Blindagem e poder: uma leitura arendtiana da votação no Congresso
Blindagem e poder: uma leitura arendtiana da votação no Congresso
Vanessa Maria de Castro
A recente votação em segundo turno da PEC da Blindagem, no dia 16 de setembro de 2025, não pode ser vista apenas como uma disputa numérica no plenário. É um processo que revela fissuras profundas no exercício do poder político no Brasil, e pode ser iluminado pelo pensamento de Hannah Arendt em Entre o Passado e o Futuro. A aprovação da PEC da Blindagem no Congresso Nacional oferece um estudo de caso exemplar para compreender a tensão entre poder, ética e legitimidade institucional no Brasil contemporâneo. Mais do que uma simples contagem de votos, a votação revela como o poder político se organiza para proteger interesses próprios, e quais fissuras surgem quando a autoridade formal se dissocia da autoridade moral. Hannah Arendt propõe que a autoridade legítima não deriva da imposição, mas do equilíbrio entre ação, lei e consenso histórico. Quando esse equilíbrio é rompido, surge um déficit de legitimidade que fragiliza o sistema político e abre espaço para práticas corporativistas.
Arendt nos lembra que o poder não se confunde com a violência: ele nasce da ação conjunta, do consenso e da legitimidade construída historicamente. Quando um partido como o PL, junto com o centrão e a base governista, conseguiu aprovar uma blindagem que protege agentes políticos de investigações, estamos diante de um uso do poder que se sobrepõe à lei e à moral pública. Não se trata de proteger a democracia, mas de proteger indivíduos do escrutínio, do questionamento e, em última instância, do próprio direito de serem responsabilizados por ações que possam ser consideradas crimes ou abusos.
O que vemos é a cristalização de um fenômeno arendtiano: o risco de que o exercício do poder se torne autoritário pelo privilégio, não pela coerção direta, mas pela capacidade de moldar as regras do jogo a favor de quem detém recursos e influência política. A PEC não é apenas um escudo jurídico; ela é um reflexo do passado sendo usado para consolidar privilégios no presente, criando fissuras institucionais que ameaçam a autoridade legítima.
A fissura mais grave se dá dentro da própria esquerda, com parte da bancada do PT votando a favor do PL. Para Arendt, essa dissidência evidencia a fragilidade da autoridade moral quando confrontada com o pragmatismo político: o poder de quem está no comando se impõe sobre a coerência ética. A exceção se torna regra na prática, mesmo que formalmente o discurso do partido permaneça contra a blindagem.
O que seria correto, do ponto de vista arendtiano, não seria criar uma “blindagem”, mas reafirmar o direito de ser e o direito de responsabilização. Em outras palavras: legislar e organizar o sistema político não para proteger criminosos ou privilegiados, mas para garantir que todos que ocupam posições de poder respondam pelos seus atos, respeitando a lei e a memória histórica.
Portanto, a votação revela dois fenômenos centrais:
A hegemonia corporativista do centrão e da base governista, que redefine regras a seu favor, criando blindagens institucionais.
As fissuras na oposição e na esquerda, que demonstram como o pragmatismo pode corroer a autoridade moral, permitindo que o poder se sobreponha à ética e à justiça.
Análise Quantitativa Detalhada dos Votos
Total de votos registrados na lista: 438 votos
Distribuição: Sim: 325 votos, Não: 113 votos
Quadro: Como votaram os partidos
Fonte: Câmara dos Deputados, 16 de setembro de 2025.
O bloco corporativista: poder concentrado e autopreservação
Os partidos PL, PP, Republicanos, União Brasil e MDB formaram o núcleo duro da aprovação, com 248 votos a favor, correspondendo à quase totalidade de suas bancadas. Essa coesão quase absoluta demonstra liderança centralizada e disciplina interna, características típicas de blocos corporativistas, que usam o poder legislativo para autoproteção institucional. A blindagem não busca proteger a democracia ou reforçar a legalidade; é um instrumento de defesa de privilégios, assegurando que parlamentares e setores do poder permaneçam imunes à responsabilização, mesmo diante de condutas questionáveis.
Arendt enfatiza que a autoridade legítima depende da coerência ética e do respaldo social; quando normas são manipuladas para proteger interesses próprios, há erosão da autoridade moral das instituições. Assim, a hegemonia do bloco corporativista evidencia uma fragilidade ética estrutural, onde a força numérica se sobrepõe ao compromisso com a justiça e o interesse público.
