Educação em Para-Direitos Humanos: Emancipação, Ética e Resistência na Construção da Dignidade


Educação em Para-Direitos Humanos: Emancipação, Ética e Resistência na Construção da Dignidade

Vanessa Maria de Castro 


Introdução

Repensar a educação em para-direitos humanos exige mais do que incorporar conteúdos formais sobre direitos: requer uma transformação epistemológica e prática do ato de educar. A partir das contribuições de pensadores como Emmanuel Levinas, Hannah Arendt, Paulo Freire, bell hooks, Michael Foucault e Byung Chul Han o presente ensaio propõe que educar seja compreendido como um exercício ético, político e emancipatório, centrado na alteridade um, no reconhecimento do Outro e na promoção da singularidade de cada sujeito. Ao analisar exemplos históricos, como os Little Rock Nine, e situações contemporâneas de discriminação racial nas escolas brasileiras, busca-se evidenciar que direitos legais e formais, por si só, não garantem dignidade ou inclusão. Nesse contexto, a educação deve criar espaços de cuidado, proteção e participação, capacitando os estudantes a desenvolver consciência crítica, solidariedade e capacidade de ação transformadora. Este estudo parte do princípio de que a escola, enquanto instituição social, pode ser tanto reprodutora de desigualdades quanto um espaço de emancipação e construção de direitos efetivos, dependendo do engajamento ético e da prática pedagógica adotada.

O Deslocamento Ético, o Vínculo com o Outro e a Urgência da Práxis Emancipatória

Falar em educação em para-direitos humanos implica um deslocamento epistemológico profundo. Não se trata apenas de introduzir direitos humanos como um conteúdo a ser memorizado, mas de reconfigurar o próprio sentido do ato de educar. O processo educativo, comprometido com a dignidade, a justiça social e o reconhecimento do Outro, nasce da práxis, do encontro e da travessia pelo mundo comum.

Para Emmanuel Levinas (1969, p. 50), o encontro com o Outro se manifesta pelo que ele chama de “rosto do Outro” (face of the Other), que não pode ser reduzido a um objeto ou a um conjunto de qualidades que o Eu possa controlar. O rosto convoca o sujeito a uma responsabilidade ética irredutível, impelindo-o a responder à vulnerabilidade do Outro. Nesse sentido, educar é sempre um ato ético: o olhar do educador não deve ser de dominação ou instrumentalização, mas de atenção, escuta e cuidado. A educação em para-direitos humanos é, portanto, a prática de formar sujeitos capazes de perceber, respeitar e agir em solidariedade com o Outro.

A contribuição de Hannah Arendt (1958) é fundamental para compreender a dimensão da inovação e da criação na educação. Arendt nos lembra da natilidade, ou seja, a capacidade de cada recém-chegado de iniciar algo novo no mundo. Na perspectiva arendtiana, a educação cumpre uma dupla função: preparar a nova geração para o mundo já estabelecido, garantindo a continuidade da vida social, e, ao mesmo tempo, proteger o novo da estagnação do velho, abrindo espaço para a inovação, a singularidade e a ação ética.

Educar em para-direitos humanos, portanto, não significa apenas transmitir conteúdos, mas inaugurar possibilidades, oferecendo aos estudantes a oportunidade de exercer sua liberdade e sua ação no espaço público. É um convite para que a singularidade de cada sujeito se manifeste, resistindo às forças que padronizam, alienam e desumanizam. Nesse contexto, a sala de aula se torna um espaço de exercício da cidadania, onde os alunos aprendem a pensar, agir e conviver com o outro, formando uma consciência crítica e ética em relação ao mundo e às relações sociais.

Ao pensar a educação desde a perspectiva latino-americana, torna-se impossível ignorar o que Aníbal Quijano (2000) denominou de colonialidade do poder. A educação tradicional, muitas vezes, atua como mecanismo de manutenção dessa colonialidade, silenciando vozes, invisibilizando memórias e hierarquizando saberes. Nesse cenário, a pedagogia engajada de bell hooks (1994) oferece ferramentas para a ruptura.

