Medusa e a Injustiça Estrutural: Sofrimento, Violência, Patriarcado e Direitos das Mulheres
Medusa de Caravaggio
Medusa e a Injustiça Estrutural: Sofrimento, Violência, Patriarcado e Direitos das Mulheres
Vanessa Maria de Castro
Entrei na sala de aula do meu querido colega, professor José Geraldo de Sousa Junior, na clássica disciplina de sexta-feira à tarde dos Programas de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania e em Direito: O Direito Achado na Rua. Na tela, estava projetada a imagem de uma estátua de bronze — uma mulher erguendo, em suas mãos, a cabeça decepada de um homem. A questão foi dirigida ao professor convidado, Prof. David Sánchez Rubio, da Universidad de Sevilla, durante sua visita à Universidade de Brasília (UnB) no mês de setembro de 2025. Ao reconhecer a cena, identifiquei a figura de Medusa — e com ela o peso de um mito que atravessa séculos, revelando a violência e a opressão contra as mulheres.
Mesmo que tardiamente, segue uma reflexão sobre a cena projetada na tela e sobre a maravilhosa disciplina ministrada pelo Professor José Geraldo de Sousa Junior. Esta é uma contribuição à reflexão sobre como a arte nos convida a pensar a vida, revelando possibilidades de existir e agir no mundo.
“Medusa com a Cabeça de Perseu”
Foto: Autor desconhecido. Garbati, Luciano. Medusa com a Cabeça de Perseu
A obra “Medusa com a Cabeça de Perseu”, do artista argentino Luciano Garbati, foi criada em 2008 e instalada temporariamente em frente ao Tribunal Criminal do Condado de Nova York em 2020, no contexto do julgamento de Harvey Weinstein por crimes sexuais.
A história de Medusa
Na mitologia grega, Medusa era uma jovem mortal, de rara beleza, sacerdotisa virgem do templo de Atena, deusa da sabedoria e da justiça. Sua beleza, porém, tornou-se motivo de cobiça. Poseidon, deus dos mares, a violentou justamente no espaço sagrado que deveria protegê-la. O gesto inaugura o paradoxo: a violação ocorre dentro do templo da justiça.
Quando Atena toma conhecimento do ocorrido, não se volta contra o agressor, mas contra a vítima. Punida por sua beleza e por sua virgindade violada, Medusa é transformada em um ser monstruoso: seus cabelos tornam-se serpentes e seu olhar passa a petrificar quem ousa enfrentá-la. Medusa foi exilada, vivendo sozinha em uma região desolada, afastada de templos e da sociedade. Assim, a jovem que deveria ter sido protegida tornou-se vítima dupla: do estupro e da injustiça divina. Como descreve Pierre Grimal (2005), Atena não castiga o deus violador, mas a mulher violentada, deslocando a culpa do agressor para a vítima.
A punição de Atena é especialmente cruel porque não apenas altera sua aparência, mas também anula sua vida social e liberdade, configurando uma morte simbólica. Medusa não podia simplesmente permanecer viva porque o mito não busca justiça, mas neutralizar a vítima e controlar a transgressão simbólica que sua beleza e virgindade representavam. A transformação em monstro funciona como aviso: mulheres que excedem certos limites — ainda que vítimas de violência — tornam-se ameaças a serem destruídas. Atena, assim, desloca a culpa do agressor para a vítima e reforça uma lógica patriarcal em que a verdadeira justiça não é aplicada.
Mais tarde, Perseu, filho de Zeus e da mortal Danae, foi incumbido de decapitar Medusa. Para isso, recebeu auxílio de Atena, que lhe ofereceu um escudo polido, e de Hermes, que lhe deu uma espada especial. Perseu também foi ajudado pelas ninfas, que lhe forneceram sandálias aladas, o capacete da invisibilidade e uma bolsa mágica para guardar a cabeça da górgona. Usando o reflexo do escudo para não olhar diretamente para os olhos de Medusa, Perseu conseguiu decapitá-la enquanto ela dormia. Mas não a enfrenta de frente. Usa um escudo polido como espelho para evitar seu olhar. Ao mirar o reflexo, consegue decapitá-la sem nunca encarar seus olhos.
