural que atravessa toda a sua existência. Essa falta, segundo Lacan, nunca pode ser preenchida, e é precisamente essa busca pela totalidade (que se reflete no desejo de completude do sujeito) que gera sofrimento.
i) Sujeito Dividido e Sofrimento Psíquico: O Estádio do Espelho evidencia a divisão do sujeito, um conceito central tanto em Freud quanto em Lacan. O sujeito nunca é completamente coeso ou completo; ele está sempre à procura de um "eu ideal", um "eu inteiro", mas essa busca é eterna e impossível de ser atingida. Essa divisão é a base do sofrimento psíquico, pois o sujeito está em constante conflito entre sua percepção de si e a realidade de sua fragmentação.
ii) A Formação do Desejo e a Falta: A noção de que o desejo do sujeito é originado pela falta é crucial para entender o sofrimento. O Estádio do Espelho, ao criar uma imagem idealizada do sujeito que é inatingível, introduz a ideia de que o sujeito sempre estará em busca de algo que nunca poderá ser plenamente alcançado. Isso gera uma angústia fundamental, já que o sujeito nunca estará em paz com a sua identidade, sempre tentando preencher o vazio criado pela falta.
iii) A Relação com o Outro: O Estádio do Espelho também introduz o Outro como um elemento central na constituição do sujeito. O sujeito se percebe em relação a uma imagem social e cultural (o Outro), e é através dessa relação que ele forma sua identidade. Essa relação, porém, é marcada pela alienação, já que o sujeito não é capaz de se reconhecer plenamente fora das imagens que o Outro lhe oferece. A alienação, nesse sentido, é uma fonte de sofrimento, pois o sujeito nunca se sente autêntico ou completo.
iv) Implicações Sociais e Políticas: Em um ensaio sobre sofrimento e direitos humanos, a ideia de alienação e a busca por completude no Estádio do Espelho podem ser expandidas para explicar como o sofrimento não é apenas psicológico, mas também social. As sociedades criam imagens e normas que constituem o sujeito, mas essas imagens, muitas vezes, são ideais e inatingíveis, criando condições de sofrimento para aqueles que não conseguem se encaixar nessas representações. Em contextos de exclusão e marginalização, essa alienação pode ser ainda mais acentuada, levando a um sofrimento profundo e muitas vezes silenciado.
Assim, o Estádio do Espelho é fundamental para a compreensão do sofrimento humano, pois revela a condição de fragmentação e incompletude que define o sujeito desde sua constituição. No contexto do ensaio, essa teoria pode ser usada para explorar como a busca por uma identidade completa e reconhecida — um desejo que nunca será plenamente satisfeito — é uma fonte constante de sofrimento tanto no plano individual quanto social.
3.1.3 Real, Simbólico e Imaginário em Lacan e o Sofrimento
Os conceitos de Real, Simbólico e Imaginário são centrais na teoria psicanalítica de Jacques Lacan e oferecem uma estrutura para compreender o sofrimento humano. Esses três registros são modos distintos de constituição da subjetividade, e cada um deles está relacionado a diferentes formas de experiência e sofrimento. Integrar essas noções no ensaio sobre o sofrimento, especialmente no contexto de direitos humanos, pode fornecer uma compreensão profunda de como a subjetividade se configura diante das tensões sociais, culturais e políticas.
i) O Imaginário: A Formação da Identidade e a Ilusão de Totalidade
O Imaginário refere-se ao registro da imagem, à esfera da percepção visual e do reconhecimento. Ele está intimamente relacionado ao conceito de Estádio do Espelho, que já discutimos, onde o sujeito se vê pela primeira vez como uma totalidade (a imagem no espelho). No entanto, essa totalidade é ilusória, pois o sujeito ainda não tem um sentido real de seu corpo e de sua identidade. Essa imagem de completude é fundamentalmente falha e não corresponde à realidade interna do sujeito. Lacan afirma que o sujeito se aliena nesta imagem do eu, criando uma unidade fictícia que serve como base para o ego.
O sofrimento originado do Imaginário está relacionado ao desejo de totalidade e à busca por uma identidade unificada. No entanto, esse desejo nunca pode ser realizado, já que a identidade do sujeito é marcada pela fragmentação e pela falta. Em um contexto de exclusão social ou marginalização, como o enfrentado por populações vulneráveis, o sofrimento se intensifica quando as imagens sociais ou culturais que definem a identidade não correspondem ao "eu real" do sujeito, gerando uma angústia existencial. Esse sofrimento está atrelado à alienação e à insatisfação, pois o sujeito busca incessantemente um "eu ideal" que é inatingível.
ii) O Simbólico: A Ordem da Linguagem e as Normas Sociais
O Simbólico é o registro da linguagem, das leis e das normas que estruturam a vida social. Ele refere-se à entrada do sujeito no campo do Outro, que inclui a linguagem e as relações interpessoais. Através da linguagem, o sujeito se constitui como ser social e é marcado pelas regras e significados atribuídos pelas culturas e sociedades. O Simbólico é, portanto, a esfera onde o sujeito se relaciona com as normas, os significados e os significantes que estruturam a sua experiência de mundo.
O sofrimento no campo do Simbólico está relacionado à inscrição do sujeito nas normas e exigências sociais. A relação com o Simbólico impõe uma série de expectativas e regras que podem ser opressivas e gerar sofrimento. As violências estruturais, como o patriarcado, o racismo ou a exclusão econômica, são formas de sofrimento que derivam diretamente do campo Simbólico, onde o sujeito é posicionado de forma desigual.
Além disso, Lacan fala sobre o Nome-do-Pai, que é uma figura simbólica essencial na constituição do sujeito. Quando as normas sociais e culturais falham em reconhecer a dignidade e os direitos do sujeito (como ocorre em contextos de violação de direitos humanos), o sofrimento se intensifica, pois o sujeito não tem a sua identidade e posição no mundo social reconhecidas.
iii) O Real: O Inassimilável, o Trauma e o Sofrimento
O Real é o registro mais complexo e enigmático na teoria lacaniana. O Real não pode ser simbolizado ou imaginado, é o que está fora do campo da linguagem e da representação. O Real é a parte da experiência humana que escapa ao simbolismo, aquilo que é irreprimível, traumático e, muitas vezes, a causa de sofrimento. É o que permanece no sujeito como uma falta ou lacuna que não pode ser preenchida.
O sofrimento ligado ao Real é frequentemente associado a experiências de trauma, perda e angústia existencial. O sofrimento do Real é aquele que não pode ser totalmente processado ou compreendido. No contexto dos direitos humanos, o Real pode ser visto como o sofrimento causado por eventos traumáticos como genocídios, torturas e outras formas de violência política que não podem ser completamente assimiladas ou integradas pelo sujeito. Este sofrimento, por ser inassimilável, persiste no sujeito de forma crônica e muitas vezes incompreensível. Ele representa a dor de uma experiência impossível de ser simbolizada ou integrada na linguagem.
Em termos sociais e políticos, o Real está relacionado à experiência de marginalização extrema, à dor de viver em uma condição de opressão radical, onde as estruturas simbólicas e imaginárias falham em oferecer reconhecimento ou a possibilidade de uma identidade plena.
No contexto do ensaio sobre sofrimento, direitos humanos e psicanálise, a tríade Real, Simbólico e Imaginário oferece uma estrutura robusta para abordar as diversas dimensões do sofrimento humano.
i) Sofrimento Social e Cultural: O campo do Simbólico pode ser usado para discutir como as normas e as estruturas sociais causam sofrimento, especialmente quando marginalizam ou desumanizam certos grupos. As normas sociais, políticas e culturais criam sujeitos alienados e oprimidos, que não se veem representados na cultura dominante, gerando sofrimento psicológico e social.
ii) Sofrimento Traumático e Inassimilável: O Real permite discutir o sofrimento que resulta de experiências de trauma e perda irreparável, como aquelas vivenciadas por vítimas de violência política e social. Esse sofrimento, por não poder ser completamente compreendido ou representado, é particularmente devastador, pois persiste como uma lacuna que nunca pode ser preenchida.
iii) Busca pela Totalidade e Alienação: O Imaginário, por sua vez, oferece uma maneira de explorar como a busca por um "eu ideal" ou a necessidade de reconhecimento pode gerar sofrimento. Em sociedades onde certos grupos são desumanizados, o desejo de um reconhecimento que nunca chega se torna uma fonte de angústia existencial. Esse processo de alienação é fundamental para a compreensão do sofrimento das populações marginalizadas, que buscam uma identidade unificada e reconhecida, mas nunca conseguem atingir essa totalidade.
Ao integrar os registros Real, Simbólico e Imaginário a análise sobre sofrimento (por exemplo) pode ser tornar mais abrangente, abordando tanto suas dimensões individuais quanto sociais. A psicanálise lacaniana, com seu foco nas relações entre o sujeito e a linguagem, a imagem e a normatividade social, oferece uma lente poderosa para compreender as experiências de dor, trauma, alienação e opressão que são centrais nas discussões de direitos humanos. Ao fazer isso, pode-se iluminar como as condições sociais e culturais influenciam profundamente a experiência subjetiva do sofrimento, e como a psicanálise oferece recursos valiosos para entender essas dinâmicas.
3.2 Sofrimento e Inconsciente: A Leitura Psicanalítica dos Mitos
A psicanálise, desde sua origem com Freud, recorre a mitos como forma de simbolizar os conflitos psíquicos e dar inteligibilidade ao sofrimento humano. Diferentemente da visão antiga, que atribuía o sofrimento a uma vontade divina ou a um destino imutável, a psicanálise compreende o sofrimento como expressão de conflitos inconscientes, muitas vezes originados na infância, no desejo recalcado e na tensão entre pulsões e normas sociais.
Sigmund Freud recorre amplamente ao mito de Édipo para ilustrar a estrutura do desejo e da culpa que marca o sujeito. No texto A interpretação dos sonhos (1900), Freud apresenta o chamado "complexo de Édipo" como núcleo do conflito psíquico infantil: o desejo incestuoso pelo genitor do sexo oposto e a rivalidade com o genitor do mesmo sexo. O sofrimento, nesse contexto, surge como efeito do recalque desses desejos e da instauração da censura interna, o superego, que funciona como herdeiro da autoridade parental e social (FREUD, 2016 [1900]).
Jacques Lacan, ao reler Freud sob a luz da linguística estrutural e da filosofia, aprofunda essa abordagem ao considerar o mito como forma de estruturar o inconsciente. Para Lacan, o mito de Édipo permanece central, mas ganha contornos simbólicos mais complexos. Em seu ensino, Lacan desenvolve o conceito de "Nome-do-Pai", que representa a inscrição da Lei simbólica no psiquismo. É essa Lei que interrompe a fusão imaginária com a mãe e estrutura o sujeito no campo da linguagem. O sofrimento, nessa perspectiva, decorre da entrada na ordem simbólica — ou seja, da perda constitutiva necessária para a formação do sujeito (LACAN, 1998).
Além de Édipo, Lacan também mobiliza o mito de Antígona, especialmente em seu Seminário VII (A ética da psicanálise), para refletir sobre o desejo além do princípio do bem-estar. Antígona, ao desafiar a ordem do Estado para enterrar seu irmão, representa o sujeito que se mantém fiel a um desejo inegociável, mesmo diante da morte. O sofrimento aqui já não é apenas patológico, mas ético, como expressão da fidelidade a um desejo que transcende o cálculo do prazer (Lacan, 2002).
Assim, a psicanálise ressignifica os mitos antigos ao colocá-los a serviço da análise do inconsciente e da subjetividade moderna. O sofrimento não é mais um destino imposto de fora, mas uma produção do sujeito em sua constituição simbólica, marcada pela castração, pela perda e pelo desejo.
3.3 A Arquitetura do Sofrimento em Freud: Entre o Desejo e a Renúncia
Com a psicanálise, Sigmund Freud inaugura uma nova gramática para pensar o sofrimento humano. Ao rejeitar explicações unicamente morais, religiosas ou fisiológicas da dor psíquica, Freud propõe um modelo de sujeito dividido, atravessado por tensões entre desejo e repressão, pulsão e norma. O sofrimento, portanto, não é acidente ou desvio, mas elemento estrutural da subjetividade.
Desde Estudos sobre a histeria (1895), Freud observa que sintomas corporais sem causa orgânica — como paralisias, dores e crises — são manifestações de conflitos inconscientes não simbolizados. Tais sintomas representam uma tentativa do aparelho psíquico de dar forma a experiências traumáticas ou desejos recalcados que não puderam ser elaborados. Como ele afirma: “Os sintomas são substitutos de algo que foi impedido de se realizar em termos diretos, de maneira consciente” (Freud, 2011a, p. 267).
A formulação do inconsciente como lugar onde se acumulam representações reprimidas e desejos proibidos é central para a teoria do sofrimento em Freud. Em A interpretação dos sonhos (1900), ele mostra que a censura psíquica distorce o desejo inconsciente, que retorna de forma disfarçada sob a forma de sintomas, sonhos ou atos falhos. O sujeito sofre, muitas vezes, sem saber por quê — pois desconhece o que deseja (FREUD, 2010, p. 119).
No entanto, é em O mal-estar na civilização (1930) que Freud explicita de modo mais incisivo a dimensão estrutural do sofrimento. A cultura, para existir, exige a renúncia pulsional — sobretudo das pulsões sexuais e agressivas. Essa repressão é condição da vida em sociedade, mas gera um custo subjetivo: a infelicidade individual. “A intenção de que o ser humano seja ‘feliz’ não está incluída no plano da criação” (FREUD, 2010, p. 45). O sofrimento, nesse contexto, não decorre apenas de eventos externos, mas da própria condição de sujeitos desejantes inseridos em um mundo normativo e repressivo.
Freud observa que, mesmo diante dos avanços técnicos e científicos, o sofrimento persiste — e talvez se intensifique. As produções culturais (como o trabalho, o amor, a arte ou a religião) funcionam como defesas contra a dor, mas não são capazes de eliminá-la (Freud, 2010, p. 46–47).
Outro aspecto crucial é a teoria do supereu, desenvolvida em O ego e o id (1923). O supereu é a instância psíquica que internaliza normas sociais e ideais parentais. Paradoxalmente, quanto mais o sujeito tenta se adequar a esses ideais, mais se sente culpado — pois o supereu é insaciável. Freud adverte: “O supereu pode tornar-se cruel e até sádico” (Freud, 2011b, p. 49), sugerindo que o sofrimento neurótico está muitas vezes vinculado a exigências morais inatingíveis.
Em Luto e melancolia (1917), Freud aprofunda a análise dos afetos ligados à perda. Enquanto o luto representa uma resposta saudável, embora dolorosa, à perda de um objeto amado — que pode ser superada com o tempo —, a melancolia se caracteriza por uma identificação do eu com o objeto perdido, resultando em autodepreciação e intensa autoacusação: “O eu se mostra pobre e desvalorizado, incapaz de qualquer realização” (Freud, 2011c, p. 253). A agressividade dirigida ao objeto volta-se contra o próprio sujeito, produzindo um sofrimento persistente e silencioso.
Em síntese, para Freud, o sofrimento não é uma patologia a ser suprimida, mas um caminho para o autoconhecimento. O objetivo da análise não é a eliminação da dor, mas a possibilidade de dar-lhe sentido, permitindo sua simbolização e reinscrição no discurso. A psicanálise, portanto, propõe um enfrentamento ético da dor — não pela sua negação, mas pela elaboração.