Para hooks, a sala de aula deve ser um espaço de possibilidade e transformação, onde educadores e estudantes aprendem juntos e constroem conhecimento de forma dialógica. A educação em para-direitos humanos, inspirada por hooks, deve ser antirracista, antipatriarcal e anticapitalista, permitindo que os estudantes desenvolvam consciência crítica sobre as estruturas de opressão que atravessam seus corpos e vidas. Ela propõe uma pedagogia do cuidado e da participação, em que o vínculo afetivo, a escuta e o diálogo são tão importantes quanto o conteúdo formal, garantindo que a aprendizagem se dê de maneira ética, inclusiva e emancipatória.

A dimensão ética da educação em para-direitos humanos encontra também o pensamento de Giorgio Agamben (1995), que nos convida a refletir sobre o humano como aquele que é constantemente produzido e desfeito nos limites da vida política. Para Agamben, educar é um ato de resistência à desumanização, uma abertura para o imprevisível e o inacabado, reconhecendo que os direitos humanos não são dados de forma natural, mas construídos e protegidos coletivamente por meio da ação política e da vigilância ética constante.

Em diálogo com Agamben, Byung-Chul Han (2015) aponta os desafios contemporâneos que a educação enfrenta em sociedades marcadas pelo excesso de informação, pela cultura da performance e pelo esvaziamento da atenção. Na lógica do “cansaço e da hiperatividade”, os sujeitos se tornam consumidores de conteúdos, distantes da reflexão crítica e do vínculo ético com o outro. A educação em para-direitos humanos, nesse contexto, deve promover silêncio, escuta, reflexão e cuidado, oferecendo espaços onde a atenção, o vínculo e a responsabilidade ética possam florescer, e onde o conhecimento seja transformado em práxis ética e emancipatória.

Portanto, educar hoje implica formar sujeitos capazes de agir etica e politicamente, de reconhecer e responder ao outro, e de transformar a aprendizagem em experiências de solidariedade, responsabilidade e criação de novos mundos possíveis.

O pensamento de Paulo Freire (1996; 1997) vai além de uma pedagogia de sala de aula: ele propõe uma filosofia de educação como prática de liberdade. Para Freire, educar é um ato político e ético, no qual o educador e o educando se engajam num processo de co-criação do conhecimento, em diálogo constante. A educação deve desenvolver a consciência crítica (conscientização), permitindo que os sujeitos reconheçam as estruturas de opressão que atravessam suas vidas — sejam sociais, econômicas, raciais ou culturais — e possam agir para transformá-las.

Freire critica a chamada “educação bancária”, na qual o educador deposita conhecimento nos alunos, e propõe uma educação dialógica, na qual todos são sujeitos ativos, aprendendo e ensinando reciprocamente. Esse modelo cria um espaço em que a educação se torna prática de liberdade, fomentando a autonomia, a responsabilidade ética e o engajamento social.

No contexto do mundo contemporâneo, a pedagogia de Freire assume um papel estratégico: ela oferece ferramentas para resistir às formas de dominação, à desigualdade e à exclusão, e possibilita que os sujeitos se tornem agentes de transformação social. Sua obra demonstra que a educação não é apenas instrução formal, mas instrumento para a emancipação humana, para a construção de sociedades mais justas e democráticas.

Além disso, Freire contribui diretamente para a educação em para-direitos humanos, pois coloca o reconhecimento do outro e a justiça social no centro do ato educativo. Ao estimular a reflexão crítica, a solidariedade e a ação ética, sua pedagogia fortalece a capacidade dos indivíduos de interagir de forma responsável e criativa com o mundo, tornando-se cidadãos plenos, capazes de transformar realidades e de construir direitos efetivos para todos.

Da Fotografia de Little Rock à Escola Brasileira Contemporânea: Educação, Racismo e a Responsabilidade Ética na Formação para Direitos Humanos

Em 1957, nos Estados Unidos, nove estudantes negros, conhecidos como os Little Rock Nine, foram obrigados a frequentar uma escola de brancos em Little Rock, Arkansas, como parte do processo de integração escolar determinado pela lei federal.

Entre eles estava Elizabeth Eckford. A fotografia de Eckford, publicada pela LIFE em 1957, mostra a adolescente sendo escoltada por soldados federais enquanto era hostilizada por colegas brancos ao tentar frequentar a Little Rock Central High School (SILK, LIFE Pictures/Shutterstock, 1957). Hannah Arendt (1959) observa que a imagem evidencia a vulnerabilidade de uma jovem diante de uma escola racista e de adultos que, embora formalmente responsáveis, não a protegeram da hostilidade e do preconceito. 