Perseu aproximou-se de Medusa enquanto ela dormia, evitando seu olhar direto pelo reflexo no escudo de Atena. Com um golpe preciso, decapitou-a, encerrando sua vida. Do sangue que jorrou de Medusa nasceram Pégaso, o cavalo alado, e Crisaor, o guerreiro de espada dourada, símbolos de potência e criação que emergem da destruição da vítima.
A decapitação não foi apenas um ato físico: simbolicamente, representou a vitória do poder masculino sobre a mulher punida injustamente. Medusa, que já havia sofrido a violência de Poseidon e a punição de Atena, teve seu destino final selado por Perseu. O mito revela a lógica do patriarcado: a vítima, transformada em monstro e exilada, é finalmente eliminada, enquanto o agressor original permanece impune.
Feminismo e patriarcado no mito
Na chave feminista, a narrativa de Medusa revela a lógica estrutural da opressão. Ela é punida não pelo que fez, mas pelo que é: bela, desejada, virgem. Como lembra Simone de Beauvoir (2009), a mulher foi historicamente reduzida a objeto, não a sujeito de desejo. Sua beleza, longe de ser dom, torna-se maldição; sua virgindade, longe de ser proteção, é convertida em motivo de violência e violação.
O mito evidencia a lógica patriarcal de responsabilização da vítima: ao invés de punir Poseidon, o agressor, Atena transforma Medusa em monstro, exilando-a e convertendo sua existência em ameaça simbólica. Mulheres que representam desejo, poder ou autonomia são culpabilizadas pelo sistema, e seus corpos tornam-se instrumentos de dominação masculina.
A beleza e a virgindade de Medusa — qualidades que deveriam protegê-la — são apropriadas para garantir a glória masculina. A transformação em monstro simboliza a anulação da mulher, enquanto o corpo feminino se torna território de conquista, controle e punição. Medusa não é castigada pelo que sofreu, mas pelo que representa: a autonomia e o poder feminino são convertidos em ameaça, justificando sua exclusão e violência contra ela.
Sob esta perspectiva, o mito funciona como alerta feminista: evidencia a estruturalidade da violência contra a mulher, a naturalização da impunidade masculina e a forma como a sociedade patriarcal historicamente transforma vítimas em culpadas, perpetuando a dominação sobre seus corpos e suas vidas.
A construção da identidade feminina é atravessada por normas de gênero que sustentam a subordinação, e Medusa é um exemplo paradigmático desse processo: definida pelo olhar masculino, ela não é apenas objeto de desejo, mas simultaneamente troféu de conquista, alvo de violação e ameaça a ser eliminada. O mito revela que o patriarcado não apenas impõe violência física e simbólica, mas também transforma a própria vítima em culpada, responsabilizando-a pelo abuso que sofreu e pela transgressão que representa. Essa lógica evidencia como a identidade feminina é moldada e vigiada socialmente, de modo que a mulher é constantemente avaliada pelos padrões masculinos e punida quando desafia ou excede os limites que lhe são impostos. Medusa, ao ser transformada em monstro, simboliza a subordinação estrutural da mulher, mostrando que a violência patriarcal não é apenas um ato isolado, mas um processo social contínuo de controle e anulação da autonomia feminina (Butler, 2003).
Medusa, com seus cabelos de serpente, antecipa o destino da mulher transformada em monstro, um mecanismo simbólico que legitima a sua eliminação e reforça a dominação masculina. Sua punição transcende a esfera individual e se inscreve em uma lógica social: mulheres que excedem os limites impostos pelo patriarcado — seja pela beleza, pela sexualidade ou pela autonomia — são representadas como perigosas, monstruosas, e, portanto, passíveis de controle ou destruição. A monstruosidade de Medusa não é apenas uma consequência de sua própria ação, mas uma construção cultural que naturaliza a subordinação feminina, convertendo a vítima em culpada e justificando a violência contra ela.
O mito funciona como um modelo arquetípico da opressão das mulheres, uma antecipação histórica de práticas de perseguição e punição que se repetiram ao longo dos séculos, como nas caças às bruxas ou na criminalização da sexualidade feminina. Medusa, portanto, simboliza a manipulação da imagem da mulher como ameaça, instrumento e objeto de dominação, enquanto a sociedade patriarcal consolida a impunidade masculina e legitima a violência — como lembra Silvia Federici (2017).