3.4 O sofrimento humano e a contribuição de Freud: pulsões, narcisismo e sociedade
O sofrimento é uma das experiências mais universais e complexas da condição humana. Pode manifestar-se de formas variadas — dor física, angústia emocional, sofrimento psicológico — e assume uma centralidade inegável na vida individual e coletiva. Na tradição psicanalítica, Sigmund Freud oferece uma das análises mais influentes sobre a gênese e os mecanismos do sofrimento, particularmente em sua obra O mal-estar na civilização (FREUD, 2010).
Para Freud, o sofrimento emerge em grande parte da tensão entre as pulsões individuais — notadamente Eros (pulsão de vida) e Tânatos (pulsão de morte) — e as exigências da cultura. A civilização, ao impor restrições aos desejos inconscientes, impõe também renúncias que geram frustrações, recalques e sofrimento. A pulsão de vida, orientada à preservação, ao vínculo e à construção, entra em constante conflito com a pulsão de morte, que impulsiona à agressividade, destruição e auto sabotagem (Freud, 2010). Esse embate entre forças psíquicas estruturais é essencial para compreender as manifestações individuais e sociais do sofrimento.
O sofrimento, portanto, não é um acidente isolado, mas um elemento estrutural da existência humana em sociedade. No plano subjetivo, ele pode resultar de conflitos inconscientes intensos entre os desejos pulsionais e as normas internalizadas. No plano coletivo, manifesta-se na forma de violência, repressão, exclusão e patologias sociais. Freud sustenta que "aquilo que chamamos de felicidade surge da satisfação repentina de necessidades fortemente reprimidas" (FREUD, 2010, p. 51), sugerindo que o sofrimento está diretamente relacionado à dificuldade de acesso à satisfação pulsional.
Outro ponto fundamental da psicanálise freudiana para a compreensão do sofrimento é o narcisismo. Em Introdução ao narcisismo (1914), Freud distingue o narcisismo primário, como etapa necessária do desenvolvimento psíquico, do narcisismo secundário, em que o sujeito reinveste a libido retirada dos objetos no próprio ego. Essa retração pode estar ligada a estados de luto, depressão ou delírios de grandeza — manifestações clínicas em que o sofrimento é evidente (FREUD, 2011). O narcisismo, assim, é ambivalente: necessário à constituição do eu, mas também fonte de sofrimento psíquico quando exacerbado ou regressivo.
Esse sofrimento narcisista também está associado às exigências sociais e culturais que frustram o ideal do eu. Em O mal-estar na civilização, Freud mostra que a cultura exige a renúncia de satisfações pulsionais em nome da convivência social. O ego, então, é constantemente tensionado entre seus desejos e as exigências do superego, resultando em sentimentos de culpa, angústia e sofrimento (Freud, 2010).
Nas formas extremas, o transtorno de personalidade narcisista pode ser devastador, tanto para o próprio sujeito quanto para os que o cercam. O narcisismo maligno, caracterizado por manipulação, crueldade e desprezo pelo outro, leva a ambientes interpessoais tóxicos e à reprodução de violência emocional, além de potencialmente associar-se a práticas sociais de dominação e exclusão. O sofrimento, nesse contexto, torna-se um instrumento de controle e poder.
Jacques Lacan retoma e radicaliza essas ideias. Para ele, o narcisismo é um efeito da entrada do sujeito na ordem simbólica e está diretamente relacionado ao Estádio do Espelho. Nesse momento inaugural, o sujeito se reconhece em uma imagem especular e se identifica com ela, criando um "eu" imaginário coeso, mas ilusório. É nesse processo que nasce o narcisismo: o sujeito se aliena numa imagem que não corresponde à sua experiência fragmentada, instaurando uma falta estrutural (Lacan, 1998). O sofrimento, em Lacan, está enraizado justamente nessa cisão: o sujeito está marcado pela falta e jamais coincidirá com sua imagem ideal ou com o desejo do Outro.
O narcisismo lacaniano, portanto, está ligado à alienação constitutiva do sujeito. Ao buscar incessantemente reconhecimento e completude no olhar do outro, o sujeito se vê condenado a uma insatisfação estrutural. Essa busca pelo Ideal do Eu, que se apresenta como impossível de alcançar, é uma das principais fontes de sofrimento psíquico. Como afirma Lacan, “o desejo é o desejo do Outro” (LACAN, 1998), e é nessa dinâmica de falta, desejo e alteridade que o sofrimento se instala como condição do sujeito falante.
Além disso, Lacan distingue entre gozo (jouissance) e prazer. O gozo é uma forma de satisfação paradoxal que ultrapassa o princípio do prazer, muitas vezes ligada ao sofrimento. Em certas formações clínicas, como a melancolia ou o narcisismo perverso, o sujeito encontra uma forma de gozo no próprio sofrimento — fenômeno que desafia as abordagens psicológicas tradicionais. Nesse ponto, Lacan oferece uma chave de leitura fundamental para compreender formas contemporâneas de sofrimento ligadas ao narcisismo exacerbado: o sujeito goza na idealização de si e na destruição do outro, inclusive por meio da violência simbólica.
Freud e Lacan convergem ao indicar que o sofrimento não é apenas uma resposta a eventos externos, mas uma estrutura que emerge na constituição do sujeito e nos impasses da vida em sociedade. O narcisismo, ao mesmo tempo constituinte e patogênico, é um dos principais eixos dessa análise. Em contextos sociopolíticos marcados pela hiperexposição do eu, pela competitividade e pela performance, as manifestações do narcisismo tornam-se terreno fértil para a reprodução de sofrimentos subjetivos e sociais, como o isolamento, a depressão e as formas sutis de violência interpessoal.
3.4.1 A Relevância das Obras de Freud para Compreender a Sociedade Contemporânea
Sigmund Freud produziu uma vasta obra que continua a exercer forte influência sobre o pensamento contemporâneo, especialmente no campo das ciências humanas. Suas teorias sobre o inconsciente, as pulsões, o narcisismo e o mal-estar civilizatório oferecem instrumentos potentes para analisar os impasses subjetivos e sociais que atravessam a sociedade contemporânea. Em tempos marcados por angústia generalizada, hiperindividualismo e intensificação das patologias narcísicas, revisitar Freud é não apenas pertinente, mas necessário.
Uma de suas contribuições mais relevantes é a concepção de que o sofrimento humano não é meramente fruto de fatores externos, mas está enraizado nas estruturas psíquicas e no próprio processo de socialização. Em O mal-estar na civilização (1930), Freud argumenta que a cultura, ao impor limites e renúncias às pulsões humanas, gera inevitavelmente frustração e sofrimento. A civilização requer repressão das pulsões, especialmente sexuais e agressivas, para possibilitar a vida em comum. Contudo, essa renúncia à satisfação imediata impõe um preço psíquico alto, manifestando-se sob forma de neuroses, sentimentos de culpa e insatisfação crônica (Freud, 2010).
Além disso, a teoria das pulsões — Eros (vida) e Tânatos (morte) — introduzida por Freud, revela o conflito permanente que estrutura a subjetividade. Enquanto Eros busca preservar, unir e criar, Tânatos impele à destruição, ao retorno ao inorgânico. Na contemporaneidade, marcada por fenômenos como o aumento da violência, da autodestruição, da depressão e do niilismo, a pulsão de morte parece encontrar novas formas de expressão. O comportamento autodestrutivo, a exaustão produtiva e o ódio disseminado nas redes sociais podem ser lidos como manifestações sociais dessa pulsão, tornando atual a reflexão freudiana (FREUD, 2010).
Outro eixo fundamental da obra freudiana é a análise do narcisismo. Em Introdução ao narcisismo (1914), Freud descreve o narcisismo como uma etapa do desenvolvimento psíquico em que a libido está investida no próprio ego. Essa forma de amor a si mesmo é necessária para a constituição do eu, mas pode se transformar em patologia quando o sujeito permanece fixado nessa etapa. O narcisismo patológico, frequentemente presente em personalidades autoritárias, em líderes populistas e em sujeitos que exigem admiração constante, compromete o vínculo com o outro e favorece relações instrumentais e utilitárias (FREUD, 2011).
Na sociedade contemporânea, marcada por ideais de performance, visibilidade e culto ao eu, o narcisismo ganha centralidade. Redes sociais digitais se tornam espaços privilegiados para a construção de uma imagem idealizada, frequentemente desconectada da realidade. A busca incessante por validação externa pode gerar angústia, baixa autoestima e sofrimento psíquico, sobretudo quando o sujeito não corresponde às expectativas narcísicas projetadas. Freud permite compreender esse fenômeno não como uma anomalia, mas como resultado de dinâmicas estruturais do psiquismo humano intensificadas por um modelo sociocultural específico.
A relevância de Freud reside também no modo como ele pensa o sujeito em tensão permanente entre desejo, lei e cultura. Suas ideias desnaturalizam a identidade e mostram que o eu é produto de conflitos inconscientes, de fantasias e de interdições. Isso tem implicações éticas e políticas importantes: pensar o sujeito como dividido e não soberano relativiza o ideal de autonomia plena que perpassa muitos discursos contemporâneos, inclusive no campo jurídico e educacional.
A influência de Freud estende-se para além da teoria psicanalítica e da clínica. Sua obra inaugura uma nova forma de ler o sujeito, que rapidamente se infiltra nas mais diversas expressões culturais. Na literatura, autores como Franz Kafka, Virginia Woolf, Marcel Proust e Clarice Lispector revelam personagens marcados por angústias internas, fluxos de pensamento fragmentados e conflitos inconscientes — elementos que ecoam diretamente a escuta freudiana. Em A metamorfose (1915), Kafka retrata com pungência a experiência de estranhamento do eu, condensando medos, culpas e exclusões que Freud tão bem diagnosticou em suas análises da neurose e da civilização.
Obras literárias influenciadas por Freud: Uma análise comentada
A obra de Sigmund Freud teve um impacto profundo e duradouro sobre a literatura moderna e contemporânea. Seus conceitos sobre o inconsciente, a sexualidade, o recalque, o narcisismo e as pulsões de vida e de morte atravessaram o campo da criação literária, influenciando tanto a forma quanto o conteúdo das narrativas. A influência de Freud estende-se para além da teoria psicanalítica e da clínica. Sua obra inaugura uma nova forma de ler o sujeito, que rapidamente se infiltra nas mais diversas expressões culturais. Na literatura, autores como Franz Kafka, Virginia Woolf, Marcel Proust e Clarice Lispector revelam personagens marcados por angústias internas, fluxos de pensamento fragmentados e conflitos inconscientes — elementos que ecoam diretamente a escuta freudiana. Em A metamorfose (1915), Kafka retrata com pungência a experiência de estranhamento do eu, condensando medos, culpas e exclusões que Freud tão bem diagnosticou em suas análises da neurose e da civilização.
A emergência da psicanálise no final do século XIX não apenas fundou um novo campo clínico e epistemológico, como também deslocou as fronteiras do que se compreende como verdade sobre o sujeito. Freud desestabiliza a imagem racional e transparente do eu moderno, ao propor uma subjetividade marcada por forças pulsionais, desejos recalcados e narrativas fragmentárias. Esse modelo repercute diretamente na linguagem literária, que passa a se construir a partir de lacunas, lapsos e ambiguidades, abrindo espaço para uma nova estética da interioridade. A escuta analítica — atenta ao que escapa, ao que resiste à simbolização — inspira escritores a experimentarem formas textuais que dramatizam o inconsciente em ato.
A seguir, apresentam-se algumas das principais obras literárias atravessadas por essa influência:
Virginia Woolf – Mrs. Dalloway (1925) Woolf utiliza a técnica do fluxo de consciência para revelar os pensamentos mais recônditos de seus personagens. A influência freudiana é perceptível na construção da subjetividade e na forma como o inconsciente se expressa na linguagem e na temporalidade interna da narrativa.
Franz Kafka – A metamorfose (1915) Kafka não foi leitor assíduo de Freud, mas a atmosfera de angústia, culpa e repressão em suas obras dialoga com as estruturas inconscientes descritas pela psicanálise. Em especial, o conflito com a figura paterna, tematizado em Carta ao pai, revela um campo de tensão afim ao complexo de Édipo.
Thomas Mann – A montanha mágica (1924) Leitor atento de Freud, Mann constrói uma obra que problematiza o tempo, a doença, a pulsão de morte e o erotismo como sintomas de uma Europa em crise. O sanatório é apresentado como metáfora do inconsciente e do mal-estar civilizacional.
Hermann Hesse – O lobo da estepe (1927) Explora a dualidade psíquica e os conflitos internos de um sujeito dividido entre a ordem social e seus impulsos mais sombrios. Dialoga com Freud e Jung na construção de uma subjetividade em crise.
Clarice Lispector – A paixão segundo G.H. (1964) Clarice mergulha nos abismos do eu com uma linguagem que beira o indizível. A narrativa aborda o colapso do narcisismo e o confronto com o abjeto de forma que ressoa os escritos freudianos sobre o "estranho" (unheimlich).
Sylvia Plath – A redoma de vidro (1963) Romance fortemente atravessado por experiências de sofrimento psíquico, com uma narradora que explora sua relação com o corpo, o desejo e o vazio. A escrita confessional é inseparável das temáticas freudianas da angústia e da depressão.
Jean-Paul Sartre – A náusea (1938) Embora crítico de Freud, Sartre incorpora e transforma as inquietações sobre o desejo, a liberdade e a existência, aproximando-se de zonas de contato entre a angústia existencial e o inconsciente.
Philip Roth – O complexo de Portnoy (1969) Escrito como uma sessão de análise, o romance tematiza o desejo, a culpa e o recalque sexual. Roth ironiza e dramatiza a herança freudiana na cultura americana do pós-guerra.
André Breton – Manifesto surrealista (1924) O surrealismo bebe diretamente da psicanálise, especialmente da ideia de associação livre. Breton considerava Freud uma referência essencial para explorar o inconsciente através da arte e da poesia.
Italo Svevo – A consciência de Zeno (1923) O romance é estruturado como um relato dirigido a um psicanalista, e parodia o processo analítico. O narrador revela, com humor e ironia, os mecanismos de defesa e os recalques que estruturam sua vida.
Lygia Fagundes Telles – As meninas (1973) A obra entrelaça as vozes de três protagonistas que vivem conflitos internos marcados por traumas, repressões e desejos não realizados. A narrativa lida com lapsos de memória, estados dissociativos e uma busca por sentido que ecoa o inconsciente freudiano.
Caio Fernando Abreu – Os dragões não conhecem o paraíso (1988) Os contos de Caio revelam personagens intensamente marcados pela angústia, pelo desejo e pela dor de existir. O erotismo, a fragmentação do eu e a introspecção profunda se articulam com temas recorrentes da psicanálise.
Hilda Hilst – A obscena senhora D (1982) Em uma linguagem labiríntica e visceral, Hilst constrói uma voz feminina radicalmente introspectiva, onde a pulsão de morte, o gozo e o delírio desestruturam a linearidade narrativa e dão forma ao inconsciente.
Marcel Proust – Em busca do tempo perdido (1913-1927) A monumental obra de Proust explora as memórias involuntárias e os deslocamentos do desejo em uma escrita minuciosamente sensível ao tempo subjetivo. A introspecção radical do narrador e a atenção aos detalhes da experiência interior dialogam com a escuta freudiana do inconsciente.
