A Cruzada Contra a Democracia e as Mulheres: A Bancada Cristã e a Ameaça à Laicidade
A Cruzada Contra a Democracia e as Mulheres: A Bancada Cristã e a Ameaça à Laicidade
Vanessa Maria de Castro
Brasília, 23 de outubro de 2025
“A primeira opressão que a sociedade exerce é sobre as mulheres.”
Essa afirmação de Simone de Beauvoir evidencia que, historicamente, as mulheres são o primeiro grupo a sofrer restrições sociais e políticas que refletem a manutenção de estruturas de poder patriarcais. A opressão feminina não é apenas simbólica ou cultural: ela se manifesta em leis, políticas públicas, práticas institucionais e normas sociais que limitam a autonomia das mulheres, controlam seus corpos e moldam seus papéis na sociedade.
No contexto do Congresso Nacional brasileiro, essa perspectiva torna-se ainda mais relevante. As medidas e iniciativas legislativas que buscam impor valores religiosos específicos ou restringir direitos reprodutivos demonstram como a opressão sobre as mulheres permanece como um eixo central de dominação. Assim, ao dialogar com fatos recentes, este ensaio busca mostrar que a primeira opressão — aquela que recai sobre as mulheres — funciona também como um termômetro da saúde da democracia: quando os direitos das mulheres são atacados, toda a sociedade perde espaço de liberdade, igualdade e pluralidade.
O Congresso Nacional brasileiro, ao priorizar a criação da chamada “bancada cristã”, evidencia uma estratégia deliberada para fragilizar a democracia, controlar as mulheres e seus corpos, e proteger estruturas patriarcais. Ao institucionalizar privilégios para uma fé específica dentro do Parlamento, o Congresso empareda o debate democrático, desloca a atenção de questões estruturais como desigualdade social e direitos das mulheres, e instrumentaliza a religião como ferramenta de poder político. A questão-chave é que há um encobrimento deliberado da pauta social, pois as grandes desigualdades e a defesa de direitos femininos são substituídas por interesses confessionais. Nesse contexto, as mulheres serão as primeiras a serem punidas, pois sua autonomia e direitos sobre os corpos tornam-se alvo imediato dessa ofensiva conservadora (BEAUVOIR, 2016; SEGATO, 2017).
O sofrimento das mulheres no contexto da criação da bancada cristã não é acidental, mas parte de uma estratégia deliberada desses líderes religiosos para consolidar poder político e social. Ao emparedar a pauta social em favor de interesses confessionais, busca-se subordinar os corpos femininos, restringir sua autonomia e decidir sobre suas vidas, funcionando como mecanismo de controle. Essa iniciativa cria um duplo poder — político e teocrático — que privilegia uma fé específica, fragiliza a democracia e a laicidade do Estado, e reforça estruturas patriarcais e hierárquicas historicamente estabelecidas. Por trás da roupagem religiosa, há também a intenção de proteger o patriarcado e o patrimônio cultural dominante, garantindo que normas, valores e decisões legislativas sejam moldados de acordo com a agenda conservadora, reproduzindo desigualdades e limitando a liberdade e direitos das mulheres.
A Câmara dos Deputados aprovou, em 22 de outubro de 2025, o regime de urgência para o Projeto de Resolução 71/25, que cria a bancada cristã, apresentada pelos presidentes das frentes parlamentares evangélica e católica, deputados Gilberto Nascimento (PSD-SP) e Luiz Gastão (PSD-CE), com 398 votos favoráveis e 30 contrários. Com o regime de urgência, o projeto poderá ser votado diretamente no Plenário, sem passar pelas comissões. A bancada será composta por uma coordenação-geral, três vices, terá direito a voz e voto nas reuniões de líderes e poderá falar por cinco minutos semanalmente em Plenário. Defensores argumentam que mais de 80% da população brasileira é cristã e que a Constituição garante liberdade de manifestação da fé. Contudo, o risco é transformar a bancada cristã em um duplo poder, consolidando a influência religiosa que já se fazia presente em outras frentes partidárias conservadoras, reforçando estruturas de poder patriarcais e elitistas, e ampliando o controle sobre a agenda política em detrimento da democracia e da laicidade do Estado.