Sofrimento feminino: Medusa como símbolo da opressão estrutural
O mito de Medusa revela, de forma intensa, o sofrimento psíquico da mulher que, violentada e estigmatizada, é condenada ao isolamento. O olhar que petrifica funciona como metáfora da solidão, da abjeção e da impossibilidade de existir fora da lógica patriarcal. Como observa Julia Kristeva (1989), aquilo que é considerado “abjeto” pelo social — o impuro, o interdito — é expulso para proteger a ordem simbólica. Medusa encarna a mulher abjeta, cuja existência, beleza e autonomia se tornam intoleráveis para a ordem masculina e simbólica. O mito revela, assim, como o sofrimento feminino não é apenas resultado da violência direta, mas também da instrumentalização social da vítima, que é transformada em ameaça para justificar a opressão.
O olhar petrificante de Medusa simboliza a tensão entre o poder feminino e o medo masculino, mostrando que a mulher, mesmo vítima, é percebida como ameaça estrutural para a identidade patriarcal. Sua monstruosidade não é apenas um castigo, mas um mecanismo de proteção simbólica do masculino: neutralizando a potência feminina, o patriarcado garante sua própria estabilidade.
Em sua teoria do olhar, Jacques Lacan (2006) propõe que o olhar não é apenas uma função ocular, mas uma instância psíquica que estrutura o desejo. O olhar é um objeto que causa desejo, mas que também pode ser ameaçador e gerar sofrimento. No mito de Medusa, o olhar da Górgona é fatal: aqueles que a encaram são transformados em pedra. Essa característica manifesta o olhar lacaniano, em que o poder e a autonomia femininos são percebidos como ameaça ao sujeito masculino, provocando desejo e medo simultaneamente.
A violência sofrida por Medusa, desde o estupro de Poseidon até sua punição por Atena e a decapitação por Perseu, pode ser entendida como uma tentativa de neutralizar esse olhar ameaçador. O desejo masculino, ao se realizar sobre ela, gera sofrimento de múltiplas formas: físico, simbólico e psíquico. Cada gesto — violação, punição, exílio e morte — evidencia que a glória masculina se consolida sobre a destruição da mulher. Assim, o mito mostra como o desejo masculino gera sofrimento quando se depara com potência, autonomia ou diferença feminina.
A violência sofrida por Medusa, desde o estupro cometido por Poseidon até sua punição por Atena e a decapitação por Perseu, pode ser compreendida como uma tentativa de neutralizar seu olhar ameaçador e sua autonomia. Cada ato se manifesta de forma distinta sobre seu corpo e subjetividade:
O estupro de Poseidon
O estupro de Poseidon não apenas viola fisicamente Medusa, mas inscreve sobre seu corpo a marca profunda da transgressão do desejo masculino, transformando sua própria existência em objeto de poder alheio. Sua virgindade, antes considerada símbolo de pureza e proteção social, é convertida em instrumento de violência: o corpo da mulher torna-se território de dominação, e sua beleza, que deveria ser atributo pessoal, passa a ser pretexto e justificativa para a agressão. O ato inaugura uma experiência de trauma físico, psicológico e simbólico, instaurando medo constante, humilhação interiorizada e impotência social.
Além disso, o estupro não apenas destrói a integridade corporal, mas também a subjetividade de Medusa: sua identidade e autonomia são imediatamente violadas, deslocando para ela a responsabilidade pelo desejo e pelo poder masculino que a cercam. Cada olhar sobre seu corpo passa a carregar uma tensão de ameaça; a mulher que deveria ser protegida transforma-se em objeto de temor, refletindo a lógica patriarcal que criminaliza e penaliza a vítima em vez do agressor.
Sob a perspectiva feminista, esse ato evidencia como a violência sexual é sistêmica: não se trata apenas de um ataque isolado, mas de um mecanismo estrutural de controle sobre o corpo feminino. A beleza e a virgindade de Medusa são apropriadas e transformadas em instrumentos de dominação e punição, mostrando que, no imaginário patriarcal, a mulher é reduzida a um receptáculo do desejo masculino, sujeita à violência e à instrumentalização simbólica desde o primeiro ato de transgressão.
A punição imposta por Atena
A punição imposta por Atena, que transforma Medusa em górgona com cabelos de serpente e olhar petrificante, representa uma violência simbólica extrema, cujo impacto ultrapassa o físico e atinge diretamente a subjetividade da mulher. Nesse ato, o corpo feminino é completamente instrumentalizado para o controle social, tornando-se instrumento de terror que reforça a ordem patriarcal. A mulher, antes vítima da violência sexual, é convertida em monstro: sua autonomia é neutralizada, sua identidade dissolvida, e seu isolamento social imposto de forma absoluta.
