Em Diálogo com Pedro Demo: Autoria, Ética e Criatividade
Em Diálogo com Pedro Demo: Autoria, Ética e Criatividade
Vanessa Maria de Castro
Em 15 de setembro de 2025, o Professor Pedro Demo proferiu uma fala aos novos mestrandos(as) e doutorandas(os) do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da Universidade de Brasília, sobre autoria responsável, convidando-nos a refletir sobre o verdadeiro sentido do mestrado e doutorado. Seu texto “Autores Responsáveis” nos lembra que essas etapas acadêmicas não são apenas formalidades institucionais, mas oportunidades únicas de resgatar a aprendizagem autoral, de reconquistar a liberdade criativa que nos foi cerceada ao longo da escolarização e de desenvolver uma postura crítica, ética e relacional diante do conhecimento. Inspirados por sua fala, este ensaio busca dialogar com suas ideias, explorando a construção do conhecimento como um processo dialético, histórico e ético, no qual criação, ceticismo e responsabilidade caminham juntos.
Professor Pedro Demo, ao ler o seu texto “Autores Responsáveis”, você nos lembra do que realmente se trata um mestrado e doutorado, que são mais do que etapas acadêmicas: são oportunidades de ressignificar a aprendizagem autoral, como o senhor destaca, e de recuperar a liberdade criativa que nos foi cerceada desde a infância. Até o pré-escolar, éramos cientistas natos: explorávamos o mundo com curiosidade, experimentávamos, inventávamos hipóteses, testávamos ideias. Essa liberdade, que deveria ter se consolidado ao longo de nossa trajetória escolar, foi, na maioria das vezes, limitada por um ensino instrucionista, que valorizava mais a memorização e reprodução do que a criação. A criatividade foi domesticada e, com ela, o desejo de questionar, propor, experimentar e inovar aprisionados e quase proibidos.
É nesse contexto que o mestrado e o doutorado nos convidam a recuperar a arte de criar de maneira consciente. Aprender não é apenas absorver conteúdos; é construir, desconstruir e confrontar visões, exercendo ceticismo diante daquilo que nos é apresentado. Do ponto de vista epistemológico, esse processo envolve refletir sobre como sabemos o que sabemos, questionando as bases do conhecimento e reconhecendo suas limitações e condições históricas. A comunidade acadêmica nos oferece um repertório de autores, teorias e metodologias, mas nosso papel é dialogar criticamente com esse acervo, aderindo ou discordando, testando, confrontando, sempre em busca de uma produção de conhecimento própria, ética e responsável.
O que o seu texto ressalta com força é que “autoria responsável não é apenas escrever, é viver um processo dialético”. Cada teoria, cada leitura, cada discussão é um movimento entre tese, antítese e síntese. Podemos pensar nisso como uma pintura em construção, onde cada traço, cada cor e cada sombra dialogam entre si, ou como uma partitura de música clássica, uma sinfonia composta de infinitos sons e contrapontos que, embora isoladamente possam parecer desconexos, juntos criam algo belo e capaz de tocar a alma.
Essa analogia ajuda a perceber que a construção do conhecimento não é linear nem completa de imediato. Cada argumento que aceitamos ou contestamos, cada leitura que incorporamos ou rejeitamos, é um movimento de composição, uma nota ou uma pincelada que dialoga com as anteriores e antecipa as futuras. Nesse processo, somos obrigados a confrontar nossos próprios limites, a reconhecer a incompletude do que produzimos, e a aceitar que o conhecimento é sempre provisório, em constante refinamento.
Como Karl Marx e outros autores que o você mencionou, precisamos reconhecer que o conhecimento é sempre provisório, um rascunho contínuo que se refina no diálogo com outros autores, com os argumentos alheios, com a história e com a realidade social. Não se trata de adotar ideias, mas de usá-las como ferramentas para “criar algo próprio, fundamentado e crítico”.
A dimensão ética desse processo se torna ainda mais evidente quando incorporamos a perspectiva de Emmanuel Levinas e sua reflexão sobre o Rosto do Outro. Para Levinas, o encontro com o outro nos impõe uma responsabilidade incondicional. Não podemos tratar o outro como objeto ou como dado, mas devemos reconhecê-lo como sujeito, com direitos, limites e dignidade. Aplicando essa lógica à prática acadêmica, a autoria responsável não é apenas uma questão de rigor teórico ou criativo: é também uma responsabilidade ética em relação aos sujeitos com os quais nos relacionamos. Isso inclui estudantes, colegas, comunidades de pesquisa e participantes de estudos, cujas vozes, histórias e dados devem ser respeitados e preservados.
Quando somos confrontados com um pedido de dados de pesquisa, percebemos que este é um momento concreto de aplicar princípios éticos. Não se trata apenas de proteger informações; trata-se de assumir a responsabilidade pelo impacto do nosso conhecimento sobre a vida de outros, de reconhecer o outro enquanto sujeito e não como recurso ou objeto. É nesse gesto que a ética se entrelaça com a autoria: criar conhecimento sem responsabilidade relacional seria incompleto, assim como todo conhecimento que não dialoga com a realidade e com o outro.
Ser autor responsável, portanto, exige mais do que domínio teórico: exige consciência histórica, sensibilidade ética, e uma postura crítica diante da tradição e da autoridade. Não podemos nos contentar com a repetição de ideias ou com a submissão a teorias consagradas; precisamos “desenvolver a capacidade de criar algo novo, respeitando os outros autores e as vozes diversas que nos cercam”. É nesse espaço que a dialética se encontra com a ética: nossas divergências não são ataques, mas oportunidades de aprendizado; nossas discordâncias não são desrespeito, mas exercício de pensamento crítico.