Fonte: Silk, George. 1957. African-American students escorted by federal troops, Little Rock Central High School, 1957. Life Pictures/Shutterstock.

Para Arendt, o episódio demonstra que direitos legais e formais não garantem por si só a dignidade ou a segurança dos sujeitos educandos; é necessária uma ação ética ativa dos adultos e da sociedade. Assim, a fotografia torna-se um alerta para a educação em para-direitos humanos: ela não pode se restringir à aplicação de normas ou à matrícula escolar, mas deve criar ambientes de cuidado, proteção e reconhecimento da alteridade, nos quais os estudantes possam exercer sua cidadania, singularidade e dignidade (ARENDT, 1959).

A crítica central de Arendt não recai sobre a adolescente ou seus pais, mas sobre os adultos e a sociedade, que não assumiram sua responsabilidade ética de garantir condições de segurança e dignidade. A fotografia evidencia que os direitos formais, sem cuidado ético e ação responsável, são insuficientes. Eckford foi forçada a enfrentar a hostilidade de uma instituição que, de fato, não estava preparada para acolhê-la.

Arendt utiliza o episódio como lente para analisar a fragilidade da democracia, o papel da lei e a formação do cidadão em uma sociedade plural.

Arendt destaca que a crise de Little Rock revela duas dimensões da autoridade:

  1. A autoridade formal do Estado, representada pela decisão da Suprema Corte e pela intervenção militar, que garante o cumprimento da lei.

  2. A autoridade moral da sociedade civil, que nesse caso falhou: a resistência massiva à integração escolar evidencia que direitos legais podem existir, mas não se tornam realidade se não houver consciência ética e política entre os cidadãos.

Ela também enfatiza que a democracia não é apenas um sistema de normas, mas um processo contínuo de convivência e educação. A tensão em Little Rock evidencia que a aplicação da lei sem mudança cultural produz conflitos e exige coerção, mas a coerção por si só não resolve o problema de desigualdade e preconceito.

Outro ponto central da análise de Arendt é a importância da educação na formação do cidadão crítico. Ela sugere que a educação formal precisa ser complementada por uma educação que forme juízo moral, responsabilidade e capacidade de ação política. O episódio demonstra que a simples imposição de direitos não garante a internalização de valores democráticos, reforçando sua crítica à ideia de que a lei basta para produzir justiça social.

Arendt ainda conecta o caso de Little Rock com questões universais sobre direitos humanos e cidadania: a luta pela integração escolar nos EUA é um microcosmo das dificuldades de qualquer sociedade democrática em lidar com exclusão, desigualdade e resistência cultural. Assim, o texto serve como alerta para todos os sistemas educativos e políticos: a democracia exige prática, educação e engajamento ético, e não apenas decretos legais.

Nesse sentido, a reflexão de Arendt é particularmente relevante para a educação em para direitos humanos. Mostra que a escola não pode ser vista como neutra: ela pode reproduzir desigualdades e opressões se os adultos não assumirem sua responsabilidade ética. Educar para direitos humanos exige criar espaços seguros, proteger os sujeitos educandos e enfrentar as estruturas de exclusão, garantindo que os direitos sejam praticados e vividos, e não apenas impostos por lei.

O episódio dos Little Rock Nine evidencia que a educação ética e política deve equilibrar proteção e ação: os sujeitos educandos devem poder exercer sua cidadania e singularidade, mas sem carregar sozinhos o peso das injustiças estruturais. A fotografia que impressionou Arendt torna-se, assim, um testemunho da necessidade de transformar a educação em espaço de cuidado, ação política e promoção efetiva dos direitos humanos.

Se considerarmos o intervalo entre 1957 e 2025, passaram-se 68 anos desde aquele episódio emblemático. Apesar de mudanças legais, políticas de igualdade e avanços na legislação antirracista, os exemplos contemporâneos no Brasil mostram que muitas escolas ainda reproduzem desigualdades e formas de exclusão.