Julia Kristeva – Sol negro (1987) Embora filósofa e psicanalista, Kristeva também é romancista e sua obra teórica influenciou e foi influenciada por formas literárias. Em Sol negro, ela articula literatura, melancolia e sublimação, propondo uma escuta do sofrimento psíquico a partir da linguagem poética.
A literatura do século XX — e também do XXI — não pode ser pensada sem a marca freudiana. A escuta do inconsciente, a valorização dos lapsos e o reconhecimento da ambiguidade subjetiva abriram novas possibilidades formais e temáticas para a narrativa. Freud não forneceu apenas temas à literatura, mas um método de leitura e criação, que tornou possível explorar o indizível, o traumático e o desejante em todas as suas formas. A tradição freudiana reverbera, portanto, como fundamento e impulso crítico para escritores e escritoras que desejam compreender e dramatizar a complexidade do humano.
No cinema, diretores como Alfred Hitchcock, Ingmar Bergman, Luis Buñuel, David Lynch e Wim Wenders exploram temas centrais à psicanálise freudiana — como o desejo, o sonho, o luto, a perda e a fragmentação do eu. Filmes como Spellbound (1945), de Hitchcock — cujo roteiro contou com consultoria psicanalítica — e Persona (1966), de Bergman, são exemplos de narrativas visuais atravessadas pela linguagem do inconsciente. Freud permitiu ao cinema uma nova forma de narrar: não mais apenas linear e racional, mas aberta à ambiguidade, à associação livre e à densidade simbólica. Em Asas do desejo (Der Himmel über Berlin, 1987), Wenders oferece uma narrativa profundamente melancólica, que capta a solidão existencial e o desejo de conexão humana num mundo marcado pela divisão e pelo silêncio interior. A figura do anjo que escuta os pensamentos dos vivos — sem poder interferir — pode ser lida como uma metáfora do próprio analista, que acolhe o sofrimento sem querer curá-lo de imediato, mas dando-lhe espaço para se dizer. A tensão entre o visível e o invisível, entre o mundo simbólico e a experiência do desejo, aproxima a estética de Wenders da escuta psicanalítica.
Seus filmes, ao privilegiar o silêncio, o tempo suspenso e os afetos subterrâneos, produzem uma narrativa que respeita a complexidade da vida psíquica — marcada por perdas, repetições, deslocamentos e pulsões contraditórias. O cinema de Wenders é, portanto, uma linguagem que acolhe a subjetividade em sua precariedade e profundidade, reforçando a relevância das intuições freudianas para compreender o humano no século XX e XXI.
No teatro, dramaturgos como Arthur Miller, Tennessee Williams, Nelson Rodrigues e Sarah Kane incorporam diretamente conflitos inconscientes, traumas familiares e desejos interditos em suas tramas. Peças como Um bonde chamado desejo e Vestido de noiva revelam como os afetos recalcados e as dinâmicas edípicas estruturam não apenas os personagens, mas as tensões sociais mais amplas.
A náusea (La nausée, 1938), romance de Jean-Paul Sartre, é uma obra-chave para o existencialismo e uma potente expressão literária do sofrimento como efeito da liberdade e da ausência de sentido prévio.
Na poesia, a escuta freudiana encontra ressonância na obra de autores como Sylvia Plath, Fernando Pessoa (com suas múltiplas vozes), e Ana Cristina Cesar, que mergulham na dor psíquica, na cisão subjetiva e nos jogos de linguagem como modos de dar forma ao indizível do inconsciente. A poesia moderna é, em muitos sentidos, uma escrita do sintoma — um modo de presentificar, em palavras, aquilo que escapa à racionalidade plena.
Além disso, a presença de Freud no pensamento do século XX é intensificada pelas leituras críticas e criativas de pensadores como Herbert Marcuse, Jacques Lacan, Julia Kristeva, Paul Ricœur e Michel Foucault cada um relendo o legado freudiano a partir de novos contextos históricos, políticos e epistemológicos. A psicanálise torna-se, assim, não apenas uma prática clínica, mas uma ferramenta crítica para pensar o mal-estar moderno, a constituição da subjetividade e as formas de dominação e resistência que atravessam o laço social.
Em tempos de incerteza, ansiedade e esvaziamento do simbólico, a obra de Freud nos lembra que o sofrimento humano tem estrutura, que o sujeito é efeito de linguagem e que a escuta — atenta, ética, comprometida com o enigma — é uma forma radical de cuidado.
Portanto, ler Freud hoje é confrontar-se com a complexidade da vida psíquica e social. Suas obras permitem compreender o sofrimento como um fenômeno que articula o biológico, o psíquico e o sociocultural, e o narcisismo como uma chave para entender tanto as patologias do indivíduo quanto os mecanismos de poder e dominação. Em tempos de crise da empatia, polarização afetiva e esvaziamento do laço social, a psicanálise freudiana oferece uma linguagem crítica e profunda para pensar o humano em sua dimensão trágica, desejante e conflitiva.
4. O Sofrimento Humano e sua Relevância no Campo dos Direitos Humanos
O sofrimento, embora universal na experiência humana, não é distribuído de forma equitativa. Ele frequentemente decorre de relações de poder desiguais, violações de direitos fundamentais e condições estruturais de opressão. Nesse sentido, o sofrimento é também um fato social e político, e não apenas uma vivência privada ou individual. A teoria dos Direitos Humanos, ao reconhecer a dignidade inerente a todas as pessoas, torna-se um campo central para a denúncia, reparação e prevenção do sofrimento humano evitável.
Um dos primeiros pensadores a abordar a questão do sofrimento no contexto dos direitos humanos — ainda que de forma indireta — foi Jean-Jacques Rousseau (1712–1778). Em obras como Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens (1755) e Do Contrato Social (1762), Rousseau denuncia que o sofrimento humano, especialmente aquele derivado da desigualdade social e da opressão política, não é natural, mas produto da civilização mal organizada.
Para Rousseau, o ser humano em seu estado natural vive em relativa harmonia com suas necessidades e desejos, mas com o surgimento da propriedade privada e das instituições sociais desiguais, o sofrimento moral, a alienação e a injustiça passam a dominar a vida humana. Ele escreve:
“O primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer ‘isto é meu’ e encontrou pessoas bastante simples para acreditá-lo, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil.” (Discurso sobre a Desigualdade, 1755)
Essa crítica radical à origem da desigualdade social foi um dos fundamentos filosóficos da ideia de que a justiça deve se basear na igualdade e na proteção dos mais vulneráveis — ideias centrais que viriam a constituir o arcabouço moderno dos direitos humanos. Para Rousseau, o sofrimento decorrente da desigualdade, da exploração e da perda de liberdade deve ser corrigido por meio de um contrato social justo, no qual a vontade geral assegura a liberdade e a dignidade de todos.
Sua influência é direta nas formulações da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), documento fundacional dos direitos humanos modernos. Nesse sentido, pode-se dizer que Rousseau inaugura uma tradição filosófica que vê o sofrimento causado por estruturas políticas e econômicas injustas como um problema ético e político a ser enfrentado coletivamente.
O sofrimento humano, especialmente quando sistemático e evitável, deve ser compreendido como um sintoma ético e político de violações de direitos fundamentais. Ele aponta para falências estruturais nas garantias de dignidade, liberdade, igualdade e reconhecimento. Fome, miséria, violência estatal, racismo, xenofobia, perseguição política ou religiosa e exclusão de minorias são expressões concretas da negação de direitos humanos básicos, como o direito à vida, à saúde, à moradia, à segurança, à liberdade de expressão e à não discriminação. O sofrimento, nesse contexto, torna-se um índice de injustiça, exigindo resposta institucional e transformação social.
Frantz Fanon, em obras como Os Condenados da Terra (1961) e Pele Negra, Máscaras Brancas (1952), oferece uma leitura seminal sobre o sofrimento como produto direto da violência colonial, da opressão racial e da desumanização sistêmica. Para Fanon, o sofrimento dos sujeitos racializados não é um efeito colateral, mas uma função estrutural do sistema colonial, que transforma corpos negros em objetos, nega sua subjetividade e os inscreve num lugar de permanente dor e exclusão. O sofrimento, nesse caso, é político e corporal, inscrito na carne do sujeito colonizado: “No mundo colonial, o colono fabrica o colonizado como um ser de dor” (FANON, 1961).
Nesse sentido, o sofrimento não apenas denuncia a violação de direitos: ele reivindica reconhecimento e reparação. Judith Butler, em Quadros de Guerra (2009), argumenta que certas vidas são tornadas “inlutuáveis”, ou seja, socialmente desvalorizadas a ponto de seu sofrimento não ser sequer reconhecido como perda legítima. Essa desvalorização de algumas vidas, frequentemente marcada por critérios de raça, classe, nacionalidade ou gênero, é um desafio central aos Direitos Humanos. O reconhecimento do sofrimento, portanto, está no cerne das lutas por igualdade ontológica e justiça global.
Amartya Sen e Martha Nussbaum, com suas teorias das capacidades, reforçam essa leitura ao argumentar que o desenvolvimento humano e a justiça devem ser avaliados pela real possibilidade de as pessoas viverem vidas dignas. Quando indivíduos não podem acessar saúde, educação, segurança ou participação política, isso não é apenas um déficit técnico — é uma violação de direitos, cujos efeitos se manifestam como sofrimento prolongado e evitável (SEN, 1999; NUSSBAUM, 2000).
Paul Farmer, médico e antropólogo, define esse tipo de sofrimento como sofrimento estrutural, ou seja, aquele produzido por condições sociais e políticas desiguais. Ele mostra, a partir de seu trabalho com populações empobrecidas no Haiti e em outros contextos de vulnerabilidade, como a ausência de cuidados básicos de saúde e a pobreza extrema são formas de violência lenta e cumulativa, produzindo sofrimento evitável que deveria ser combatido como uma questão de justiça global (FARMER, 2003).
Pierre Bourdieu contribui com a noção de violência simbólica, que ajuda a compreender como o sofrimento também se impõe através de estruturas invisíveis de dominação, que naturalizam a desigualdade e fazem com que os sujeitos atribuam a si mesmos a culpa por sua exclusão. Essa forma de sofrimento é silenciosa, internalizada e persistente, e exige uma leitura crítica dos mecanismos institucionais, escolares, jurídicos e econômicos que a sustentam.
Por fim, Achille Mbembe, em Necropolítica (2011), amplia a crítica de Fanon ao mostrar como o poder contemporâneo administra o sofrimento de forma seletiva, decidindo quem pode viver e quem deve morrer, ou sofrer. Mbembe mostra como a soberania moderna — inclusive sob regimes democráticos — muitas vezes atua pela produção deliberada de sofrimento, por meio de políticas de abandono, encarceramento, exclusão racial e violência militarizada.
Assim, no campo dos Direitos Humanos, o sofrimento deve ser compreendido como um marcador ético-político central: ele revela onde e como a dignidade humana está sendo negada. Mais do que um dado emocional ou psicológico, o sofrimento é um fato social total, expressão viva das falências civilizatórias de nosso tempo — e, por isso mesmo, deve ser o ponto de partida para qualquer projeto ético, político e jurídico comprometido com a justiça e a igualdade.
4.1. Sofrimento como índice de violação de direitos
O sofrimento, enquanto experiência humana universal, muitas vezes é um reflexo direto de condições sociais, políticas e econômicas injustas. Quando nos deparamos com situações como fome, miséria, violência, exclusão, racismo e perseguições políticas ou religiosas, estamos testemunhando as consequências da ausência ou da negação de direitos humanos fundamentais. Esses direitos incluem o direito à vida, à liberdade, à saúde, à moradia, à segurança e à não discriminação, todos indispensáveis à manutenção da dignidade humana.
O sofrimento, portanto, pode ser compreendido como um indicador ético-político da falência das garantias fundamentais. Em contextos onde tais direitos são violados ou ignorados, o sofrimento torna-se um sinal claro de que as estruturas de proteção e justiça, que devem ser asseguradas pelo Estado e pela sociedade civil, estão ausentes ou são ineficazes.
A compreensão do sofrimento como um sintoma de violação de direitos humaniza a questão e enfatiza a necessidade urgente de uma resposta institucional e coletiva. O sofrimento causado por essas violências não é apenas um evento pessoal ou psicológico, mas um fenômeno social e coletivo que aponta para a falência de sistemas que deveriam garantir a dignidade, a igualdade e a liberdade de todos os indivíduos. Ele exige ações concretas e urgentes para que os direitos humanos sejam respeitados e que a justiça social seja promovida.
Esse entendimento de sofrimento como índice de violação de direitos humanos também conecta o campo dos direitos humanos a uma visão crítica sobre as estruturas de poder, que frequentemente estão por trás das causas da dor e da opressão. Quando o sofrimento é causado ou perpetuado por políticas públicas, normas sociais ou sistemas econômicos e políticos injustos, ele se torna não apenas um desafio individual, mas uma questão política que demanda mudança estrutural e responsabilidade das instituições sociais.
A denúncia do sofrimento como produto da negação de direitos humanos, portanto, não deve ser limitada ao reconhecimento da dor humana, mas deve ser acompanhada de um compromisso com a transformação social e com a promoção de um ambiente de justiça e igualdade. O sofrimento deixa de ser apenas uma experiência privada para se tornar um elemento fundamental na luta por um mundo mais justo e mais humano.
4.2 Sofrimento e desumanização
O sofrimento humano, quando associado a condições extremas de exclusão social e violência estrutural, frequentemente é acompanhado por processos de desumanização. Esses processos envolvem a negação da humanidade de indivíduos ou grupos, tratando-os como descartáveis, invisíveis ou indignos de empatia. O sofrimento, assim, transcende a experiência subjetiva e se torna um fenômeno coletivo, marcado pela indiferença social e pela negação dos direitos fundamentais desses sujeitos. Populações em situação de rua, migrantes, povos indígenas, pessoas negras e comunidades LGBTQIA+ são, frequentemente, alvos de processos de desumanização, onde suas vidas e seus sofrimentos são sistematicamente negados, marginalizados ou ignorados.
Inspirados pelas obras de pensadores como Frantz Fanon, Giorgio Agamben e Simone Weil, é possível argumentar que esse sofrimento extremo não é um fenômeno isolado, mas sim o resultado de sistemas de poder e dominação que marginalizam determinados grupos da sociedade. Frantz Fanon, em sua análise do colonialismo e da opressão racial, destaca que o sofrimento dos colonizados não é um simples efeito colateral, mas um produto da desumanização estrutural imposta pelo sistema colonial. Em Pele Negra, Máscaras Brancas (1952), Fanon descreve como a subjetividade do sujeito colonizado é obliterada, tornando-o um objeto de dor e violência. Para ele, a desumanização está diretamente relacionada à violência física e simbólica que transforma o colonizado em um ser sem valor, privado de sua dignidade e humanidade.
Giorgio Agamben, por sua vez, oferece uma perspectiva crítica sobre a biopolítica e a exclusão, com a introdução do conceito de homo sacer, um ser cuja vida é desprovida de proteção jurídica e social. Em Homo Sacer: O poder soberano e a nudez da vida (1995), Agamben argumenta que, sob regimes modernos de soberania, certas vidas são tratadas como não-humanas, e, portanto, não merecedoras de direitos. O sofrimento dessas vidas excluídas, como os imigrantes, prisioneiros e minorias sociais, é ignorado ou tolerado pelo Estado, refletindo um processo de desumanização que se manifesta na morte simbólica e física desses sujeitos.