A transformação não apenas altera sua aparência, mas anula sua presença no espaço social e simbólico. Medusa deixa de existir como sujeito autônomo e passa a ser percebida como ameaça coletiva — uma monstruosidade que serve de advertência para a sociedade, especialmente para outras mulheres. O castigo de Atena evidencia a lógica estrutural da opressão: a mulher violada é punida, enquanto o agressor permanece impune, e o corpo feminino é instrumentalizado para manter a hegemonia masculina.
Sob a perspectiva feminista, a transformação de Medusa em monstro funciona como um mecanismo de controle do poder feminino: ao petrificar o olhar de quem a encara, ela se torna símbolo da ameaça que a autonomia e a potência feminina representam para o patriarcado. O sofrimento de Medusa, portanto, não é apenas físico, mas profundamente simbólico e psíquico, mostrando como a violência estrutural atua para silenciar, isolar e instrumentalizar a mulher, perpetuando sua marginalização.
O exílio de Medusa
O exílio de Medusa intensifica e prolonga o impacto psicológico da violência que sofreu. Seu corpo, transformado em monstro, torna-se território de solidão extrema, abjeção e marginalização, refletindo o isolamento que a opressão patriarcal impõe às mulheres que desafiam normas de poder e controle. O olhar petrificante de Medusa, que anteriormente funcionava como defesa simbólica, agora materializa o medo que sua potência e autonomia provocam no masculino, consolidando sua condição de ameaça social e psicológica.
Ao ser exilada, Medusa não apenas perde seu espaço físico na sociedade, mas tem sua subjetividade e identidade radicalmente desvalorizadas, forçando-a a viver à margem da comunidade e da ordem simbólica. A punição não é apenas uma consequência de seus atos — afinal, ela é vítima — mas uma estratégia patriarcal de neutralização da diferença feminina, onde a mulher é castigada simplesmente por existir como ser autônomo, desejável e potente. O sofrimento imposto pelo exílio combina dor física, humilhação simbólica e trauma psicológico, tornando o corpo feminino palco de violência estrutural e prolongada.
A decapitação por Perseu
Fonte: Perseus Segura a cabeça de Medusa (1801). Musei Vaticani, Rome
A decapitação de Medusa por Perseu não é apenas um ato físico, mas a consumação de um processo sistemático de violência que atravessa seu corpo, subjetividade e posição simbólica na sociedade. O golpe final materializa a glória masculina construída sobre a destruição feminina, transformando o corpo da mulher em palco de exibição do poder patriarcal. Cada fase do mito — estupro, punição, exílio — culmina nesse momento, evidenciando que o sofrimento feminino é cumulativo, integrando dor física, trauma psíquico e marginalização simbólica.
Do ponto de vista psicanalítico, a decapitação funciona como síntese da neutralização do poder feminino. O olhar petrificante de Medusa, que poderia ameaçar a ordem patriarcal, é eliminado, e a autonomia que ela ainda possuía é finalmente subjugada. Sob a lente de Freud (2011), a cabeça de Medusa simboliza a castração e o terror masculino diante da diferença sexual, e sua decapitação manifesta o desejo de controlar e dominar a potência feminina.
Além disso, a ação de Perseu, auxiliado por divindades e ferramentas externas, evidencia que a violência sobre a mulher é estruturada: ele não enfrenta Medusa diretamente, mas depende de estratégias e mediações que garantam o controle sobre o corpo feminino e sobre o olhar ameaçador. Nesse sentido, a decapitação revela a lógica patriarcal que instrumentaliza outras mulheres e recursos externos para consolidar o poder masculino e justificar a destruição da mulher, mostrando que o sofrimento de Medusa — e das mulheres em situações análogas — é resultado de uma trama estrutural de opressão.
Assim, o mito evidencia como o desejo masculino gera sofrimento quando confronta potência, autonomia ou diferença feminina. O corpo de Medusa torna-se arena de opressão, ao mesmo tempo objeto de desejo, instrumento de punição e símbolo de terror, mostrando que a violência sobre a mulher é simultaneamente física, psíquica e social, articulando-se para manter a dominação estrutural do patriarcado.