Em março de 2022, no Colégio Municipal Dr. João Paim, em São Sebastião do Passé (BA), uma aluna de 13 anos foi impedida de entrar na escola por causa de seu cabelo crespo, considerado “não adequado” pelo inspetor da unidade escolar (CORREIO BRAZILIENSE, 2022). 

Em abril de 2025, uma estagiária negra de 29 anos, que trabalhava em uma escola de Joinville (SC), foi alvo de uma atitude racista por parte da diretora pedagógica da instituição. A diretora fez uma crítica ao cabelo da estagiária, dizendo: “E esse cabelo aí? Vai arrumar”. Essa situação gerou grande repercussão, pois reflete uma prática discriminatória e racista comum em muitas instituições educacionais, onde padrões estéticos eurocêntricos e racistas tentam impor um modelo de beleza, desvalorizando a identidade e o pertencimento de pessoas negras. (NSC TOTAL, 2025).

Em abril de 2024, durante um torneio de futsal escolar no Distrito Federal, estudantes foram vítimas de racismo e injúria racial, com ofensas diretamente dirigidas à sua condição social e à sua aparência, mais especificamente ao cabelo. Esses ataques configuram crime de racismo e violam os direitos humanos dos estudantes, que foram desrespeitados em um espaço que deveria ser de acolhimento, aprendizado e convivência (AGÊNCIA BRASIL, 2024).

Esses episódios mostram que, mesmo com leis antirracistas, programas de inclusão e acesso formal à escola, ainda existem ambientes hostis que reproduzem a exclusão histórica. A escola continua sendo um espaço de disputa simbólica e política, no qual a presença de estudantes negros ou racializados é tolerada formalmente, mas não acolhida de forma plena.

A continuidade histórica evidencia que a educação em para-direitos humanos não pode se restringir à matrícula ou à aplicação da lei. Ela exige proteção, cuidado ético e compromisso político, de modo que os estudantes possam exercer sua cidadania, singularidade e dignidade. A reflexão de Arendt sobre Elizabeth Eckford serve como alerta: é preciso assumir responsabilidade ética sobre os sujeitos educandos, criando ambientes em que a lei seja vivida, e não apenas formalmente aplicada (ARENDT, 1959).

De 1957 até hoje, a luta pela inclusão e dignidade na escola continua. O desafio atual é garantir que a escola seja um verdadeiro espaço de convivência plural, construção de sujeitos críticos e proteção de direitos concretos, onde a diversidade racial seja acolhida, respeitada e celebrada, e não apenas tolerada sob a força de regras legais.

Nas escolas, os sujeitos educandos muitas vezes enfrentam múltiplas formas de discriminação simultâneas: racismo, sexismo, preconceito socioeconômico, capacitismo, homofobia e bullying por aparência física ou identidade de gênero. Essas violências não são apenas episódios isolados, mas mecanismos estruturais que marcam o cotidiano escolar e moldam experiências de exclusão e humilhação. Quando uma criança ou adolescente é exposto a múltiplas discriminações, ele carrega o peso dessas injustiças em sua trajetória pessoal e acadêmica, afetando autoestima, saúde mental, rendimento escolar e percepção de pertencimento.

A escola, em vez de ser um espaço de acolhimento, aprendizado e convivência plural, muitas vezes se transforma em um espaço de vigilância e punição, quase como uma prisão simbólica, onde os corpos e identidades que não se encaixam nos padrões dominantes são constantemente vigiados, julgados e corrigidos. Essa dinâmica, além de limitar o desenvolvimento integral dos estudantes, reproduz e naturaliza hierarquias sociais e desigualdades históricas, transformando o ato de aprender em um processo de sobrevivência social, e não de emancipação.

Educar em para-direitos humanos, nesse contexto, exige repensar radicalmente a função da escola: não se trata apenas de cumprir normas ou aplicar a lei, mas de criar espaços éticos e políticos de proteção e valorização da diversidade, onde os estudantes possam exercer seus direitos, desenvolver suas capacidades e construir sua singularidade. A reflexão de Hannah Arendt sobre os Little Rock Nine nos lembra que direitos formais são insuficientes quando não há cuidado ético e responsabilidade ativa por parte dos adultos. A escola só deixa de ser prisão simbólica quando o cuidado, o reconhecimento e a ação ética permeiam sua organização, suas práticas pedagógicas e suas relações cotidianas.