Simone Weil, em sua obra A Gravidade e a Graça (1947), acrescenta uma reflexão sobre o sofrimento causado pela privação e pela opressão. Para Weil, o sofrimento extremo não é apenas um problema físico, mas uma questão espiritual e existencial, pois ele tem o poder de despojar o indivíduo de sua humanidade. A desumanização, portanto, não se resume ao ato de negar a dignidade de alguém, mas a um processo profundo de destruição do ser, no qual o sofrimento passa a ser um estado permanente de alienação e impotência.
Esses pensadores nos fornecem uma base teórica para compreender a desumanização como um fenômeno social, econômico e político. Quando o sofrimento é imposto por condições de desigualdade e exclusão, ele se torna uma forma de violência estrutural, cujos efeitos são amplificados por normas sociais, políticas públicas e sistemas econômicos que perpetuam a marginalização de grupos vulneráveis. O sofrimento dessas populações é muitas vezes invisibilizado, tornando-se uma questão política que exige uma resposta ética e institucional.
Dentro do campo dos Direitos Humanos, a desumanização é vista como uma violação da dignidade humana e um desafio à justiça social. Os Direitos Humanos buscam reconhecer a humanidade daqueles que, por algum motivo, foram descartados pela sociedade. Para que o sofrimento seja efetivamente reconhecido e transformado em uma demanda política, é necessário restaurar a voz e a dignidade dos sujeitos desumanizados, criando condições que permitam o acesso a direitos básicos como saúde, educação, segurança e liberdade. Em vez de ser tratada como uma questão individual, a dor desses sujeitos deve ser entendida como parte de uma luta coletiva, onde a dignidade humana e a justiça social são o ponto de partida para a transformação das condições que geram sofrimento e exclusão.
Portanto, compreender o sofrimento no contexto da desumanização é reconhecer que ele não é apenas uma questão de dor individual, mas um reflexo de injustiças estruturais que devem ser combatidas por meio de uma ação política e coletiva. O reconhecimento do sofrimento como uma violação dos direitos humanos exige uma resposta institucional que vá além da caridade ou da assistência paliativa, promovendo uma transformação social que garanta a dignidade, a igualdade e a liberdade para todos os indivíduos, independentemente de sua origem, raça, gênero ou classe social.
4.3 Sofrimento e memória histórica
O sofrimento humano causado por regimes autoritários, guerras e genocídios constitui um dos capítulos mais sombrios da história contemporânea. Em muitos desses contextos, a dor das vítimas é sistematicamente silenciada, negada ou esquecida, como parte de uma estratégia política de apagamento da memória coletiva. A violação extrema dos direitos humanos — torturas, desaparecimentos forçados, assassinatos em massa e perseguições étnicas ou ideológicas — não apenas inflige dor imediata, mas também compromete o direito das vítimas e das sociedades à reconstrução simbólica e à justiça.
Nesse cenário, os Direitos Humanos desempenham um papel crucial na preservação e reconhecimento do sofrimento histórico, por meio de mecanismos institucionais que visam assegurar o direito à verdade, à justiça e à reparação.
A memória histórica, nesse contexto, não é apenas um resgate do passado, mas uma ação política no presente. Como argumenta Paul Ricoeur (2000), a memória tem uma função ética ao permitir que o sofrimento não seja esquecido nem banalizado. A lembrança das vítimas constitui, portanto, um dever coletivo: trata-se de reconhecer o valor da vida humana ferida e de afirmar a dignidade daqueles que foram brutalmente desumanizados. A negação da memória, por outro lado, perpetua a violência, impede o luto e inviabiliza a reparação.
Inspirando-se no pensamento de Walter Benjamin, pode-se afirmar que a história oficial, frequentemente escrita pelos vencedores, tende a apagar as experiências de dor daqueles que foram derrotados ou silenciados. Benjamin (1940) sustenta que é tarefa da crítica recuperar as vozes do passado, sobretudo aquelas que foram esmagadas pelas estruturas de dominação. Nesse sentido, preservar a memória do sofrimento é também um ato de resistência política contra o esquecimento imposto pelo poder.
A partir desse imperativo ético-político, os mecanismos de justiça transicional têm desempenhado um papel fundamental. As comissões da verdade, como a Comissão Nacional da Verdade no Brasil (2011–2014), os tribunais internacionais — como o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (TPII) e para Ruanda (TPIR) — e os museus da memória — como o Museu da Memória e dos Direitos Humanos no Chile — são expressões institucionais da tentativa de romper com a impunidade e dar visibilidade ao sofrimento histórico. Esses instrumentos têm como objetivo reconhecer formalmente os crimes cometidos, responsabilizar os perpetradores e oferecer às vítimas uma forma de reparação simbólica e material.
Judith Herman (1992), em sua obra Trauma and Recovery, enfatiza que o reconhecimento público do sofrimento é parte essencial do processo de cura das vítimas. Sem esse reconhecimento, a violência se repete na forma de esquecimento institucional e revitimização. A reparação, portanto, não diz respeito apenas à compensação econômica, mas também à reconstrução do tecido social e à revalorização da dignidade humana destruída.
O direito à memória está consagrado em diversos documentos internacionais, como os Princípios Joinet/Orentlicher da ONU (2005), que articulam os pilares da justiça transicional: direito à verdade, à justiça, à reparação e à garantia de não repetição. Esses princípios reconhecem que o sofrimento das vítimas deve ser inscrito na história oficial, como condição para a reconstrução democrática de sociedades marcadas por crimes de massa.
Em suma, o sofrimento histórico, quando reconhecido e preservado pela memória coletiva, transforma-se em fundamento ético para a construção de um futuro mais justo. Os Direitos Humanos, ao promover o direito à verdade e à reparação, tornam-se ferramentas fundamentais não apenas para denunciar as violências do passado, mas para impedir que elas se repitam. A memória, nesse contexto, não é apenas lembrança, mas justiça em movimento.
4.4 A Ética da Escuta e o Sofrimento: Reconhecimento e Responsabilidade no Campo dos Direitos Humanos
A escuta do sofrimento alheio, mais do que um gesto de empatia individual, pode ser concebida como um imperativo ético e político. Filósofos como Emmanuel Levinas e Paul Ricoeur fundamentam essa ideia ao propor que a relação com o outro — especialmente com aquele que sofre — deve ser atravessada por responsabilidade e reconhecimento. No campo dos Direitos Humanos, essa abordagem oferece uma base filosófica potente para a construção de políticas públicas que levem em conta a dignidade e a vulnerabilidade humana, abrindo espaço para uma escuta ética e transformadora.
Para Levinas (1993), o rosto do outro — sobretudo do outro que sofre — convoca o sujeito a uma responsabilidade que antecede qualquer contrato ou norma jurídica. O sofrimento do outro é, nesse sentido, inegociável e irrecusável; ele exige resposta. Essa ética da alteridade, centrada na vulnerabilidade, desloca o foco da justiça abstrata para a atenção concreta ao outro real e encarnado. Escutar o sofrimento, nesse contexto, não é um ato passivo ou compassivo, mas uma forma ativa de responder à interpelação ética que o outro dirige ao sujeito. Trata-se de uma justiça que nasce da proximidade e da escuta, e não da indiferença ou da neutralidade.
Paul Ricoeur (2005) amplia esse horizonte ao pensar o reconhecimento como uma prática que não se limita ao conhecimento do outro, mas à valorização de sua dignidade e singularidade. Escutar o sofrimento é reconhecer no outro sua condição de sujeito digno, e não apenas de vítima. A escuta, portanto, transforma-se em um ato político de validação da experiência alheia e de abertura para sua inscrição no espaço público. Esse reconhecimento é essencial para que os sujeitos historicamente marginalizados — como vítimas de violência, pobreza, racismo ou exclusão institucional — possam ter suas vozes ouvidas e seus direitos reivindicados.
Essa ética da escuta também tem implicações práticas no campo dos Direitos Humanos. Ela exige o desenvolvimento de políticas públicas que não apenas respondam tecnicamente às necessidades básicas, mas que também sejam capazes de acolher e traduzir as experiências de sofrimento em ações sensíveis, inclusivas e reparadoras. Escutar é uma forma de resistência à desumanização, ao silenciamento e à negação da dor. É, em última instância, uma forma de cuidado institucional que reconhece a centralidade da experiência vivida como critério de justiça.
Como enfatiza Sandra Harding (1987), o conhecimento situado — aquele que parte das experiências concretas dos sujeitos — é indispensável para a construção de uma prática política mais justa. Nesse sentido, políticas públicas baseadas na escuta ética são também formas de epistemologia política, pois valorizam os saberes produzidos a partir do sofrimento e da exclusão. Trata-se de reconhecer que as vozes historicamente silenciadas têm algo a dizer sobre o mundo e sobre as formas de transformá-lo.
Em síntese, a escuta do sofrimento se configura como um elemento central na ética dos Direitos Humanos contemporâneos. Ela não se limita a uma atitude moral individual, mas deve ser incorporada como fundamento de práticas institucionais e políticas comprometidas com o reconhecimento, a dignidade e a justiça. Escutar é, portanto, reconhecer a humanidade do outro e abrir caminhos para sua reparação.
4.5 O Risco da Instrumentalização do Sofrimento: Entre Ressentimento e Justiça Social
Embora o sofrimento humano deva convocar à escuta, à solidariedade e à reparação, é fundamental reconhecer que ele também pode ser manipulado politicamente. Longe de ser apenas uma experiência íntima ou existencial, o sofrimento coletivo, sobretudo em contextos de colapso institucional, crise econômica ou insegurança social, torna-se um terreno fértil para sua apropriação por forças autoritárias que nele enxergam um recurso estratégico. A extrema direita tem se destacado nesse processo, convertendo frustrações legítimas em combustível para agendas de exclusão, intolerância e violência.
Estudiosos como Wendy Brown (2009), Jason Stanley (2018) e Enzo Traverso (2019) demonstram que o ressentimento social, alimentado por desigualdades históricas e pela percepção de abandono, pode ser mobilizado como capital político. Em vez de transformar a dor coletiva em solidariedade ou em força propulsora de justiça, determinadas forças políticas a reconfiguram em discurso de vitimização e perseguição, redirecionando o sofrimento contra minorias, migrantes, mulheres, pessoas LGBTQIA+, povos indígenas e outros grupos sistematicamente marginalizados.
Essa operação discursiva depende da criação de "inimigos internos" nos quais se deposita a causa do mal-estar social. Como aponta Stanley (2018), regimes de tipo fascista se nutrem da fantasia de que há um “nós autêntico” sendo ameaçado por um “outro corruptor”, e que, portanto, é preciso restaurar a ordem por meio da exclusão, da violência ou do autoritarismo. O sofrimento, nesse cenário, deixa de ser acolhido como uma realidade compartilhada da condição humana para se tornar justificativa de políticas de brutalidade simbólica e material.
É nesse ponto que recuso o uso acrítico da categoria invisíveis. Em minha leitura, trata-se de um termo que, ao deslocar a atenção da dor vivida para o olhar de quem não vê, corre o risco de transformar a negação em um fenômeno neutro ou bilateral — como se a ausência de reconhecimento fosse resultado de uma condição mútua, e não de uma assimetria de poder. Dizer que alguém é “invisível” frequentemente encobre o fato de que há sujeitos que se expõem, que se rasgam, que reivindicam, que gritam — diante de estruturas que deliberadamente se recusam a escutar. Não há invisibilidade dos dois lados. Há, de um lado, a insistência em existir; de outro, a recusa em reconhecer.
Judith Butler (2016) oferece uma contribuição decisiva para compreender essa lógica. Em Quadros de Guerra, ela analisa os regimes de reconhecimento e a gestão seletiva do luto. Certas vidas — notadamente as precárias, racializadas, dissidentes — são tornadas indignas de pesar público, excluídas do campo da comoção legítima. A dor desses sujeitos não é invisível; ela é ativamente desautorizada. Trata-se de uma política que define quem pode ser ferido e lamentado de forma pública, e quem será silenciado mesmo na sua morte. A invisibilidade, portanto, não é uma condição ontológica, mas o produto de uma economia moral e política que hierarquiza os corpos e os sofrimentos.
Por isso, ao invés de invisíveis, prefiro categorias que deem conta da violência implicada na recusa sistemática do reconhecimento: apagamento, desautorização, silenciamento, recusa de reconhecimento. Tais termos preservam a historicidade do conflito e evidenciam que o sofrimento não se dissolve por falta de visibilidade, mas é capturado, hierarquizado, instrumentalizado. E essa operação não é neutra: ela é marcada por afetos seletivos, por discursos de ameaça e pureza, e por interesses políticos que delimitam quem merece ser visto, ouvido, cuidado — e quem deve ser ignorado, silenciado ou eliminado.
A abordagem dos Direitos Humanos propõe um caminho inverso. Em vez de instrumentalizar a dor para justificar a exclusão, ela a reconhece como ponto de partida ético e político. O sofrimento, nesse horizonte, não é convertido em ressentimento, mas mobilizado como apelo à justiça, ao diálogo e à reconstrução de vínculos sociais e comunitários. O desafio contemporâneo, nesse sentido, é resistir à conversão da dor em ódio e reafirmar sua potência política como convite ao cuidado e à dignidade.
Diante da manipulação populista do sofrimento, os Direitos Humanos devem atuar como horizonte crítico, capaz de distinguir entre o reconhecimento legítimo da dor e seu uso para fins autoritários. Nessa distinção, reside a possibilidade de defender a centralidade da dignidade humana como fundamento não negociável das políticas públicas e da vida democrática.
4.6. Racismo, Sofrimento e Direitos Humanos: Uma Abordagem Crítica
O racismo, em suas múltiplas formas — estrutural, institucional, simbólico e interpessoal —, é uma das fontes mais persistentes e profundas de sofrimento humano. Ele nega a dignidade, restringe liberdades, perpetua desigualdades históricas e impede o acesso equitativo a direitos fundamentais. Nesse contexto, o sofrimento racializado não é uma exceção, mas um produto sistemático da organização social excludente e violenta, cuja superação é um dos maiores desafios contemporâneos no campo dos Direitos Humanos.
Autores como Frantz Fanon (1961), Angela Davis (1981) e Achille Mbembe (2011) destacam como o racismo estrutura as relações sociais, hierarquizando vidas e definindo quais corpos são protegidos ou expostos à precariedade. Fanon, em Os Condenados da Terra, descreve a experiência colonial como uma máquina de desumanização racial, onde o sofrimento psíquico e físico dos povos colonizados é um produto deliberado da dominação.
Mbembe, por sua vez, introduz o conceito de necropolítica para descrever como o poder contemporâneo decide quem pode viver e quem deve morrer, com base em marcadores raciais. Populações negras, indígenas e periféricas são frequentemente sujeitas a um regime de vida precária, em que o sofrimento se torna norma: são mais expostas à violência policial, à miséria, à exclusão dos sistemas de saúde, educação e justiça.