O mito também materializa o medo da castração masculina, como identifica Sigmund Freud (2011). O terror diante da diferença sexual transforma Medusa em figura aterrorizante: sua cabeça petrifica não apenas o olhar físico, mas o olhar psíquico, fixando a ansiedade e o medo masculinos sobre o corpo feminino. O sofrimento da mulher é, portanto, duplo: físico e simbólico, imposto pelo patriarcado que desloca a culpa do agressor para a vítima.
O mito de Medusa, sob a ótica freudiana, articula o medo primal da castração masculina, tema central na teoria psicanalítica de Freud. O medo da castração, uma das principais ansiedades inconscientes na estruturação do sujeito masculino, é projetado na figura de Medusa. A transformação de Medusa em uma criatura monstruosa — com sua cabeça coberta de serpentes e um olhar petrificante — simboliza a representação do terror masculino diante da potência feminina e a ameaça que ela representa à virilidade e ao domínio masculino. A castração não é apenas física, mas psíquica: a mulher, ao possuir um poder incompreensível e ameaçador, representa a incapacidade do homem de controlar ou de se apropriar da potência feminina.
A castração é um conceito central na construção do sujeito masculino e na estruturação do seu desejo em Freud. A castração simbólica refere-se ao medo inconsciente que o homem tem da perda do falo, um símbolo de poder, identidade e virilidade. Para Freud, esse medo está intimamente relacionado à diferença sexual, com o homem sentindo-se vulnerável diante da potência feminina, que ele vê como um vazio ameaçador. No mito de Medusa, a figura da serpente, com sua forma fálica, é uma representação explícita desse temor. As cobras que adornam sua cabeça simbolizam o desejo e o poder sexual feminino, que o patriarcado tenta dominar, mas que também é percebido como uma ameaça destrutiva à ordem masculina.
As cobras de Medusa, com seu movimento sinuoso e fálico, não são apenas símbolos de desejo, mas também da ameaça fálica que a mulher representa. Para o patriarcado, a mulher, com sua sexualidade independente, é uma figura que desafia a ordem estabelecida. Medusa, ao exercer seu poder, se torna um campo de medo e desejo, pois sua autonomia e potência sexual são vistas como um risco para o controle masculino. O olhar petrificante de Medusa, que transforma quem a encara em pedra, funciona como uma metáfora do medo da castração: o homem, ao se deparar com a mulher, se vê impotente frente à sua sexualidade incontrolável e ameaçadora.
A violência simbólica contra Medusa, incluindo sua transformação em monstro e sua subsequente destruição, reflete a tentativa do patriarcado de neutralizar esse poder feminino. As cobras, como símbolos fálicos, materializam o medo de castração do homem, e a eliminação de Medusa busca restaurar a ordem patriarcal, onde a mulher deve ser subjugada e sua autonomia silenciada. Assim, o mito de Medusa, ao integrar a figura da serpente, se torna uma representação do processo simbólico de castração, onde a potência feminina é temida e, portanto, destruída para preservar a supremacia masculina.
O conceito de gozo perverso de Lacan se encaixa de maneira significativa no mito de Medusa, onde a violência contra a mulher não é apenas um castigo, mas uma forma de prazer estrutural para o patriarcado. O conceito de gozo perverso em Lacan é discutido principalmente em suas obras O Seminário, Livro 20: Mais, ainda (1972-1973) e O Seminário, Livro 19: Os Não-Ditos de Freud (1971-1972). O gozo perverso, segundo Lacan, é uma forma de prazer que está intrinsecamente ligada ao sofrimento e à transgressão das normas, sendo frequentemente associada a uma dinâmica de poder e controle, particularmente no contexto da sexualidade e da psique. Para Lacan, o perverso não é simplesmente uma transgressão das leis, mas uma maneira específica de buscar prazer na violação de limites sociais e psíquicos.
O olhar petrificante de Medusa, que transforma aqueles que a encaram em pedra, funciona como uma metáfora do gozo perverso: enquanto os homens são simultaneamente atraídos e temerosos de sua potência, a mulher, ao exercer seu poder, torna-se uma ameaça. Esse olhar representa um desejo e um medo simultâneos, próprios do gozo perverso lacaniano, onde o prazer não se encontra na dominação direta, mas no controle da diferença feminina, transformando o sofrimento da mulher em um prazer masculino. A violação e o castigo impostos a Medusa refletem essa dinâmica, em que a mulher é reduzida ao objeto do desejo e do medo, tornando-se um campo de gozo para a ordem patriarcal.