Críticos apontam que a iniciativa afronta diretamente o princípio da laicidade, privilegiando uma fé específica no Colégio de Líderes e marginalizando minorias religiosas. Como destacou a deputada Talíria Petrone (PSOL-RJ), a criação da bancada cristã ignora a necessidade de políticas afirmativas voltadas à igualdade de gênero e raça. O deputado Mário Heringer (PDT-MG) reforça que a medida discrimina outras religiões, enquanto parlamentares conservadores celebram a oportunidade de consolidar poder religioso no Legislativo. Apesar das críticas, o debate continua limitado, concentrando-se apenas em aspectos superficiais da proposta, sem perceber a dimensão real do problema: trata-se de uma iniciativa que ameaça a própria democracia e a distribuição equilibrada de poder no Legislativo, e que, ao ser minimizada pelos críticos, escamoteia a gravidade de seus efeitos institucionais.
Ao acelerar a votação, o presidente da Câmara, Hugo Motta, legitima um projeto que não se limita à representação religiosa, mas que constitui uma ofensiva sistemática contra a democracia e a autonomia das mulheres. A criação da bancada cristã busca proteger interesses patriarcais, reforçar hierarquias históricas e controlar corpos femininos, configurando um retrocesso no processo de construção de direitos e igualdade.
Como lembra Simone de Beauvoir (2016), as estruturas patriarcais moldam e restringem a liberdade das mulheres, controlando seus corpos e seus destinos. Rita Segato (2017) reforça essa análise ao mostrar que o patriarcado moderno organiza o controle feminino a partir de práticas de subordinação e violência simbólica. As mulheres, cujas vozes ecoam em movimentos sociais e nas ruas, denunciam a instrumentalização da religião para justificar a subordinação de seus corpos e vidas. Nesse sentido, a criação da bancada cristã não é apenas uma medida institucional, mas um ataque direto às mulheres, à democracia e à laicidade do Estado.
A sociedade civil, os movimentos feministas, o Judiciário e as instituições públicas têm o dever urgente de resistir a essa ofensiva. A defesa da laicidade, da igualdade de gênero e da democracia é inegociável; a autonomia das mulheres e a proteção dos direitos humanos constituem a linha de frente contra a consolidação de um Estado teocrático disfarçado de política partidária.
Embora a liberdade de religião seja um direito fundamental garantido pela Constituição, a criação da bancada cristã revela que a teocracia é outra dimensão, distinta do direito individual à fé. A imposição de uma crença específica como instrumento de poder político configura uma forma de violência estrutural contra a sociedade, e especialmente contra as mulheres, que historicamente têm seus corpos e decisões controlados. A fé imposta, usada para justificar normas e legislações que restringem direitos, constitui uma das mais graves violências já praticadas ao longo da história, pois transforma a espiritualidade em mecanismo de opressão e subordinação social, corroendo os princípios de laicidade, pluralismo e igualdade.
Referências
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
SEGATO, Rita. Laços de Família e Poder: O Controle dos Corpos Femininos. São Paulo: Editora UNESP, 2017.
Agência Câmara de Notícias. Deputados aprovam urgência para projeto que cria a bancada cristã da Câmara. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/press/2025/10/22. Acesso em: 23 out. 2025.
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Como Citar:
CASTRO, Vanessa Maria de. A Cruzada Contra a Democracia e as Mulheres: A Bancada Cristã e a Ameaça à Laicidade. Brasília: Palavra em Transe, 23 out. 2025. Disponível em: https://palavraemtranse.blogspot.com/2025/10/a-cruzada-contra-democracia-e-as.html.
Autora:
Sou Vanessa Maria de Castro, professora da Universidade de Brasília e psicanalista. Escrevo este ensaio movida pela profunda preocupação com os rumos que o Congresso Nacional tem tomado e seus efeitos sobre a democracia e os direitos das mulheres. Meu objetivo é analisar de forma crítica as iniciativas que ameaçam a laicidade do Estado e a autonomia feminina, destacando como certas estratégias legislativas podem impor valores religiosos sobre toda a sociedade, em detrimento da pluralidade e da igualdade previstas na Constituição. Este trabalho surge como um esforço de reflexão e alerta, buscando evidenciar as consequências concretas dessas decisões e estimular um debate informado sobre a proteção dos direitos humanos e a manutenção de princípios democráticos.
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