O sofrimento decorrente do racismo deve ser lido como um sinal ético-político da violação sistemática de direitos humanos. Quando pessoas negras são vítimas de genocídio policial, encarceramento em massa, mortalidade evitável, desemprego estrutural e discriminação cotidiana, não se trata apenas de episódios isolados, mas da falência de princípios como igualdade, dignidade, liberdade e reconhecimento. Nesse sentido, o racismo compromete diretamente a eficácia dos direitos humanos universais.
A filósofa estadunidense bell hooks (1995) argumenta que o racismo, combinado com o sexismo e o classismo, produz um sofrimento interseccional que exige respostas igualmente complexas e sensíveis. Segundo ela, ignorar essas intersecções é perpetuar uma concepção abstrata e ineficaz de direitos, que não responde à realidade concreta de sujeitos racializados.
A luta antirracista no campo dos Direitos Humanos também é uma luta por memória e reparação. Como aponta Sueli Carneiro (2003), o sofrimento da população negra no Brasil está profundamente enraizado em séculos de escravidão, silenciamento histórico e exclusão pós-abolição. O reconhecimento desse sofrimento exige políticas públicas afirmativas, inclusão representativa, acesso à justiça e mudanças profundas nos currículos educacionais e na cultura institucional.
Projetos como comissões da verdade sobre a escravidão, monumentos à resistência negra e legislação antirracista são estratégias fundamentais para inscrever esse sofrimento na memória coletiva e impedir sua naturalização. O racismo não pode ser enfrentado apenas no nível individual ou moral, mas por meio de transformações institucionais que garantam a igualdade substancial entre os sujeitos.
Diante da persistência do racismo, os Direitos Humanos são convocados a se reconfigurar de forma crítica e radical. Não basta enunciar princípios de igualdade se esses não forem acompanhados de instrumentos efetivos de denúncia, reparação e redistribuição. O sofrimento causado pelo racismo é um lembrete da distância entre o ideal universal e a realidade vivida por milhões de pessoas.
Portanto, enfrentar o racismo é condição para a realização plena dos Direitos Humanos. Isso implica escutar o sofrimento das populações racializadas, reconhecer suas lutas históricas e incorporar suas demandas no centro das políticas públicas, da produção de conhecimento e da vida democrática.
4.7 O Patriarcado, o Sofrimento e os Direitos Humanos
Compreender o sofrimento imposto às mulheres e meninas exige um retorno às raízes históricas e simbólicas da dominação masculina. O patriarcado, enquanto sistema, não é uma contingência cultural localizada ou um resíduo de tradições arcaicas. Trata-se de uma estrutura de poder persistente, que se fundou na organização das relações sociais a partir da centralidade do homem — do pai — e que, ao longo dos séculos, naturalizou a desigualdade, a obediência e a dor como condições femininas legítimas.
O termo “patriarcado” tem origem no grego antigo: patriarkhēs, de patḗr (pai) e arkhē (domínio, comando). Desde a etimologia, o conceito já carrega a ideia de autoridade masculina como princípio fundador da organização social. No mundo antigo, tanto nas tradições hebraicas quanto nas estruturas familiares greco-romanas, o homem mais velho — o patriarca — detinha poder absoluto sobre a família, os bens e os corpos. As mulheres eram posse, herança, dote, ventre útil, e raramente sujeitos de si mesmas.
No entanto, o patriarcado ultrapassa o âmbito doméstico. Ele se consolida historicamente com o surgimento da propriedade privada e da divisão sexual do trabalho, como demonstra Gerda Lerner (1986) em The Creation of Patriarchy. Para a autora, o patriarcado não é uma consequência biológica, mas uma construção social deliberada, forjada para assegurar o controle masculino sobre a reprodução, a sexualidade e o trabalho feminino. Instituições religiosas, jurídicas e políticas contribuíram para sua legitimação, sacralizando o poder dos homens e culpabilizando as mulheres por sua própria dor — como no mito de Eva, cuja “queda” teria aberto as portas ao sofrimento humano.
A partir dessa fundação, a dor das mulheres deixa de ser um desvio para tornar-se um destino. A desigualdade se naturaliza, e o sofrimento se torna parte do que se espera do feminino. Esse sistema produz e reproduz um modelo em que a subordinação da mulher é tão estrutural quanto invisível. A menina aprende desde cedo a conter seus desejos, a obedecer, a se calar. A mulher, já moldada pela renúncia, se torna sujeito da dor e objeto do outro, privada de sua autonomia e de sua voz.
O patriarcado opera, assim, como um regime simbólico que transforma o sofrimento em instrumento de ordem. Mais do que permitir ou tolerar a dor das mulheres, ele a necessita: o sofrimento feminino confirma a hierarquia, garante a continuidade da dominação e oferece ao homem um gozo perverso de posse, de controle e de afirmação identitária. A dor da mulher é, nesse sistema, uma moeda de poder.
Romper com o patriarcado não é, portanto, apenas uma luta por igualdade formal. É uma ruptura com a gramática simbólica da dor imposta e do silêncio imposto. É um enfrentamento direto contra a história que nomeou o homem como centro e a mulher como ausência — como costela, como falta, como função. E é nessa ruptura que reside a possibilidade de uma nova linguagem para a existência feminina, onde o sofrimento não seja mais condição, mas lembrança de uma estrutura a ser superada.
O patriarcado, enquanto uma estrutura social e política profundamente enraizada nas relações de gênero, tem sido identificado como um dos maiores pilares das desigualdades e violências estruturais nas sociedades contemporâneas. Este sistema, que prioriza e sustenta o poder masculino, resulta em um sofrimento contínuo e sistemático para as mulheres, minorias de gênero e outros grupos marginalizados. Pierre Bourdieu (1998) identifica o patriarcado como uma violência simbólica que é internalizada pelas próprias vítimas, dificultando a conscientização sobre a opressão que sofrem. Essa violência simbólica, presente nas práticas cotidianas e nas instituições sociais, perpetua a desigualdade e a exclusão, contribuindo para um ciclo contínuo de sofrimento.
Claude Lévi-Strauss, em suas investigações sobre as estruturas de parentesco, contribui para a compreensão das raízes do patriarcado, ao destacar como as relações familiares e a troca de mulheres foram historicamente fundamentais na construção das hierarquias de gênero. Para Lévi-Strauss (1949), a subordinação das mulheres nas primeiras organizações sociais foi um dos principais mecanismos que institucionalizou o patriarcado, tornando-o uma das estruturas mais perenes nas sociedades humanas. A troca de mulheres, com sua imposição de normas de subordinação, moldou o sistema de dominação masculina, que ainda se reflete nas práticas sociais contemporâneas.
Judith Butler, por sua vez, oferece uma abordagem performativa para a compreensão do gênero. Em Problemas de Gênero (1990), Butler argumenta que o gênero é uma construção social que se realiza por meio de atos repetidos, e que o sofrimento das mulheres é uma consequência direta da imposição de papéis de gênero rígidos. Segundo a autora, a imposição desses papéis cria uma normatividade que limita a liberdade e a autodeterminação das mulheres, resultando em sofrimento não apenas individual, mas social e coletivo. A repetição dessas normas, ao longo do tempo, reforça a subordinação das mulheres e a opressão que se materializa em diversas formas de violência, como a violência doméstica, o feminicídio e a discriminação no mercado de trabalho.
O sofrimento causado pelo patriarcado não se limita à violência física, mas se estende ao sofrimento psíquico e emocional. Michel Foucault (1988), ao investigar as relações de poder e as formas de controle social, argumenta que o patriarcado se sustenta por uma rede de micro-poderes que disciplinam os corpos e as mentes. Essas redes de poder se manifestam nas instituições sociais e nas normas cotidianas que regulam o comportamento, os corpos e as emoções das mulheres. A normalização da subordinação das mulheres, operada pelas instituições, como a escola, a igreja e a família, faz com que o sofrimento das mulheres se torne uma condição de normalidade social.
Rita Laura Segato, ao analisar as dimensões culturais e sociais do patriarcado, destaca que esse sistema não é uma estrutura que possa ser isolada em momentos históricos específicos, mas sim um sistema profundamente enraizado na cultura e nas instituições. Em A Escrita nas Entrelinhas (2012), Segato argumenta que o patriarcado se perpetua por meio de normas e práticas sociais que naturalizam a desigualdade entre os sexos, subjugando as mulheres a uma posição inferior. A autora afirma que a violência contra as mulheres — seja ela física, sexual ou simbólica — é uma manifestação direta dessa estrutura, sendo usada como um mecanismo de controle social para manter as desigualdades de gênero. Para Segato, o patriarcado não se limita ao controle físico, mas se estende ao controle simbólico, sendo sustentado por um sistema de valores que reforça a ideia de que as mulheres são corpos subalternos, invisíveis ou descartáveis.
O patriarcado, além de ser uma estrutura de dominação cultural e social, representa uma violação estrutural dos direitos humanos. O conceito de direitos humanos, que se fundamenta na proteção da dignidade, da liberdade e da autonomia dos indivíduos, é diretamente atacado pelas estruturas patriarcais que limitam o acesso das mulheres a direitos fundamentais, como segurança, saúde, educação e liberdade. O patriarcado impede a autonomia das mulheres e perpetua a desigualdade entre os gêneros, colocando em risco o bem-estar das mulheres, especialmente aquelas em situação de vulnerabilidade. Nesse contexto, os direitos humanos desempenham um papel crucial na luta contra a opressão patriarcal. O reconhecimento das múltiplas formas de violência e discriminação sofridas pelas mulheres é essencial para a transformação dessas estruturas opressivas. Segato (2012) argumenta que a luta pelos direitos humanos das mulheres deve ser também uma luta contra as estruturas de opressão que sustentam o patriarcado, defendendo a criação de políticas públicas que garantam a igualdade de gênero e protejam as mulheres contra a violência estrutural.
A luta contra o patriarcado exige, portanto, uma análise profunda das estruturas de poder que sustentam esse sistema. Para isso, é necessário um esforço coletivo que envolva tanto a desconstrução das normas culturais que sustentam o patriarcado quanto a criação de espaços de resistência e protagonismo feminino. A transformação das relações de gênero, como propõe Segato, passa pela reestruturação das instituições sociais e políticas, e pela promoção de uma cultura de igualdade e respeito aos direitos humanos. Além disso, a transformação das normas de gênero e o reconhecimento da diversidade sexual são questões fundamentais para o enfrentamento das formas mais sutis de dominação que perpetuam o sofrimento e a exclusão de grupos marginalizados.
Em síntese, o patriarcado, como uma estrutura profundamente enraizada nas instituições sociais e culturais, é responsável pela perpetuação do sofrimento das mulheres e das minorias de gênero. O trabalho de pensadores como Pierre Bourdieu, Judith Butler, Michel Foucault, Claude Lévi-Strauss e Rita Segato oferece uma compreensão mais aprofundada dos mecanismos de dominação que sustentam o patriarcado, permitindo a construção de um quadro teórico que pode contribuir para a promoção de mudanças sociais e políticas. Ao integrar essas reflexões no campo dos direitos humanos, podemos avançar na construção de uma sociedade mais justa e igualitária, na qual as mulheres e todos os indivíduos possam usufruir plenamente de seus direitos, livres das amarras do patriarcado.
4.7.1 Subalternidade Patriarcado e o Sofrimento das Mulheres
No mito judaico-cristão da criação, a arquitetura patriarcal da subordinação feminina se manifesta de modo emblemático e simbólico. Eva não nasce como uma criatura autônoma, criada diretamente pelo sopro divino, como Adão. Ela é gerada a partir da costela de Adão, o que a posiciona simbolicamente como sua filha — um sujeito derivado, subordinado e fruto dele mesmo. Esse processo revela que Adão gera sozinho sua filha, instaurando uma relação de dependência e subalternidade desde a origem.
Esse vínculo fundador configura que Adão é pai: Eva e filha. E posteriormente, assume a posição de esposa de Adão, numa lógica que mascara e naturaliza uma relação de dominação paternal travestida de conjugalidade. Eva não é criada a partir da falta do mundo, mas da carência de Adão — ela emerge para suprir uma ausência no sujeito masculino. O mito da criação, nesse sentido, inaugura uma economia dos afetos fundada na desigualdade: Eva é constituída como resposta à incompletude do homem, e não como sujeito pleno em si. Desde a origem, o desejo masculino organiza a existência da mulher como suplencia, como outra destinada ao cuidado, à companhia e ao preenchimento de uma demanda que não lhe pertence. Essa fundação mítica reverbera nas estruturas sociais que seguem distribuindo, de forma assimétrica, as funções do afeto, do reconhecimento e do sofrimento. Essa condição estrutural funda o sofrimento feminino como uma imposição histórica e simbólica, que legitima sua vulnerabilidade, sua dor e sua exclusão.
Essa leitura propõe que Eva seja compreendida antes como filha, extensão e propriedade de Adão, evidenciando a profundidade simbólica da dominação patriarcal. Ao invés de um par, a mulher é construída como um “outro” subordinado, cuja identidade e legitimidade são condicionadas à figura masculina. Essa organização simbólica da origem revela não apenas a subalternidade feminina, mas a instauração de um incesto fundador, no qual a filha é transformada em esposa, mascarando a violência estrutural com a aparência de complementaridade. Trata-se de uma arquitetura da dominação que nasce da genealogia interrompida da mulher — que não é criada por Deus, mas retirada do corpo de um homem.
Assim, o sofrimento feminino não é apenas biológico ou circunstancial, mas está inscrito numa estrutura simbólica e política que determina a mulher como subordinada e dependente. Essa construção simbólica legitima práticas sociais, religiosas e culturais que negam a autonomia feminina e naturalizam sua dor, perpetuando ciclos de exclusão e violência.
Compreender essa dimensão é fundamental para desconstruir o patriarcado e abrir espaço para um lugar autônomo e legítimo para as mulheres, livre das amarras simbólicas que as definem como derivadas, secundárias e subalternas. Somente a partir dessa análise crítica será possível reverter a instrumentalização do sofrimento feminino e promover uma justiça social efetiva e inclusiva.
4.7.2 Mulheres como Interlocutoras do Mal: A Arquitetura Mítica do Patriarcado Religioso
No cerne das narrativas fundacionais de muitas religiões está uma estrutura simbólica que associa as mulheres ao mal, à desordem e à perda da inocência. Essa associação, longe de ser apenas uma fábula ancestral, constitui o alicerce de um sistema que naturaliza a desigualdade de gênero, inscrevendo-a como desígnio divino e destino ontológico. No mito judaico-cristão da criação, essa arquitetura é particularmente evidente: a mulher não nasce de um sopro direto de Deus, mas da costela de um homem. Já não é criatura autônoma, mas derivada e subalternizada. É simultaneamente filha, extensão e propriedade dele.
Essa mulher, Eva, será também aquela por quem o mal entra no mundo. É ela quem dialoga com a serpente, quem cede à tentação, quem convence o homem a comer do fruto proibido — e, com isso, inaugura a dor, o exílio, o trabalho como castigo e, sobretudo, a finitude. A mulher, portanto, carrega o peso simbólico da queda. Não apenas subalterna, mas culpabilizada. Não apenas criada a partir do homem, mas tida como aquela que o corrompe, que lhe tira a paz, a saúde, a imortalidade.