A marginalização e a destruição de Medusa, culminando em sua decapitação, revelam o gozo perverso do patriarcado em sua forma mais extrema. A decapitação não é apenas um fim físico, mas o resultado de um processo de subordinação e controle, em que o gozo é encontrado na eliminação da autonomia e do poder feminino. A cabeça de Medusa simboliza a castração e o medo masculino diante da potência da mulher, e sua destruição é a consumação desse gozo perverso. O patriarcado, ao subjugar Medusa, não apenas a silencia fisicamente, mas também obtém prazer da violência que desfaz sua autonomia, transformando o sofrimento feminino em um meio de perpetuar sua própria ordem. Dessa forma, o gozo perverso se manifesta não apenas como transgressão, mas como uma estratégia estrutural para eliminar qualquer ameaça à hegemonia masculina.
Segundo Luce Irigaray (1993), a tradição filosófica e psicanalítica silencia a experiência feminina, projetando nela apenas imagens do desejo e do medo masculino. Medusa encarna essa instrumentalização: primeiro como objeto de desejo, depois como monstro a ser eliminado. Sua subjetividade desaparece, restando apenas projeções do outro, e sua destruição consolida a glória masculina, naturalizando a violência e perpetuando a marginalização feminina.
Dessa forma, o mito articula de maneira profunda a opressão estrutural: Medusa é punida não pelo que fez, mas por existir como mulher bela, virgem e desejável. O mito funciona como alerta sobre a lógica patriarcal que transforma a vítima em culpada, instrumentaliza o corpo feminino e legitima a violência simbólica, física e psíquica, revelando o sofrimento estrutural da mulher em todas as suas dimensões. Freud (2011) sintetiza esta leitura ao interpretar a cabeça de Medusa como símbolo da castração e do terror masculino diante da diferença sexual, evidenciando a dimensão psíquica da violência estrutural sobre a mulher.
Direitos Humanos e a subversão da arte
Diante da estátua projetada na aula, o professor José Geraldo nos lembra que ela foi erguida em frente a um tribunal nos Estados Unidos, após a absolvição de acusados em um caso de estupro coletivo. Nessa obra, Medusa segura a cabeça de um homem decapitado. É uma tentativa de subversão: não mais a vítima derrotada, mas a que triunfa.
Contudo, permanece a pergunta: por que não a cabeça de Poseidon, o verdadeiro agressor? Carole Pateman (1993) mostra que o contrato social moderno foi construído sobre um “contrato sexual” não dito, que garante a dominação masculina. A ausência de Poseidon na estátua revela como esse pacto persiste: o deus imortal, representante do poder masculino, continua intocado.
Como observa Rita Segato (2019), o sofrimento das mulheres não é apenas consequência de atos isolados de violência, mas estruturante de relações sociais e de poder. Em sua análise, ela aponta que a violência sexual e simbólica funciona como uma pedagogia: ensina às mulheres — através da dor, da punição e da humilhação — os limites impostos pelo patriarcado, enquanto reforça a dominação masculina. Ou seja, a dor feminina é instrumentalizada socialmente, produzindo efeitos sobre o corpo, a subjetividade e o lugar das mulheres na sociedade.
No contexto da estátua de Luciano Garbati, essa perspectiva torna-se ainda mais clara. Embora a obra inverta o mito, colocando Medusa como figura de triunfo, permanece a questão simbólica central: o verdadeiro agressor, Poseidon, não é punido. Segato nos ajuda a entender que essa ausência evidencia como a pedagogia do sofrimento continua: mesmo quando a narrativa é reinterpretada em termos de resistência feminina, a estrutura de poder que historicamente coloca o corpo da mulher como alvo permanece visível.
Assim, a obra de Garbati pode ser lida como uma interrupção parcial da pedagogia do sofrimento, oferecendo uma imagem de resistência e reparação simbólica. Mas, ao mesmo tempo, a falta de punição do agressor sublinha que o sistema patriarcal ainda preserva seus privilégios, mostrando que a dor feminina não desaparece apenas com a inversão do mito: ela continua sendo um vetor de aprendizado social sobre hierarquias de poder e gênero.
