7 de setembro: entre o real silenciado e a ficção exibida

 


7 de setembro: entre o real silenciado e a ficção exibida

Vanessa Maria de Castro

Brasília, 07 de setembro de 2025.

 

A forma como a imprensa brasileira cobriu o 7 de setembro de 2025 — apagando a existência do ato oficial em Brasília, do governo Lula, e, simultaneamente, inflacionando a visibilidade das manifestações pró-Bolsonaro, sobretudo na Avenida Paulista e em outros estados — não pode ser lida apenas como distorção informativa, mas como produção ativa de realidade. No lugar de uma mediação jornalística, observa-se uma prática de soberania discursiva, em que se decide o que entra e o que é excluído do campo da visibilidade. Nesse ponto, a categoria de estado de exceção (Giorgio Agamben) é útil: assim como o direito suspende a norma para exercer o poder soberano, a mídia suspende a normalidade republicana ao negar inscrição simbólica ao governo eleito, ao mesmo tempo em que consagra uma oposição minoritária como se fosse portadora da legitimidade pública.


Essa operação não é apenas política, mas epistemológica. Em chave foucaultiana, trata-se da instauração de um regime de verdade, em que o enunciado válido não depende da correspondência com os fatos, mas da capacidade institucional da imprensa de definir quais acontecimentos podem ser reconhecidos como tais. O silenciamento do ato oficial em Brasília funciona como aquilo que Foucault chamaria de produção do não-dito: não é a inexistência de um fato, mas sua recusa sistemática em se inscrever na ordem discursiva. Ao mesmo tempo, a cobertura panorâmica das manifestações pró-Bolsonaro na Paulista e em outros estados cria uma economia da visibilidade que fabrica efeitos de massa, mesmo quando os dados empíricos indicam esvaziamento.


Esse processo evidencia como a imprensa participa daquilo que Rancière denomina disputa pela partilha do sensível, ou seja, a definição de quem pode aparecer e ser contado na cena comum. Ao excluir o governo eleito da narrativa de um feriado nacional e conferir centralidade a uma oposição minoritária, a mídia produz uma redistribuição forçada do sensível. A democracia, então, deixa de ser reconhecida por meio de suas instituições, passando a ser reconfigurada por uma gramática seletiva que impõe a ficção como realidade.


É nesse ponto que se torna evidente o caráter de golpe narrativo. O que está em jogo não é apenas manipulação, mas a construção deliberada de um mundo paralelo, um enredo que se aproxima de uma peça de ficção. O público é conduzido a habitar uma realidade fabricada, semelhante à do personagem de The Truman Show, cuja vida inteira é moldada por uma encenação midiática. A cobertura da Paulista e outros estados cria a impressão de que o 7 de setembro de 2025 só existiu no palco com Bolsonaro, enquanto os demais movimentos no Brasil, principalmente ligados ao governo de Lula, parecem não ter ocorrido. Essa disparidade constrói uma narrativa hegemônica e seletiva, transformando o acontecimento em peça de ficção e apagando a realidade oficial.


Essa dinâmica possui ainda uma dimensão temporal. Como lembram Pollak e Halbwachs, a memória coletiva é sempre resultado de disputas sobre o que se registra e o que se esquece. Ao apagar a existência do ato oficial em Brasília, a imprensa não apenas molda a percepção do presente, mas interfere no modo como o futuro lembrará o 7 de setembro de 2025. O silêncio institucionalizado e a hiperexposição oposicionista constroem, desde já, uma narrativa hegemônica sobre o que “foi” essa data, inscrevendo no arquivo social uma versão seletiva e parcial da realidade.


Assim, no cruzamento de Agamben, Foucault, Rancière e os estudos sobre memória, o que emerge é um estado de exceção simbólico: não decretado pelo Estado, mas instaurado pelos dispositivos de comunicação, que suspendem a validade de acontecimentos oficiais e reorganizam o espaço público de acordo com sua própria ficção. Esse gesto não apenas deforma a democracia, mas constrói uma memória coletiva adulterada, na qual a história se inscreve não como registro dos fatos, mas como narrativa inventada.


Referências


AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Maria Lúcia Faria. Belo Horizonte: UFMG, 2004.


FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Tradução de André Telles. São Paulo: Loyola, 2010.


HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de José Paulo Netto. São Paulo: Centauro, 2016.


POLLAK, Michel. Memória social e história. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.


RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Tradução de Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.


Como citar o texto (ABNT):

CASTRO, Vanessa Maria de. 7 de setembro: entre o real silenciado e a ficção exibida. Brasília, 07 de setembro de 2025. Disponível em: https://palavraemtranse.blogspot.com/2025/09/7-de-setembro-entre-o-real-silenciado-e.html

Apresentação de autoria:

Sou Vanessa Maria de Castro, professora da Universidade de Brasília (UnB), geógrafa e psicanalista, com trajetória dedicada à análise crítica das dinâmicas geopolíticas e das tensões políticas internas, especialmente em contextos de conservadorismo e extremismo de direita. Meu trabalho concentra-se na compreensão de como essas forças impactam a democracia, os direitos humanos e a subjetividade social, assim como na investigação das formas de resistência das populações marginalizadas. Neste ensaio, atuo a partir de uma perspectiva interdisciplinar, articulando análise política, filosofia e estudos sobre memória coletiva para compreender como a cobertura da imprensa molda percepções e constrói narrativas hegemônicas sobre eventos sociopolíticos relevantes, como o 7 de setembro de 2025.


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