É igualmente revelador que seja a mulher, ao dialogar com a serpente — símbolo do saber interditado —, quem primeiro acesse o desejo, o conhecimento e a transgressão. Ao oferecer o fruto a Adão, ela não apenas rompe uma ordem divina, mas introduz o homem à experiência do desejo, à vida sexual, à consciência do corpo e da finitude. O sexo, portanto, não é um impulso que nasce espontaneamente no homem, mas um saber que lhe é apresentado pela mulher. O desejo masculino, nesse mito, deriva do gesto feminino. Assim, o feminino passa a carregar a marca da origem do prazer, da culpa e da punição, num ciclo que legitima sua dominação ao mesmo tempo em que a responsabiliza por tudo aquilo que escapa ao controle da norma.
Esse mito é menos sobre o passado e mais sobre a legitimação do presente: ele estabelece um regime de gênero no qual as mulheres são vistas como ameaça latente à ordem masculina. E o fazem, não porque sejam ativas, perigosas ou transgressoras por escolha, mas porque são, em sua essência, o canal por onde o mal se manifesta. Em diversas outras tradições religiosas — ainda que com variações — reaparece essa mesma estrutura: as mulheres como sedutoras, impuras, portadoras do caos, responsáveis por desviá-los da verdade, da pureza, da elevação espiritual.
Na base do patriarcado religioso, portanto, há uma pedagogia teológica da desconfiança: educa-se para temer as mulheres, para dominá-las em nome da ordem, da moral, da santidade. Cria-se um imaginário no qual a masculinidade é sinônimo de racionalidade e transcendência, enquanto o feminino é o domínio do corpo, da carne, da queda. O controle dos corpos femininos — sua sexualidade, seus desejos, sua fala — torna-se um imperativo espiritual e político.
É nesse cenário que os lugares atribuídos às mulheres nos textos sagrados não podem ser lidos apenas como histórias antigas, mas como estruturas de subjetivação ainda ativas. Quando o espaço das mulheres nas narrativas fundadoras é o da culpa, da obediência ou da punição, não se trata de metáfora inofensiva, mas de gramática simbólica que molda a forma como elas serão percebidas, julgadas e tratadas ao longo da história.
Por isso, é urgente construir uma crítica teológica, feminista e descolonial que revele essas camadas de opressão inscritas nos mitos e rituais religiosos. Ao fazer isso, não se trata de negar o valor espiritual das tradições, mas de desvelar os mecanismos pelos quais elas foram cooptadas — ou mesmo fundadas — para sustentar a dominação masculina. É preciso, portanto, criar um outro lugar para as mulheres: não mais o da obediência culpada, mas o da reconstrução crítica de sua presença no mundo, em suas potências políticas, espirituais e epistemológicas.
4.7.3 O Sofrimento das Mulheres no Patriarcado Religioso: Estrutura, Culpa e Violência Simbólica
O sofrimento das mulheres, longe de ser um fenômeno acidental ou meramente biológico, é resultado de uma construção histórica e simbólica fundamentada em estruturas patriarcais profundas, que se consolidam nas tradições religiosas e atravessam toda a organização social. No mito fundacional do Gênesis, a mulher é representada como aquela que fala com o mal, que seduz e desestabiliza a ordem. Eva não é apenas a primeira a pecar; ela é a fonte da perda da inocência, da pureza, da paz e até da imortalidade do homem. A dor feminina é então inscrita como uma punição, uma dívida perpétua, uma maldição que a sustenta e legitima sua subalternidade.
Essa narrativa não apenas subordina as mulheres ao homem — originando-se da sua própria costela e, portanto, marcando-as como dependentes e secundárias —, mas também lhes atribui a responsabilidade pela corrupção da ordem e da harmonia originais. O masculino é construído como a esfera da inocência, da pureza pré-sexual e da racionalidade, enquanto o feminino é erotizado e demonizado, entendido como a ameaça permanente que deve ser contida e punida. Assim, o sofrimento das mulheres não é simplesmente aceito; ele é exigido como condição para a manutenção dessa ordem.
O sofrimento feminino é, portanto, uma dor dupla: imposta e deslegitimada. Ele é imposto pelo controle sobre seus corpos, desejos e vozes; é deslegitimado pela forma como sua dor é desqualificada — lida como histeria, fraqueza, exagero, culpa. Essa violência simbólica desautorizadora é central para a perpetuação do patriarcado, que não tolera que as mulheres ocupem o lugar de vítimas reconhecidas, tampouco que expressem sua resistência. O sofrimento delas é silenciado, apagado, transformado em ruído.
É nesse ponto que minha crítica avança além da noção comum de invisibilidade: as mulheres não são invisíveis. Elas se expõem, clamam, denunciam. O que há é uma recusa ativa, sistemática, estrutural, em reconhecê-las. Não há uma invisibilidade simétrica ou passiva, mas uma política de apagamento — uma gestão seletiva da dor feminina que a torna ilegítima diante do olhar social e institucional. A recusa em vê-las é uma estratégia de poder, que visa manter intactas as estruturas que as oprimem.
Judith Butler (2016), ao analisar os regimes de reconhecimento e a seletividade do luto, fornece um aporte teórico fundamental para essa reflexão, ao mostrar como certos corpos — racializados, femininos, dissidentes — são desautorizados em seu sofrimento. Contudo, afirmo que essa desautorização, no caso das mulheres, é uma prática histórica, política e religiosa que sustenta o patriarcado e seu controle sobre a vida, a morte e o sofrimento. Não se trata de um simples fenômeno social, mas de uma operação simbólica profundamente enraizada que naturaliza a dor feminina como destino e silencia sua dimensão política.
Rejeito, portanto, a banalização do termo “invisíveis” para descrever essa realidade. Prefiro conceitos que expressem o apagamento, a desautorização e a recusa deliberada em reconhecer a dor que está à mostra — visível e pulsante, porém negada. O sofrimento das mulheres não é um vazio, mas um território de violência, resistência e produção de subjetividades que desafiam a ordem patriarcal.
A luta contra essa lógica exige uma crítica radical, que reconheça o sofrimento feminino como central para a compreensão das dinâmicas de poder e para a construção de alternativas emancipatórias. O corpo da mulher não é o lugar da perdição, mas o campo onde se trava a batalha contra o sofrimento imposto, um espaço de resistência contra a lógica do apagamento e da negação.
4.7.4 A desigualdade de gênero como estrutura global de sofrimento
O sofrimento feminino, em escala global, não é um acaso histórico ou um efeito colateral de processos sociais em curso. Ele é produto de uma arquitetura estrutural de desigualdade, forjada por séculos de organização patriarcal da vida econômica, simbólica e política. Em todas as sociedades contemporâneas — ainda que em graus distintos — as mulheres ocupam posições desvantajosas e sofrem com múltiplas formas de violência, exclusão e sobrecarga. Esse sofrimento, naturalizado e muitas vezes invisibilizado, é político e estrutural, não acidental nem biológico.
Segundo o Relatório Global sobre a Desigualdade de Gênero do Fórum Econômico Mundial (WEF, 2023), as mulheres representam 70% das pessoas em situação de pobreza extrema no mundo. A OIT (2022) informa que apenas 47% das mulheres em idade ativa estão inseridas no mercado de trabalho, frente a 72% dos homens, e que mais de 90% das mulheres em países de baixa renda trabalham na informalidade, sem proteção social, seguridade ou estabilidade. Esses números expressam não apenas desigualdade de acesso, mas a produção sistemática de sofrimento através da precariedade, da exclusão e da desvalorização do trabalho feminino.
O sofrimento se intensifica pelo acúmulo de tarefas: as mulheres realizam quase três vezes mais trabalho não remunerado do que os homens (ONU Mulheres, 2021), o que inclui cuidados com crianças, idosos, doentes e o trabalho doméstico. Trata-se de uma sobrecarga que privatiza o sofrimento feminino nos lares, ocultando-o sob o manto do afeto, da responsabilidade moral e da “natureza cuidadora”. Esse modelo, sustentado por construções culturais e religiosas, transforma o cuidado em destino e, com isso, consolida uma economia do sofrimento feminino.
Além disso, a violência de gênero constitui um dos rostos mais visíveis e brutais dessa estrutura. A cada ano, milhões de mulheres são vítimas de violência física, sexual, psicológica ou institucional, muitas vezes dentro de suas próprias casas ou em relações de dependência econômica e emocional. De acordo com a OMS (2021), uma em cada três mulheres no mundo já sofreu violência de gênero. A ONU Mulheres (2023) ressalta que o feminicídio é uma das maiores causas de morte de mulheres jovens em diversos países da América Latina e Caribe. A dor feminina, nesses contextos, é continuamente produzida como método de controle e subordinação.
Conforme analisa Segato (2014), a violência contra as mulheres tem caráter pedagógico, pois ensina a todas as outras o lugar que lhes é reservado na estrutura social: o da submissão, da obediência, do medo. Esse é um ponto fundamental: o sofrimento não apenas decorre da desigualdade, ele a funda, a perpetua e a justifica. O sofrimento das mulheres, portanto, não é um colateral de sistemas sociais injustos, mas uma engrenagem de sustentação do próprio sistema patriarcal.
Ricoeur (1990), ao pensar o sofrimento como aquilo que escapa à linguagem e à mediação, aponta para sua função estruturante na constituição dos sujeitos. Quando o sofrimento feminino é sistematicamente deslegitimado, naturalizado ou moralizado, nele se inscreve uma recusa de escuta e reconhecimento, o que aprofunda sua dor e impossibilita sua reparação histórica.
Assim, a leitura crítica dos indicadores sociais e econômicos revela mais do que um déficit de justiça: revela um projeto histórico de subalternização do feminino, no qual o sofrimento ocupa papel central. Ele não é um acidente, mas uma forma de regulação simbólica e política, que legitima a exclusão e naturaliza a desigualdade. Por isso, compreender o sofrimento das mulheres como uma categoria histórica e estruturante é condição indispensável para qualquer projeto emancipatório ou de justiça social efetiva.
4.7.5 Sofrimentos Estruturais de Mulheres e Crianças: Vidas Expostas à Violência, ao Silenciamento e à Exclusão
Mulheres e crianças são, historicamente, os corpos mais expostos ao sofrimento em contextos de desigualdade social, guerras, violência doméstica, regimes autoritários, crises ambientais e crises econômicas. Seus corpos são marcados por uma exposição contínua à dor física, simbólica e psíquica, naturalizada por estruturas patriarcais, coloniais e capitalistas que os tornam alvo de controle, exploração e silenciamento.
Nas zonas de conflito armado, as mulheres são sistematicamente estupradas como tática de guerra, e as crianças são recrutadas, deslocadas, mutiladas ou mortas. Em tempos de paz, a violência persiste nos lares, nas escolas, nas instituições religiosas e estatais, nos sistemas de justiça e nos mercados de trabalho. O lar, que deveria ser espaço de cuidado, é frequentemente o epicentro da violência contra mulheres e crianças, com altíssimos índices de abuso sexual, agressão física e negligência emocional.
A violência de gênero é um eixo estruturante da dor feminina. Segundo a OMS (2021), uma em cada três mulheres no mundo já sofreu violência física ou sexual. No Brasil, a cada sete horas uma mulher é vítima de feminicídio (FBSP, 2023). Essas mortes são o ápice de uma escada de sofrimento cotidiano: agressões, ameaças, silenciamentos, chantagens emocionais, privações de liberdade, vigilância dos corpos e das escolhas. Esse sofrimento não é acidental, mas instrumento de controle e pedagogia da subordinação, como argumenta Segato (2014).
As crianças também ocupam lugar privilegiado na produção social da dor. Em especial, meninas são vítimas de múltiplas violências simultâneas: negligência, violência sexual intrafamiliar, exploração do trabalho infantil doméstico e estupros reiterados. Crianças indígenas, negras, pobres e com deficiência enfrentam um regime agravado de exclusão e invisibilização, com impactos duradouros sobre sua subjetividade e suas condições de existência.
O sofrimento infantil é muitas vezes silenciado pela romantização da infância como tempo de pureza e proteção, o que encobre as violências estruturais que recaem sobre corpos infantis em sociedades profundamente desiguais. Como aponta Benjamin (2012), a infância é uma categoria política, e os modos como a sociedade a constrói determinam quais infâncias têm direito à dignidade e quais são descartáveis.
Além da violência direta, há o sofrimento estrutural causado pela fome, pela pobreza, pela falta de acesso à educação e à saúde. Segundo o UNICEF (2023), mais de 1 bilhão de crianças vivem em contextos de múltiplas privações simultâneas. Já a ONU Mulheres (2022) aponta que mulheres são maioria absoluta entre as pessoas mais pobres do planeta, e também são as primeiras a sentir os impactos de desastres climáticos, desemprego e cortes em políticas públicas.
O sofrimento feminino e infantil se entrelaçam e se reproduzem. Mães que vivem sob violência, insegurança alimentar, sobrecarga de trabalho e ausência de redes de apoio têm sua saúde mental e física afetadas, o que repercute diretamente sobre o desenvolvimento de suas filhas e filhos. Assim, o sofrimento se herda, não por biologia, mas por estrutura: ele é transmitido pelo abandono do Estado, pela omissão das políticas e pela manutenção das desigualdades.
O sofrimento também se expressa na invisibilização epistêmica: a dor das mulheres e das crianças é, frequentemente, subestimada ou desacreditada, especialmente quando narrada por aquelas que ocupam lugares marginalizados na hierarquia social. A epistemologia patriarcal, racista e adultocêntrica duvida de suas vozes, desqualifica seus relatos e transforma sua dor em “exagero”, “vitimismo” ou “histérica”.
Por isso, pensar o sofrimento de mulheres e crianças não é apenas um exercício de empatia, mas um gesto político. É preciso entender que tais dores não decorrem de falhas morais individuais, mas de sistemas organizados para manter determinados corpos subalternizados e disponíveis ao sacrifício. A justiça social começa pelo reconhecimento e reparação histórica desses sofrimentos negados.
4.7.6 O Sofrimento das Mulheres e Meninas e o Gozo da Dominação Patriarcal
A pergunta que se impõe — qual o gozo em fazer as mulheres sofrerem? — demanda uma reflexão profunda sobre as dinâmicas de poder que atravessam as relações de gênero e sustentam a subordinação feminina. Esse gozo não pode ser reduzido a um mero sadismo individual; ele se revela como um fenômeno complexo que combina prazer, poder simbólico e manutenção de uma ordem social desigual.
No campo da psicanálise, especialmente na teoria lacaniana, o conceito de jouissance (gozo) aponta para um tipo de prazer que ultrapassa a simples satisfação e se associa a um sofrimento paradoxal. O sofrimento imposto às mulheres torna-se, para o sujeito que exerce a dominação, uma fonte de gozo que confirma e reafirma seu lugar na cadeia hierárquica do poder. A dor da mulher, ao ser controlada e instrumentalizada, funciona como um mecanismo psíquico que mantém e reforça a dependência simbólica e emocional, perpetuando um ciclo onde o sofrimento é simultaneamente fonte de poder e de controle.
Esse gozo encontra terreno fértil na violência estrutural que atravessa as sociedades contemporâneas. As mulheres, historicamente relegadas a posições de vulnerabilidade, sofrem com desigualdades econômicas, exclusão social, violência doméstica e institucional, entre outras formas de opressão. O sofrimento cotidiano, longe de ser um acidente ou uma contingência, está profundamente imbricado na manutenção do sistema patriarcal. A dor feminina se naturaliza e se torna invisível, e o gozo da dominação reside justamente na naturalização dessa condição, que torna o controle do corpo, da sexualidade e da autonomia da mulher um imperativo social.