A verdadeira justiça simbólica seria arrancar a imortalidade de Poseidon. Fazer do agressor — e não da vítima — o alvo da vingança artística. Medusa deixaria, assim, de ser apenas troféu ou monstro e se tornaria memória e resistência.
A relação com os Direitos Humanos emerge na medida em que o mito, a estátua e a análise de Segato evidenciam como o sofrimento das mulheres é estruturado socialmente e como a justiça histórica falha em proteger a vítima. O direito à integridade física, à dignidade e à igualdade de gênero é violado tanto no mito quanto na realidade, refletindo padrões de opressão que atravessam séculos.
A estátua de Garbati funciona como crítica simbólica: coloca Medusa como agente, subvertendo a narrativa da vítima passiva, e chama atenção para a necessidade de responsabilização dos verdadeiros agressores. Ao mesmo tempo, evidencia que a proteção das mulheres e a justiça real continuam incompletas, reforçando a importância de um enfoque de Direitos Humanos que vá além da punição simbólica e que assegure responsabilidade, reparação e prevenção.
Assim, a arte torna-se veículo de denúncia e reflexão crítica, mostrando que a luta pela equidade e pela proteção das mulheres deve ser central nos discursos e práticas de Direitos Humanos, transformando a memória da violência em instrumento de resistência e educação social.
O rosto de Medusa e a ética da alteridade
A reflexão sobre Medusa, após analisar o mito, a estátua de Garbati e a pedagogia do sofrimento, conduz à filosofia de Emmanuel Levinas. Para ele, o rosto do outro é interpelação ética: olhar o outro é ser chamado à responsabilidade, reconhecer sua vulnerabilidade e agir com justiça. O rosto não é apenas a face física, mas a expressão da alteridade que nos convoca a responder ao sofrimento do outro (Levinas, 1989).
No entanto, Medusa foi privada de rosto. Transformada em monstro, com cabelos de serpente e olhar que petrifica, ela se torna símbolo de medo, e não de reconhecimento. O mito evidencia a falência de uma ética fundada no patriarcado: ao invés de acolher a vítima e responsabilizar o agressor, o sistema desloca a culpa, invisibiliza a dor da mulher e reforça a dominação masculina. Medusa não é reconhecida como sujeito de direito ou dignidade; é convertida em objeto de terror, exílio e destruição.
Sob a perspectiva de Levinas, essa transformação é negação radical da alteridade: a mulher é desumanizada, e sua experiência de sofrimento é silenciada. A ética surge no encontro com o rosto do outro, mas o patriarcado desfigura o rosto feminino, tornando impossível a abertura ética. Assim, a glória masculina e a impunidade do agressor são sustentadas pela ausência de reconhecimento da vítima como ser humano integral.
Levinas nos convida a imaginar outra forma de justiça: a verdadeira reparação só se cumprirá quando o olhar masculino — que historicamente petrifica e subjuga — puder sustentar o rosto feminino em sua dignidade, vulnerabilidade e autonomia. Medusa, como figura mítica e histórica da violência estrutural contra as mulheres, nos interpela: a justiça não se realiza no espetáculo do medo ou da punição simbólica, mas na responsabilização do agressor e no reconhecimento da vítima como sujeito ético, humano e inviolável.
O olhar aparece como instrumento de poder e de subjugação. No mito, Medusa é punida com o olhar que petrifica: sua própria presença visual é transformada em ameaça, tornando impossível que o outro a veja como sujeito, enquanto seu corpo é controlado e destruído. Paralelamente, os pobres e marginalizados, submetidos à humilhação social, são frequentemente compelidos a baixar os olhos, internalizando a violência simbólica e material que os coloca em posição de subalternidade.
Em termos feministas, como observa Rita Segato (2019), a pedagogia do sofrimento ensina a reconhecer e respeitar as hierarquias de poder: o olhar da mulher, quando detém autonomia, é percebido como ameaça estrutural ao patriarcado. Ao mesmo tempo, na lógica do controle social, o olhar de quem domina busca neutralizar a potência do outro, seja por violência direta, punição simbólica ou humilhação cotidiana.
Em Levinas (1989), o olhar do outro é convocação ética: é o que nos chama à responsabilidade. A inversão desse princípio no mito de Medusa mostra que a violência consiste em negar o olhar da vítima, transformando-o em instrumento de medo e controle. O olhar feminino se torna interdito, a mulher é desumanizada, e a sociedade reforça seu poder ao manter o outro em posição de submissão.