O centro: negociação e vulnerabilidade ética
Partidos considerados de centro, como PSD, PDT, PSB, PSDB, Podemos e Avante, apresentaram comportamentos mistos, com inclinação majoritária ao “Sim”. Essa configuração revela que o centro funciona como espaço de negociação corporativa, onde a decisão não se apoia em coerência ideológica ou ética, mas em cálculo estratégico e acomodação a pressões do bloco dominante. A fragmentação do centro reforça a percepção de que o poder legislativo se organiza segundo capacidade de articulação e controle da agenda, e não necessariamente segundo princípios normativos ou morais.
A esquerda: coerência ética e fissuras estratégicas
Os partidos de esquerda, especialmente PSOL e PCdoB, votaram de forma coesa contra a blindagem, mantendo coerência ideológica e compromisso ético. O PT, no entanto, apresentou 12 votos favoráveis ao PL, embora a maioria tenha seguido orientação de oposição (67 votos “Não”). Essa dissidência revela as fissuras internas da esquerda, consequência de pressões regionais, pragmatismo político e fragilidades institucionais. Para Arendt, essas fissuras demonstram que o poder sem ética fragiliza a autoridade moral das instituições, mesmo quando partidos ou lideranças tentam manter coerência normativa.
Poder, ética e legitimidade
A PEC da Blindagem não apenas protege privilégios, mas materializa o poder corporativista, evidencia fissuras na esquerda e revela a fragilidade da coerência ética do centro. Arendt nos lembra que o direito de ser e a responsabilização são pilares da autoridade legítima. Quando normas e instituições são moldadas para favorecer interesses próprios, o poder permanece formal, mas a legitimidade se dissipa.
A votação demonstra que o Congresso atua não apenas como espaço de representação ideológica, mas como arena de proteção corporativa, onde a ética, o consenso histórico e a responsabilidade legal podem ser subordinados à manutenção do poder. A análise quantitativa dos votos confirma que o bloco corporativista teve força decisiva, enquanto a esquerda resistiu eticamente, ainda que com fissuras, e o centro negociou, revelando o cálculo estratégico como fator predominante.
Autoridade sem ética é instável; poder sem legitimidade é vulnerável, e a política brasileira atual, neste episódio, evidencia o preço de colocar interesses corporativos acima do compromisso com a justiça e a responsabilidade institucional.
A fissura arendtiana revelada por esta votação evidencia que o poder formal, mesmo quando consolidado numericamente, não se traduz em autoridade legítima quando a ética é subvertida. Arendt nos lembra que a política se funda na responsabilidade, na ação conjunta e no respeito à lei como expressão de memória histórica. A PEC da Blindagem demonstra que, quando o pragmatismo corporativista se sobrepõe à ética, o poder se torna um instrumento de autopreservação e não de justiça. A autoridade legítima não pode ser blindada; ela depende da coerência moral de quem exerce a função pública, e a erosão dessa coerência constitui a fissura arendtiana mais profunda do sistema político brasileiro: um poder que existe formalmente, mas carece de legitimidade ética, corroendo a própria essência da democracia.
Ainda mais grave é que a blindagem não protege apenas interesses privados, mas impede que os parlamentares sejam responsabilizados por suas ações, mesmo quando estas permanecem visíveis ao público. Para Arendt, a política se funda na ação conjunta e na responsabilidade ética, que legitimam o poder e sustentam a autoridade moral. Quando mecanismos institucionais permitem que decisões e votações ocorram sem consequências reais, o poder degenera em autopreservação desprovida de ética, substituindo o compromisso com o bem comum pelo privilégio pessoal. Essa dissociação evidencia a fissura entre poder formal, que se concretiza na posição institucional ou na contagem de votos, e autoridade moral, que depende da coerência ética, da responsabilização e do reconhecimento coletivo. Trata-se de um dos exemplos mais claros da erosão da legitimidade ética do Congresso, mostrando como o exercício do poder pode se tornar autônomo em relação à justiça e à responsabilidade social.
Um aspecto particularmente revelador da PEC da Blindagem é que ela impede que os parlamentares sejam constantemente responsabilizados pelos eleitores, ainda que suas ações permaneçam visíveis, como Trotsky previa ao defender a necessidade de vigilância permanente sobre os detentores do poder. Ao criar mecanismos de proteção que os isolam do escrutínio público, o Congresso e seus membros corroem a própria autoridade moral que deveria sustentar o poder legítimo. Para Arendt, o poder que se desvincula da ética e da ação responsável perde legitimidade; a blindagem não apenas protege interesses próprios, mas desvirtua a política como espaço de ação coletiva e responsabilidade compartilhada, tornando os representantes visíveis, porém imunes à responsabilização por aqueles que deveriam controlá-los.