Mais do que uma mera imposição externa, a subordinação da mulher possui também uma dimensão simbólica que está na base da construção da identidade masculina. No mito da criação judaico-cristão, Eva não surge como uma criatura independente, mas é gerada a partir da costela de Adão, estabelecendo desde o início uma relação de derivação e subordinação. Essa origem simbólica a posiciona simultaneamente como filha, extensão e propriedade daquele que a originou. A mulher nasce assim como um ser derivado, uma criação subordinada ao homem, que é o sujeito pleno e autônomo.
O sofrimento feminino, portanto, não é um acidente histórico, mas uma condição simbólica que legitima e assegura essa posição de domínio. O gozo na dor alheia manifesta-se como uma forma de afirmação da própria masculinidade, que se estrutura no poder e na posse do outro, neste caso, da mulher. O homem que “gera” a mulher, que a constitui como “filha” e “propriedade”, sente no controle dessa criação uma forma de satisfação — não apenas biológica, mas profundamente simbólica e psíquica. Ao fazer sofrer, reafirma seu lugar como sujeito pleno, proprietário e originador, enquanto a mulher permanece marcada pela condição de dependência e derivação.
Historicamente, essa situação foi naturalizada e até mesmo sacralizada por diversas tradições religiosas, filosóficas e culturais, que associaram o sofrimento da mulher à virtude, ao castigo ou ao destino inevitável. Essa naturalização mantém os ciclos de exclusão e violência, pois a dor feminina passa a ser interpretada como algo merecido ou necessário, dificultando a resistência e a transformação social.
Assim, o sofrimento feminino não pode ser reduzido a questões individuais ou meramente sociais, mas deve ser entendido como expressão de uma estrutura simbólica que vincula o gozo masculino à perpetuação da subordinação. Romper com essa lógica exige não só denunciar a violência explícita, mas também desvelar os mecanismos simbólicos e psíquicos que sustentam essa dominação histórica.
O gozo em fazer as mulheres sentirem dor e sofrer não é superficial; é a confirmação paradoxal de uma identidade construída na dominação, na posse e no controle. Essa dinâmica, que se manifesta tanto na violência direta quanto nas microviolências cotidianas, reafirma a posição hierárquica do dominador e mantém intacto o sistema patriarcal.
Entender essa realidade psíquica e simbólica é fundamental para a luta pela superação do sofrimento feminino e a construção de relações sociais pautadas na autonomia, na igualdade e no respeito. Romper o ciclo do sofrimento como fonte de gozo para a dominação masculina é um passo essencial para a emancipação e para a justiça de gênero.
4.8 O Capitalismo, o Sistema de Classes, o Sofrimento e os Direitos Humanos: Uma Reflexão Crítica
O capitalismo, enquanto sistema econômico e social dominante nas sociedades modernas, desempenha um papel central na perpetuação das desigualdades sociais e das estruturas de dominação. Através do mercado e da acumulação de riquezas, o capitalismo cria e sustenta um sistema de classes que, por sua vez, gera e intensifica o sofrimento de grandes parcelas da população, principalmente das classes mais baixas, ao mesmo tempo em que nega o acesso equitativo aos direitos humanos fundamentais. A análise crítica desse sistema, considerando as reflexões de pensadores como Karl Marx, Max Weber, Theodor Adorno e Judith Butler, revela como o capitalismo, em sua forma estrutural, é um sistema de exploração que gera sofrimento e viola direitos humanos, com implicações profundas na dinâmica das relações sociais e no acesso à dignidade humana.
O sistema de classes no capitalismo é uma característica central da organização social e econômica, que divide a sociedade em grupos com acesso desigual aos recursos e às oportunidades. Karl Marx, em sua obra O Capital (1867), analisa o capitalismo como um sistema baseado na exploração do trabalho, onde a classe trabalhadora (proletariado) é subjugada à classe capitalista (burguesia). Para Marx, a extração de mais-valia do trabalho dos trabalhadores não é apenas um processo econômico, mas também uma forma de dominação política e social. O capitalismo, portanto, cria e mantém um sistema de classes que se baseia na concentração de riquezas e poder nas mãos de uma pequena elite, enquanto a grande maioria da população enfrenta condições de vida precárias e limitações no acesso aos direitos fundamentais, como saúde, educação, segurança e liberdade.
Max Weber, em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (1905), contribui com uma perspectiva complementar, ao sugerir que o capitalismo não é apenas um sistema econômico, mas também um conjunto de valores culturais que moldam a sociedade. Para Weber, o capitalismo, especialmente em sua forma moderna, está intimamente ligado a um ethos individualista e competitivo que favorece a acumulação de riquezas e a estratificação social. O sistema de classes se sustenta não só pela exploração econômica, mas também pela legitimação cultural e simbólica das desigualdades, criando uma estrutura de dominação que faz com que a opressão das classes mais baixas seja vista como natural ou inevitável.
O sofrimento causado pela divisão em classes sociais no capitalismo é multifacetado e profundo. O capitalismo, ao concentrar a riqueza e o poder, cria uma estrutura de opressão que afeta diretamente as condições de vida das classes mais baixas, gerando sofrimento físico, psicológico e social. O sofrimento material, como a fome, a pobreza extrema, a precariedade no trabalho e a falta de acesso a serviços básicos, é uma consequência direta da exploração capitalista. Marx já apontava que o trabalhador, como uma mercadoria, tem sua força de trabalho extraída para gerar lucros para a classe capitalista, sem que esse trabalhador tenha controle sobre o processo produtivo ou sobre os frutos de seu trabalho. Essa relação desigual não apenas gera sofrimento material, mas também psicológico, à medida que o trabalhador é despojado de sua dignidade e autonomia.
O capitalismo também gera um sofrimento simbólico e social, relacionado ao status e à identidade de classe. Theodor Adorno, um dos principais teóricos da Escola de Frankfurt, analisa como o capitalismo, em sua dimensão cultural e psicológica, impõe uma forma de conformidade que aliena os indivíduos. Em Dialética do Esclarecimento (1944), Adorno, junto com Max Horkheimer, discute como a indústria cultural e as ideologias capitalistas moldam as subjetividades, criando um sofrimento invisível que resulta da conformidade às expectativas sociais, ao consumismo e à alienação no trabalho. Esse sofrimento é invisível em muitos casos, mas se manifesta nas altas taxas de doenças mentais, no estresse crônico e na falta de sentido e propósito na vida cotidiana, especialmente nas classes mais baixas, que enfrentam a precariedade e a insegurança.
O capitalismo, ao sustentar um sistema de classes, está diretamente relacionado à violação dos direitos humanos, especialmente os direitos econômicos, sociais e culturais. A negação do direito ao trabalho digno, à saúde, à educação e à moradia para grande parte da população não é apenas uma falha do sistema, mas uma característica intrínseca ao próprio funcionamento do capitalismo. A busca incessante por lucro e a acumulação de riqueza, como aponta Marx, implica na exploração e na marginalização de milhões de pessoas, negando-lhes os direitos mais básicos.
A filósofa e teórica social Judith Butler, em seu trabalho sobre gênero e direitos humanos, argumenta que a estrutura capitalista de classes também impacta os direitos humanos de forma diferencial, dependendo das identidades de classe, raça e gênero. Em Quadros de Guerra (2009), Butler discute como o capitalismo, em seu funcionamento globalizado, gera uma hierarquia entre os corpos humanos, onde algumas vidas são consideradas mais valiosas do que outras. As populações marginalizadas, que incluem as mulheres, os negros, os imigrantes e as pessoas em situação de pobreza, são frequentemente privadas de seus direitos humanos fundamentais, como acesso à saúde, educação e segurança, em virtude das desigualdades estruturais impostas pelo capitalismo.
Além disso, a globalização capitalista e a exploração dos recursos naturais têm efeitos devastadores sobre as populações indígenas e as comunidades de baixa renda, que frequentemente são as mais afetadas pelas mudanças climáticas, pela degradação ambiental e pela privação dos direitos básicos. O modelo de desenvolvimento capitalista não apenas negligencia os direitos dessas populações, mas frequentemente as despoja de seus territórios e de suas culturas, aprofundando o sofrimento e a exclusão.
O capitalismo, com sua estrutura de classes e seu sistema de exploração, é um dos principais motores do sofrimento humano na sociedade contemporânea. A desigualdade econômica e social gerada pelo capitalismo resulta em um ciclo de opressão que afeta as classes mais baixas, especialmente as mulheres, os negros e outras minorias, negando-lhes os direitos humanos mais fundamentais. As contribuições de pensadores como Marx, Weber, Adorno e Butler são essenciais para entender como o capitalismo perpetua um sistema de classes que gera sofrimento, alienação e violação dos direitos humanos.
A luta por uma sociedade mais justa e igualitária passa pela transformação das estruturas capitalistas e pela promoção de políticas públicas que garantam os direitos humanos para todas as pessoas, independentemente de sua classe social, gênero ou etnia. Somente por meio de uma reorganização social que promova a equidade e a dignidade humana será possível superar as injustiças e os sofrimentos causados pelo capitalismo.
4.9 Os Efeitos da Agenda da Extrema Direita no Sofrimento e nos Direitos Humanos
A ascensão da extrema direita em várias partes do mundo tem gerado impactos significativos nas políticas sociais, nos direitos humanos e nas dinâmicas de poder, acentuando desigualdades e promovendo uma agenda que frequentemente resulta em maior sofrimento para grupos marginalizados. Através de uma série de medidas políticas, discursos polarizadores e o fortalecimento de ideologias autoritárias, a extrema direita não apenas ameaça os direitos humanos fundamentais, mas também aprofunda as divisões sociais, exacerba a violência e promove a marginalização de minorias. Para entender como essa agenda impacta o sofrimento e os direitos humanos, é essencial recorrer às análises de pensadores como Michel Foucault, Giorgio Agamben, Naomi Klein e Slavoj Žižek, que discutem as implicações do autoritarismo, da neoliberalização e da violência simbólica em contextos políticos de extrema direita.
Uma das características centrais da agenda da extrema direita é a exclusão de grupos sociais considerados "não pertencentes" ou "não adequados" à ordem social. Esta exclusão se manifesta em várias frentes, incluindo políticas anti-imigração, discursos xenófobos, e ataques a direitos conquistados por minorias, como a população LGBTQIA+, mulheres e negros. Para Giorgio Agamben, em sua obra Estado de Exceção (2004), a extrema direita utiliza o conceito de exceção, criando uma espécie de "normalidade" onde o Estado de emergência se torna constante. Em um cenário de exceção, direitos humanos são frequentemente suspendidos ou violados, e as pessoas que são vistas como "fora da norma" — como imigrantes, refugiados e minorias étnicas — são tratadas como "biopolíticas" (vidas a serem administradas ou exterminadas) em nome da segurança e da ordem pública.
Esse processo de exclusão resulta diretamente no sofrimento de indivíduos que se encontram em situações de vulnerabilidade. A negação de direitos fundamentais, como a liberdade de expressão, a igualdade diante da lei e o direito à segurança, é uma violação explícita dos princípios de direitos humanos. A retórica de "nós contra eles", típica da extrema direita, é projetada para desumanizar os outros, justificando a violência e a repressão como uma forma legítima de proteger a "sociedade pura" de ameaças externas e internas.
Outro efeito significativo da agenda da extrema direita é sua aliança com o neoliberalismo, uma ideologia que prioriza o mercado livre e a redução do papel do Estado na regulação das questões sociais. Naomi Klein, em A Doutrina do Choque (2007), analisa como o neoliberalismo tem sido imposto em contextos de crise através de políticas de austeridade, privatizações e desregulamentação, processos que têm como efeito colateral o aumento das desigualdades sociais e econômicas. A extrema direita, ao promover essas políticas, ignora as necessidades básicas de muitas pessoas, exacerbando o sofrimento das classes mais baixas.
O neoliberalismo associado à extrema direita resulta na precarização do trabalho, na redução do acesso à saúde e à educação, e no enfraquecimento das redes de proteção social. Além disso, essas políticas frequentemente favorecem a elite econômica, intensificando a concentração de riqueza e a marginalização das classes mais pobres. Esse modelo cria um ciclo de exclusão, onde aqueles que já enfrentam dificuldades são ainda mais vulnerabilizados pela falta de acesso a direitos fundamentais, como o direito à dignidade, ao trabalho digno e à saúde.
Michel Foucault, ao analisar as relações de poder e a produção de subjetividade, oferece uma importante contribuição para entender como a extrema direita exerce controle sobre as populações e propaga uma violência simbólica. Em Vigiar e Punir (1975), Foucault explora como os mecanismos de poder e disciplina operam em nível social, não apenas por meio de ações diretas, mas também pela internalização de normas e valores. A extrema direita utiliza o medo e o preconceito para promover uma lógica de controle e subordinação das minorias, normalizando discursos de ódio, racismo e misoginia.
A violência simbólica, tal como discutida por Pierre Bourdieu, é um elemento essencial da estratégia da extrema direita. A propagação de estereótipos e a demonização de minorias como imigrantes, refugiados e grupos LGBTQIA+ não apenas marginaliza esses indivíduos, mas também promove um tipo de violência que opera através das representações e das normas sociais. Esse tipo de violência, muitas vezes invisível, tem efeitos devastadores, criando um ambiente onde o sofrimento das vítimas é minimizado, e as violações de seus direitos são ignoradas ou até legitimadas.
A ascensão de regimes de extrema direita frequentemente está associada a um aumento no sofrimento psicológico da população. Slavoj Žižek, em suas análises sobre o populismo e o autoritarismo, argumenta que a retórica de ódio e divisão da extrema direita provoca um sofrimento psíquico coletivo. Em O Violento (2008), Žižek descreve como a retórica populista utiliza a construção de inimigos externos e internos para unificar a sociedade em torno de um suposto "bem comum". No entanto, esse processo cria um ambiente de constante medo, insegurança e desconfiança, o que tem efeitos devastadores para a saúde mental da população, especialmente para aqueles que são alvos diretos dessas campanhas de ódio.
O sofrimento psicológico é intensificado pela sensação de impotência e de marginalização, características comuns entre aqueles que se opõem ao regime da extrema direita. Além disso, a criação de um ambiente de polarização extrema pode gerar um estado de ansiedade coletiva, onde o medo da violência e da repressão se torna uma realidade cotidiana para muitos indivíduos. O sofrimento, nesse sentido, vai além das questões físicas ou materiais, atingindo as esferas emocionais e psicológicas das pessoas.
A agenda da extrema direita, ao promover políticas de exclusão, neoliberalismo radical, violência simbólica e autoritarismo, tem efeitos devastadores no sofrimento humano e na violação dos direitos humanos. A marginalização de grupos sociais, a exacerbação das desigualdades e a normalização da violência resultam em um ciclo de opressão que nega a dignidade de muitos indivíduos. A resistência a essa agenda, portanto, exige uma análise crítica das estruturas de poder e das formas de violência que sustentam esses regimes, além da promoção de políticas públicas que garantam os direitos humanos para todos os indivíduos, independentemente de sua identidade ou posição social.