O processo de aprendizagem autoral é, também, histórico e relacional. Desde crianças, fomos educados para seguir regras, repetir respostas, para não questionar. Muitas vezes, fomos castrados em nossa criatividade não por incapacidade, mas por um sistema que valorizava a obediência sobre a inovação, moldando-nos como corpos dóceis, nas palavras de Foucault, preparados para aceitar a autoridade e cumprir funções pré-determinadas. Esse controle se manifesta de maneiras ainda mais intensas sobre as mulheres, historicamente ensinadas a serem subservientes, discretas, obedientes, e sobre os sujeitos de periferias, marcados por exclusão e invisibilização.
Recuperar a autoria é, então, recuperar a capacidade de questionar o que nos foi imposto, de dialogar com diferentes perspectivas e de construir conhecimento com liberdade crítica. É, de certo modo, reescrever nossa própria história intelectual, reconstruindo aquilo que a escolarização e as estruturas sociais nos tiraram, abrindo espaço para criatividade, autonomia e consciência ética, especialmente para aqueles que foram mais submetidos aos processos de dominação e silenciamento.
Como Graciliano Ramos nos lembra em “A arma do escritor é o lápis”:
“Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa; a palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.”
Essa metáfora reforça a importância do cuidado e da paciência no trabalho autoral. Criar conhecimento exige atenção, repetição, revisão, refinamento constante — assim como as lavadeiras torcem o pano até que não pingue mais uma gota. Não se trata apenas de produzir textos ou dados; trata-se de assumir responsabilidade pelo impacto do conhecimento, respeitar o outro enquanto sujeito e reconhecer a dimensão ética de nossa prática acadêmica. Criar sem esse cuidado seria incompleto, assim como todo conhecimento que não dialoga com a realidade e com os sujeitos envolvidos.
A arte de criar no mestrado e doutorado, assim, exige assumir que a produção do conhecimento não se esgota em teoria ou técnica; envolve ética, sensibilidade e responsabilidade social. O conhecimento só se completa quando dialoga com a vida, com o outro, com as diferentes experiências que formam nossa sociedade. Como Levinas nos lembra, o encontro com o rosto do outro nos chama para a responsabilidade. No contexto acadêmico, isso significa garantir que nossas pesquisas, nossas leituras, nossas argumentações respeitem e incluam, não apenas abstrações, mas pessoas concretas.
Portanto, recuperar a aprendizagem autoral é também recuperar a capacidade de ser ético e criativo, de ser crítico e cético, de dialogar com múltiplas perspectivas e de assumir responsabilidade pelos efeitos de nosso conhecimento. O mestrado e o doutorado se tornam, assim, laboratórios de criação, onde a ética e a criatividade caminham juntas, onde a dialética se encontra com a história, e onde a relação com o outro orienta cada passo do nosso aprendizado.
Professor Pedro nos lembra que ser autor responsável é ser capaz de criar com liberdade, ceticismo e ética, de assumir a interdependência com outros autores e com o outro em sua singularidade, e de transformar o conhecimento em instrumento de reflexão crítica, socialmente responsável e historicamente consciente. Essa é a aprendizagem que o mestrado e o doutorado nos convidam a reconstruir: a aprendizagem de pensar, criar e responder, sempre com respeito pelo outro e pela complexidade do mundo que compartilhamos.
Em diálogo com o Professor Pedro Demo, percebemos que ser autor responsável implica mais do que produzir textos ou pesquisas: significa criar com liberdade crítica, questionar o estabelecido, dialogar com múltiplas perspectivas e assumir responsabilidade ética diante do outro. O mestrado e o doutorado oferecem um espaço privilegiado para reconstruir a aprendizagem autoral, recuperar a criatividade domesticada e desenvolver sensibilidade ética, especialmente em relação aos sujeitos e comunidades com os quais interagimos. Como a metáfora das lavadeiras nos lembra, a produção do conhecimento exige cuidado, paciência e repetição — cada gesto, cada reflexão, cada escrita é parte de um processo contínuo de refinamento. Assim, o verdadeiro aprendizado acadêmico não se esgota na teoria ou na técnica; ele se concretiza no exercício responsável da autoria, no diálogo constante com o outro e na construção de um conhecimento que seja, ao mesmo tempo, crítico, ético e socialmente relevante.
Referências
DEMO, Pedro. Autores responsáveis. 2025. Disponível em: https://pedrodemo.blogspot.com/2025/09/cronica-111-autores-responsaveis.html. Acesso em: 22 set. 2025.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito: ensaio sobre a exterioridade. Tradução de Paulo César de Souza. 5. ed. Lisboa: Edições 70, 1993.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O Manifesto Comunista. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
RAMOS, Graciliano. A arma do escritor é o lápis. In: RAMOS, Graciliano. Obras reunidas. 1. ed. Rio de Janeiro: Record, 2015.
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Como citar:
CASTRO, Vanessa Maria de. Em Diálogo com Pedro Demo: Autoria, Ética e Criatividade Disponível em: https://palavraemtranse.blogspot.com/2025/09/em-dialogo-com-pedro-demo-autoria-etica.html. Brasília, 21 set. 2025.
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Autora: Vanessa Maria de Castro é professora da Universidade de Brasília (UnB) e psicanalista, com trajetória voltada à análise crítica das dinâmicas políticas e sociais e suas repercussões na democracia e nos direitos humanos.
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