Assim, o olhar atravessa todos os níveis da narrativa: do mito, que transforma a mulher em monstro; da arte contemporânea, que busca subversão simbólica; da pedagogia do sofrimento, que molda comportamentos; e da ética, que só se cumpre quando o rosto e o olhar do outro são respeitados. É pela política do olhar que se mede a justiça ou a violência, a inclusão ou a marginalização, a dignidade ou a humilhação.
Conclusão
O mito de Medusa, sua representação artística e sua leitura crítica permitem revelar a profundidade do sofrimento feminino e as estruturas de poder que o perpetuam. A análise mostra que a violência contra a mulher é cumulativa: física, psíquica e simbólica, operando como pedagogia social que ensina limites e reforça a dominação masculina. A estátua de Garbati subverte parcialmente essa narrativa, oferecendo uma imagem de resistência e reparação simbólica, mas também evidencia a persistência da impunidade do agressor, simbolizando a continuidade da violência estrutural. O olhar emerge como elemento central, atravessando mito, arte, psicanálise e filosofia ética, e funcionando como indicador das relações de poder e das possibilidades de justiça. Somente o reconhecimento da alteridade feminina, a responsabilização do agressor e a afirmação da autonomia das mulheres podem transformar o sofrimento histórico em memória, resistência e instrumento de Direitos Humanos.
Referências
Beauvoir, Simone de. (2009). O segundo sexo. Nova Fronteira.
Butler, Judith. (2003). Deshacer el género. Paidós.
Caravaggio, Michelangelo Merisi da. Medusa. Musei Capitolini, Roma.
Federici, Silvia. (2017). Calibã e a bruxa: Mulheres, corpo e acumulação primitiva. Elefante.
Freud, Sigmund. (2011). O mal-estar na civilização. Imago.
Freud, S. (2006). Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (2ª ed.). Autêntica.
Freud, S. (2013). Introdução ao Narcisismo. Belo Horizonte, Autêntica.
Freud, S. (2016). O Mal-Estar na Civilização. Belo Horizonte, Autêntica.
Freud, S. (2006). O Complexo de Édipo. Belo Horizonte, Autêntica.
Freud, S. (2016). Psicologia das Massas e Análise do Eu. Belo Horizonte, Autêntica.
Garbati, Luciano. (2008). Medusa com a Cabeça de Perseu [Estátua]. Foto: autor desconhecido. Exposição temporária em Collect Pond Park, Nova York, 2020.
Grimal, Pierre. (2005). Mitologia. Martins Fontes.
Irigaray, Luce. (1993). An Ethics of Sexual Difference. Cornell University Press.
Kristeva, Julia. (1989). Poderes do Horror: Ensaio sobre a abjeção. Perspectiva.
Lacan, Jacques. (2006). Escritos: Um seminário sobre a teoria do sujeito. Jorge Zahar Editor.
Lacan, J. (1971-1972). O Seminário, Livro 19: Os Não-Ditos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar.
Lacan, J. (1972-1973). O Seminário, Livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar.
Levinas, Emmanuel. (1989). Totalidade e Infinito. Martins Fontes.
Pateman, Carole. (1993). The Sexual Contract. Stanford University Press.
Segato, Rita. (2019). Pedagogia do sofrimento. Cortez.
Citar:
Autora:
Vanessa Maria de Castro é professora da Universidade de Brasília, psicanalista e pesquisadora nos programas de pós-graduação em Direitos Humanos e Cidadania. Neste ensaio, estabeleço um diálogo com colegas e alunos na disciplina Direito Achado na Rua, com foco na análise crítica das relações de poder, gênero e sofrimento estrutural.
Professora Vanessa é preciso coragem para analisar a mitologia e denunciar o patriarcalismo bem como a misoginia. A figura de Cleópatra, acredito eu , mexeu com todos(as) presentes que tentam sucumbir e resistir à violência contra a mulher. E assim continua a Caça às Bruxas. O Direito Achado nas Ruas é um olhar alinhado da Universidade para o povo rompendo com a frieza .
ResponderExcluirSim, o Direito Achado na Rua rompe com a misoginia ao desafiar o patriarcado através da luta por direitos de grupos historicamente oprimidos, especialmente mulheres e mulheres negras, promovendo o constitucionalismo feminista e buscando despatriarcalizar o direito e a sociedade. E assim caminha a humanidade!