5. O Mal: Reflexões Filosóficas, Psicanalíticas e Sociais
O mal, em seu sentido filosófico e social, é uma questão complexa que envolve uma multiplicidade de fatores históricos, culturais, psicológicos e estruturais. No contexto que discutimos anteriormente, especialmente quando se fala de sofrimento, patriarcado e extrema direita, o mal pode ser compreendido de diferentes maneiras, dependendo da perspectiva adotada.
Desde Platão até os pensadores contemporâneos, o mal tem sido abordado sob diversas óticas. Platão, por exemplo, via o mal como a ausência do bem (ou a ignorância da verdade). Já para Kant, o mal é uma escolha da razão prática, onde indivíduos, ao agirem de maneira egoísta ou imoral, violam os princípios universais de moralidade.
Hannah Arendt, em sua famosa obra Origens do Totalitarismo, descreve o mal como sendo frequentemente banal, ou seja, muitas vezes ele se manifesta em atos cotidianos de conformismo e obediência cega a sistemas de poder, sem que as pessoas envolvidas reconheçam a gravidade do que estão fazendo. Arendt desenvolve a ideia de "banalidade do mal", onde a maldade não é o resultado de uma malícia ou maldade intrínseca, mas de um funcionamento mecânico das estruturas de poder que desumanizam o outro e justificam a violência.
Erich Fromm considerava o mal como uma manifestação de desajustes psicológicos e sociais. Ele acreditava que o mal não era apenas uma questão de índole ruim ou perversão moral, mas muitas vezes era o resultado de condições sociais que geram alienação, desespero e desumanização. Segundo Fromm, os indivíduos podem se tornar maus quando se distanciam de sua verdadeira natureza humana, o que ocorre, por exemplo, em regimes totalitários.
Em um sentido mais social e político, o mal também se manifesta nas estruturas de poder que perpetuam a desigualdade, a opressão e a exclusão. O patriarcado, o racismo, o capitalismo selvagem e as ideologias de extrema direita são expressões dessa manifestação do mal, pois operam de maneiras que desumanizam certos grupos e causam sofrimento em grande escala.
Michel Foucault, ao analisar as estruturas de poder, mostrou como o mal pode ser enraizado nas instituições e práticas sociais que moldam a vida dos indivíduos, criando normas e realidades que favorecem uns em detrimento de outros. A violência institucionalizada, como a discriminação de gênero ou racial, é uma forma de mal que nasce dessas relações de poder que se mantêm e se reproduzem por meio da história.
Rita Segato, uma das pensadoras contemporâneas sobre violência de gênero, argumenta que o patriarcado, ao naturalizar a subordinação da mulher e justificar a violência contra ela, é uma forma de mal estrutural. A violência de gênero não é apenas um ato isolado de um indivíduo, mas uma manifestação de uma estrutura de poder que desumaniza a mulher e a coloca em uma posição de sofrimento contínuo.
Psicologicamente, o mal também pode ser entendido como uma construção humana, que muitas vezes está ligada a questões de ego, medo, insegurança e ressentimento. De acordo com a psicologia social, o "mal" pode surgir em momentos de crise social e histórica, quando os indivíduos são induzidos a adotar ideologias de ódio ou desumanização do outro. Isso é especialmente evidente em regimes totalitários ou em contextos de polarização extrema, como os causados pela ascensão da extrema direita, onde o outro é demonizado e tratado como inimigo, justificando assim ações de violência.
A extrema direita, em particular, tem se apropriado do conceito de "mal" para justificar políticas autoritárias e excludentes, criando uma narrativa onde certos grupos sociais, como as mulheres, as minorias de gênero, os negros, os indígenas, entre outros, são vistos como inimigos a serem derrotados ou excluídos. Esse mal, então, nasce de uma ideologia de superioridade, de um projeto político que visa estabelecer hierarquias de poder rígidas e desumanizar o outro, sendo muitas vezes camuflado por discursos de "segurança", "moralidade" ou "ordem". O sofrimento das populações marginalizadas se torna, então, uma consequência direta dessa ideologia de poder.
No campo dos direitos humanos, o mal é compreendido como uma violação dos direitos inalienáveis dos indivíduos, como a liberdade, a dignidade e a igualdade. O sofrimento gerado pela opressão do patriarcado e da extrema direita não é apenas uma consequência do mal em termos físicos, mas também psicológicos e sociais. O mal aqui está ligado ao desrespeito pela humanidade do outro e à negação da empatia, essencial para as relações humanas justas.
O mal, portanto, nasce de uma combinação complexa de fatores psicológicos, sociais e históricos. No caso do patriarcado e da ascensão da extrema direita, ele se manifesta através da violência estrutural e simbólica, da opressão, da negação dos direitos humanos e do sofrimento contínuo das populações marginalizadas. Combatê-lo requer uma transformação radical das estruturas sociais, políticas e culturais que o sustentam, além da promoção de uma cultura de respeito à dignidade humana e de inclusão.
A relação entre amor, sofrimento e direitos humanos é complexa e multifacetada, sendo uma das questões centrais nas discussões sobre a dignidade humana, a ética e a construção de uma sociedade justa e igualitária. O amor, enquanto força propulsora da solidariedade e da compreensão, pode ser visto como um motor essencial para a defesa dos direitos humanos, ao passo que o sofrimento – em suas diversas formas – é uma das maiores violações desses direitos. A reflexão sobre como o sofrimento é tanto criador quanto consequência do amor e da falta de respeito aos direitos humanos revela aspectos cruciais da condição humana.
6. O Amor, o Sofrimento e os Direitos Humanos: Reflexões sobre a Solidariedade e a Empatia
O amor, especialmente quando entendido em suas dimensões mais amplas de solidariedade e compaixão, é frequentemente apontado como uma das forças essenciais na promoção dos direitos humanos. Paulo Freire, em sua obra sobre educação e pedagogia do oprimido, coloca o amor como um elemento central na transformação da sociedade, particularmente na busca pela liberdade, justiça e igualdade. Para Freire, o amor é um ato político, sendo um meio de humanização, especialmente para aqueles que são oprimidos e marginalizados (FREIRE, 1996).
No contexto dos direitos humanos, o amor é muitas vezes associado ao respeito pela dignidade do outro. Em uma sociedade onde os direitos humanos são respeitados, há um reconhecimento da igualdade fundamental de todas as pessoas, independentemente de sua raça, gênero, orientação sexual ou status social. Este reconhecimento pode ser visto como uma forma de amor ético, onde cada indivíduo é tratado com o respeito e consideração que merece.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos reflete, em grande parte, essa visão de respeito e dignidade. O artigo 1º da declaração afirma que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, o que implica que o respeito mútuo e a valorização do outro são princípios fundamentais para a construção de uma sociedade baseada no amor e na empatia (ONU, 1948).
O sofrimento, em suas formas físicas, psicológicas e sociais, é um dos maiores desafios enfrentados pela humanidade em relação aos direitos humanos. Quando os direitos fundamentais são negados, como no caso de violência, discriminação, exclusão social ou opressão, o sofrimento torna-se uma consequência inevitável para os indivíduos e as comunidades afetadas. Hannah Arendt, em seus estudos sobre totalitarismo e autoritarismo, argumenta que o sofrimento humano é intensificado quando o ser humano é despojado de sua dignidade e agência dentro de uma sociedade (Arendt, 1951).
O sofrimento gerado pela violação de direitos humanos pode ser tanto individual, como nas vítimas de tortura, tráfico de pessoas ou violência doméstica, quanto coletivo, como no caso das minorias étnicas ou grupos marginalizados que enfrentam preconceito, estigmatização e exclusão social. Rita Segato, ao estudar a violência de gênero e o patriarcado, aponta que o sofrimento das mulheres, particularmente em sociedades dominadas por estruturas patriarcais, é intensificado pela invisibilidade e desumanização das vítimas, além da falta de respostas adequadas das instituições (Segato, 2012).
Além disso, o sofrimento pode ser causado por ações diretas de violência ou por ações de negligência ou indiferença. Em uma sociedade que não reconhece os direitos básicos dos indivíduos, o sofrimento é perpetuado pelas desigualdades estruturais que afetam principalmente os mais vulneráveis.
O sofrimento, muitas vezes, emerge como uma resposta à falta de amor e de empatia, tanto a nível individual quanto coletivo. Quando as pessoas não são tratadas com dignidade ou respeito, o sofrimento físico e emocional se torna uma experiência comum, sendo a falta de compaixão um fator central em muitos casos de opressão. Nesse sentido, a luta pelos direitos humanos pode ser vista como uma expressão de amor ético, que busca não só a justiça para as vítimas de sofrimento, mas também a transformação das estruturas sociais que perpetuam a desigualdade e a exclusão.
O amor pode, portanto, ser um instrumento para combater o sofrimento, através de ações de solidariedade e respeito mútuo, mas também pode ser um espaço de cura para as feridas sociais e emocionais. Em muitas culturas e tradições, a expressão do amor – seja em sua forma altruísta ou empática – é vista como uma maneira de aliviar o sofrimento humano e promover a reconciliação.
A empatia, que é uma forma de amor compassivo, desempenha um papel crucial na redução do sofrimento social. A empatia envolve a capacidade de compreender e se colocar no lugar do outro, e tem sido reconhecida como uma qualidade essencial no campo dos direitos humanos. A falta de empatia, por outro lado, é muitas vezes a base da indiferença social e da perpetuação da violência. Martha Nussbaum, em suas discussões sobre a capacidade humana, defende que a empatia é essencial para a criação de uma sociedade justa, pois ela promove o entendimento das necessidades e direitos do outro (Nuzzbum, 2006).
Em sua análise do amor e das relações humanas, Erich Fromm considera que o amor é a chave para a realização da plena humanidade, sendo essencial para a convivência pacífica e harmoniosa na sociedade. Ele argumenta que o amor genuíno se baseia no cuidado, respeito, responsabilidade e conhecimento do outro, características fundamentais para promover uma sociedade justa (Fromm, 1994).
Jacques Lacan, em seus escritos psicanalíticos, aborda o amor sob a perspectiva da dinâmica do sujeito e do outro, apontando que o amor envolve uma relação de desejo e subjetividade, onde o sujeito é capaz de reconhecer no outro sua falta e, ao mesmo tempo, tentar preencher essa lacuna através da relação amorosa (Lacan, 1998). Zygmunt Bauman fala sobre o “amor líquido”, uma metáfora para descrever as relações no mundo contemporâneo, marcadas pela fragilidade, incerteza e dificuldade de manter vínculos duradouros. Para Bauman, o amor no contexto atual está muitas vezes preso a interesses e necessidades momentâneas, dificultando o surgimento de relações profundas e estáveis (Bauman, 2004). Martin Buber, em sua obra Eu e Tu, apresenta a ideia de que o amor autêntico só pode existir quando há uma relação genuína entre os sujeitos, ou seja, quando as pessoas se veem não como objetos, mas como seres humanos plenos, capazes de uma verdadeira conexão (Buber, 1992).
Portanto, a busca por uma sociedade em que o sofrimento seja reduzido e os direitos humanos plenamente respeitados é uma luta pela construção de um mundo mais amoroso, justo e igualitário. As implicações dessa luta não se limitam à eliminação das violências evidentes, mas também à promoção de uma cultura em que todos possam viver com dignidade e sem medo de discriminação ou exclusão.
Conclusão
Este ensaio abordou o sofrimento humano em suas múltiplas dimensões — histórica, filosófica, social e psicanalítica — destacando sua complexidade e relevância para o campo dos direitos humanos. Ao traçar um percurso que vai da antiguidade até os debates contemporâneos, evidenciou-se como o sofrimento é uma experiência construída culturalmente, que atravessa e marca profundamente a subjetividade e a vida social.
No centro da análise psicanalítica, situou-se a economia libidinal da dor, conceito que revela como o sofrimento não é apenas um fenômeno a ser evitado, mas também uma estrutura pulsional essencial à constituição do sujeito. Inspirada em Freud e Lacan, essa perspectiva mostra que o sofrimento envolve uma complexa relação entre desejo, gozo e renúncia, na qual a dor pode ocupar um lugar paradoxal de atração e resistência dentro do psiquismo.
Esse entendimento libidinal desvela que a dor não é apenas uma reação passiva, mas uma forma de investimento pulsional que pode reforçar mecanismos de defesa, de negação ou de repetição — elementos cruciais para compreender tanto o sofrimento individual quanto suas repercussões sociais e políticas. Assim, a economia libidinal da dor ilumina a dinâmica interna do sofrimento, articulando as dimensões subjetiva e social, e mostrando sua íntima conexão com as estruturas de poder, dominação e resistência.
Ao mesmo tempo, o ensaio destacou as múltiplas formas de sofrimento relacionadas a processos históricos de exclusão e violência, como as vivências dos corpos negros, indígenas e das mulheres, revelando as desigualdades estruturais que mantêm a dor como elemento central da vida social. A reflexão crítica sobre o patriarcado, o racismo e o capitalismo, integrada à perspectiva psicanalítica, potencializa a compreensão do sofrimento como fenômeno que ultrapassa o indivíduo e é produzido em contextos institucionais e simbólicos.
Por fim, ao situar o sofrimento no âmbito dos direitos humanos, o texto enfatiza a importância ética de reconhecer, escutar e responsabilizar-se por essa dor, abrindo caminho para formas solidárias e políticas de enfrentamento e transformação.
Dessa forma, a economia libidinal da dor — ao evidenciar que o sofrimento não é mero efeito colateral da existência, mas estrutura constitutiva do sujeito e da vida social — exige ser pensada em articulação com os dispositivos históricos e políticos que a produzem, distribuem e exploram. Essa articulação revela a urgência de abordagens críticas e interdisciplinares que não se limitem a interpretar a dor, mas que enfrentem os regimes que a instrumentalizam, promovendo justiça, reconhecimento e dignidade como pilares inegociáveis dos direitos humanos.
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Note:
1) Este texto foi elaborado por Vanessa Maria de Castro (professora da Universidade de Brasília e psicanalista) como contribuição crítica ao debate público sobre o sofrimento humano. Destina-se a todas e todos que desejam refletir, a partir de uma perspectiva ética, psicanalítica e política, sobre os modos como a dor é produzida, naturalizada ou combatida nas sociedades contemporâneas.
2) A imagem da capa foi elaborada com o auxílio de inteligência artificial, utilizada como recurso visual para complementar o conteúdo do ensaio.
3) A leitura deste texto pode conter conteúdos que envolvem sofrimento, violência, desigualdades e outras temáticas sensíveis que podem gerar reações emocionais. Recomenda-se atenção ao próprio bem-estar durante a leitura e, se necessário, buscar apoio profissional ou comunitário.
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Como citar este ensaio:
CASTRO, Vanessa Maria de. Labirintos da crueldade: a política do sofrimento e a economia libidinal da dor. Brasília, maio de 2025. Disponível em: https://palavraemtranse.blogspot.com/2025/06/labirintos-da-crueldade-politica-do.html .
Texto muito elaborado, sobretudo do tema do sofrimento. Gostei ainda mais do background religioso (judaico-cristão) explorado na análise, mas também da "economia do sofrimento" (neoliberalismo, que é um genocídio - inclui apenas 10% da população mundial - um sistema absurdamente majoritário de produção de sofrimento). Um esforço acadêmico notável. Sua produção comprova um velho ditado: só tem tempo quem está ainda mais ocupado. Você trabalha como uma condenada e acha tempo para uma produção tão singular. Obrigado.
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