A linguagem do voto de Alexandre de Moraes: oralidade, poder e pedagogia política
Vanessa Maria de Castro
Brasília, 09 de setembro de 2025
No dia 9 de setembro de 2025, o ministro Alexandre de Moraes, relator da Ação Penal 1.060, apresentou seu voto no julgamento de Jair Bolsonaro e outros sete réus, acusados de tentativa de golpe de Estado, organização criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado. A sessão inscreve-se no contexto da apuração da trama golpista de 2022–2023 e marcou um momento decisivo no Supremo Tribunal Federal.
A escolha da linguagem
O que singularizou esse voto foi a linguagem. Diferente do juridiquês habitual, hermético e excludente, Moraes construiu uma narrativa oralizada, pedagógica e performática. Sua fala não se limitou ao registro técnico: ela foi cadenciada, pausada, com entonação firme e estrategicamente dirigida a diferentes públicos. Quem ouviu pelo rádio compreendeu. Quem assistiu pela televisão compreendeu. Quem leu o texto também compreendeu. A oralidade foi o eixo articulador do voto, transformando-o em uma peça comunicacional ampla, que transcende os muros do tribunal.
Ressignificação discursiva e pedagogia política
Ao apropriar-se da gramática adversária, Alexandre de Moraes não apenas desconstruiu narrativas extremistas — ele realizou um gesto de ressignificação estratégica. Quando denomina os réus de “criminosos” ou faz alusão a uma “máfia”, ele intercepta signos carregados de energia política, amplamente difundidos pela retórica da extrema direita, e os reinscreve em um novo regime de sentido. O que antes servia como arma retórica contra instituições passa a ser devolvido, sob o peso da autoridade judicial, como qualificação jurídica do próprio ato golpista.
Nesse movimento, Moraes encarna exatamente o que Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1997) descreve como dialogismo: cada palavra é habitada por vozes alheias, mas pode ser reorientada, reposicionada e ressignificada no interior de novos horizontes sociais. Ao mesmo tempo, essa apropriação estratégica das palavras adversárias é performativa no sentido de John Langshaw Austin (1975), pois não apenas descreve a realidade, mas transforma-a ao produzir efeitos concretos sobre a responsabilização e legitimação jurídica dos atos.
Pierre Bourdieu (2001) acrescenta que a palavra confere poder: quem a detém, sob autoridade institucional, influencia como eventos e significados são interpretados e lembrados socialmente. O voto de Moraes articula, assim, linguagem jurídica e termos do senso comum, transformando o tribunal em um espaço de mediação social, onde a lei não apenas se aplica, mas se comunica e se impõe como narrativa reconhecível e legítima. Por fim, segundo Jürgen Habermas (2008), a racionalidade comunicativa permite que o discurso construa consenso e legitimação social. O voto de Moraes, oral e pedagógico, cria uma arena de entendimento compartilhado, em que a sociedade atua como interlocutora do julgamento histórico.
Discurso e poder
Michel Foucault (1980) ensina que o discurso é uma forma de poder: ele produz regimes de verdade e define o campo do possível. Ao afirmar que “não há dúvida de que houve tentativa de golpe”, Moraes não apenas expôs provas; ele instaurou um regime de verdade que busca organizar a memória coletiva sobre o que ocorreu. A oralidade, nesse contexto, foi o meio para tornar essa verdade audível, visível e compreensível.
Hannah Arendt (1997) sublinha que o poder nasce quando as pessoas agem e falam em conjunto, em um espaço público compartilhado. O voto de Moraes, com sua escolha consciente pela clareza e pela oralidade, inscreve-se nesse horizonte: ele não fala apenas como juiz, mas como ator político que sabe que o discurso é ato de fundação de realidade. Sua performance discursiva buscou consolidar, perante a sociedade, a narrativa democrática contra a narrativa golpista.
Entre a técnica e a performance
Há aqui uma tensão inevitável. Quanto mais a linguagem se aproxima da oralidade popular, mais se expõe ao risco de ser acusada de teatralidade ou parcialidade. Mas é justamente nessa fronteira que se joga o sentido histórico do voto. Em vez de permanecer na clausura técnica, Moraes transformou seu voto em acontecimento discursivo, no qual a oralidade não é mero estilo, mas condição de eficácia política.
Conclusão
O voto de Alexandre de Moraes em 9 de setembro de 2025 revela como a oralidade pode ser um recurso decisivo na disputa política e simbólica. O direito, em momentos de crise democrática, deixa de ser apenas norma e técnica: torna-se narrativa pública, fala coletiva, pedagogia da memória. Nesse gesto, o tribunal não apenas julga; ele fala à sociedade, funda sentidos e disputa o poder das palavras. Integrando dialogismo, performatividade e pedagogia, o voto exemplifica como o discurso judicial pode operar simultaneamente como instrumento de poder, mediação social e educação cívica.
Referências
AUSTIN, John Langshaw. Como fazer coisas com palavras. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1975.
ARRENT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Rio de Janeiro: Forense, 1997.
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Problemas da poética de Dostoievski. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1997.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1980.
HABERMAS, Jürgen. Racionalidade comunicativa e análise de conteúdo. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2008.
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Como citar:
CASTRO, Vanessa Maria de. A linguagem do voto de Alexandre de Moraes: oralidade, poder e pedagogia política, 09 de setembro de 2025. Disponível em: https://palavraemtranse.blogspot.com/2025/09/7-de-setembro-entre-o-real-silenciado-e.html
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