A análise da PEC da Blindagem evidencia que a política brasileira enfrenta uma fissura profunda entre poder formal e autoridade moral, conceito central na reflexão de Hannah Arendt (1992). A votação não revela apenas interesses corporativos e negociações pragmáticas, mas sobretudo a erosão da responsabilidade ética, da transparência e da própria democracia, pilares essenciais do regime político. Ao criar mecanismos que tornam parlamentares visíveis, mas imunes à responsabilização, o Congresso compromete a legitimidade da autoridade, transformando a política em espaço de autopreservação e privilégio, e não de ação coletiva e compromisso com o bem comum.
Essa dinâmica confirma, à luz de Trotsky (2008), a importância da vigilância permanente sobre os detentores do poder, garantindo que a democracia não se limite a processos formais, mas seja sustentada por controle social, coerência ética e responsabilização contínua. Martin Buber (2003) complementa essa perspectiva ao enfatizar que a ética política nasce da relação responsiva entre sujeitos, ou seja, do reconhecimento mútuo e da responsabilidade contínua que cada agente exerce sobre o outro. Jürgen Habermas (1999), por sua vez, reforça que a deliberação pública e a transparência são condições essenciais para que a autoridade se legitime democraticamente. Quando essas dimensões são subvertidas, como mostra a PEC da Blindagem, o poder permanece formalmente intacto, mas sua autoridade se fragiliza, criando fissuras institucionais que ameaçam o funcionamento democrático.
Nesse contexto, mesmo órgãos ou representantes dotados de “superpoderes” permanecem moralmente fragilizados, porque autoridade legítima não se sustenta apenas em força formal, mas na coerência ética, na transparência e na responsabilização contínua — elementos essenciais para o funcionamento real da democracia.
Em última instância, a lição do caso é clara: a política só pode ser legítima se combinada com ética, transparência, responsabilidade e democracia efetiva. Blindagens institucionais que favorecem interesses privados e protegem agentes políticos corroem o contrato social, subvertem a democracia e afastam o poder de sua função essencial: servir à coletividade com justiça, visibilidade e responsabilidade. A consolidação de uma autoridade legítima exige, portanto, não apenas atenção à formalidade das votações, mas a reintegração constante da ética, da ação responsável, da transparência e do compromisso democrático, como defendem Arendt (1992), Trotsky (2008), Buber (2003) e Habermas (1999), no exercício do poder.
Além disso, a análise da PEC da Blindagem evidencia que o poder formal, por si só, não garante legitimidade; ele precisa ser constantemente sustentado por mecanismos de responsabilização, ética e controle social. Quando instituições políticas criam proteções que tornam parlamentares praticamente imunes ao escrutínio público, como demonstrado nesse caso, a política deixa de ser espaço de diálogo e ação coletiva, transformando-se em instrumento de autopreservação e privilégio. A democracia, nesse contexto, não se limita à realização de votações ou à manutenção de maiorias numéricas; ela exige transparência, participação cidadã efetiva e coerência ética dos representantes. Só assim o poder se mantém conectado à autoridade moral e ao compromisso com o bem comum, evitando que práticas corporativistas corroam a confiança pública e fragilizem o sistema democrático.
Quando o Congresso cria mecanismos de blindagem que protegem parlamentares da responsabilização, estamos diante de uma política que aproxima o poder da autopreservação e do privilégio, mas que ainda depende de formalismos para se manter. Para Arendt (1992), quando a autoridade legítima é corroída, o espaço político corre o risco de se tornar um espaço de violência, não no sentido físico imediato, mas como substituição do consenso e da ética pela coerção, manipulação e imposição de interesses privados. A democracia só se fortalece quando o poder é sustentado por ação coletiva, responsabilidade ética e transparência, evitando que a política se transforme em um mecanismo de dominação mascarado como formalidade.
Referências
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro: oito exercícios de pensamento político. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1992.
ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Tradução de Duarte André. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2022. 154 p.
BUBER, Martin. Eu e Tu. Petrópolis: Vozes, 2003.
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Votação nominal da PEC da Blindagem, 16 de setembro de 2025. Disponível em: https://www.camara.leg.br. Acesso em: 18 set. 2025.
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999.
TROTSKY, Leon. A Revolução Permanente. São Paulo: Boitempo, 2008.
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Como citar:
CASTRO, Vanessa Maria de. Blindagem e poder: uma leitura arendtiana da votação no Congresso. Disponível em: Linkpermanentehttps://palavraemtranse.blogspot.com/2025/09/blindagem-e-poder-uma-leitura.html. Acesso em: 18 set. 2025.
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Autora: Vanessa Maria de Castro é professora da Universidade de Brasília (UnB) e psicanalista, com trajetória voltada à análise crítica das dinâmicas políticas e sociais e suas repercussões na democracia e nos direitos humanos.
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