A Primeira Trincheira: A Luta pela Emancipação na Escola e os Desafios dos Direitos Humanos

Em um contexto global em que os direitos humanos estão sendo sistematicamente desafiados, e onde o avanço de movimentos políticos de extrema direita coloca em risco as conquistas sociais, a luta pela emancipação dos sujeitos deve começar em um espaço fundamental: a escola. A escola, como instituição formadora de cidadãos, desempenha um papel decisivo na construção da dignidade humana, sendo, por isso, a primeira trincheira dessa luta pela defesa dos direitos humanos e da democracia (FREIRE, 1996).

A formação de uma nova geração, crítica, autônoma e engajada com os valores da justiça e igualdade, começa, inegavelmente, dentro dos muros da escola. Contudo, esse espaço, que deveria ser um ambiente de acolhimento e de construção de saberes, muitas vezes é permeado por práticas excludentes e discriminatórias, refletindo as desigualdades estruturais da sociedade. A violência simbólica, o racismo, o sexismo e o preconceito de classe são algumas das formas de opressão que persistem no cotidiano escolar, transformando a escola em um campo de batalha onde direitos fundamentais são negados (FOUCAULT, 2003).

Por isso, a educação em para-direitos humanos se torna mais urgente do que nunca. Este tipo de educação deve ir além da simples transmissão de normas legais ou conteúdos formais sobre direitos. Ela deve ser um processo formativo, ético e político, que seja capaz de transformar a experiência do estudante na escola em um espaço de emancipação, onde a alteridade e a dignidade do outro são reconhecidas, respeitadas e valorizadas. A verdadeira educação em direitos humanos deve educar para a liberdade, para a convivência solidária e para o engajamento político, sempre com base no cuidado ético e na responsabilidade social (ARENDT, 1958).

A escola, se não for um ambiente de cuidado ético, transformador e inovador, pode rapidamente se tornar um espaço de "prisão simbólica", onde os alunos são desumanizados, marginalizados e privados de suas possibilidades de desenvolvimento pleno. Quando os educadores não assumem sua responsabilidade de promover uma educação inclusiva, não só falham na tarefa pedagógica, mas também contribuem para a perpetuação de um sistema educacional que reforça as desigualdades sociais e raciais (FOUCAULT, 2003).

Para que a educação em direitos humanos se concretize, é necessário que todos os envolvidos no processo educacional – educadores, gestores e a comunidade escolar como um todo – se engajem de forma ativa e ética. O direito à dignidade, ao respeito e à igualdade deve ser praticado cotidianamente na escola, de modo que os estudantes possam vivenciar esses princípios no seu dia a dia, e não apenas em textos ou normas (LEVINAS, 1969).

A luta pela emancipação, que se reflete na construção dos direitos humanos, começa, portanto, dentro da escola. A educação deve ser um espaço de resistência à intolerância, à discriminação e à desumanização, criando condições para que cada sujeito se reconheça como protagonista de sua própria história e como parte de uma comunidade plural e democrática (FREIRE, 1996).

Em um mundo em que os direitos humanos estão sendo constantemente atacados, a primeira trincheira dessa luta está, e sempre estará, na escola. Somente por meio de uma educação radicalmente comprometida com os princípios de justiça, dignidade e liberdade poderemos garantir que os direitos humanos não sejam apenas uma abstração legal, mas uma realidade vivida por todos os cidadãos, especialmente aqueles que, historicamente, têm sido marginalizados (ARENDT, 1958).

A escola é, portanto, o primeiro campo de batalha da emancipação, e a educação em para-direitos humanos deve ser a base para que, no futuro, possamos construir uma sociedade mais justa, solidária e inclusiva, onde os direitos humanos não sejam apenas direitos formais, mas práticas cotidianas e vivenciadas por todos (FREIRE, 1996).

Conclusão

A jornada de repensar a educação em para-direitos humanos nos conduz a uma verdade incontornável: a dignidade humana não se decreta, mas se constrói na práxis. A dignidade, enquanto princípio fundamental dos direitos humanos, não é um dado pré-existente, mas um horizonte que exige ação contínua, vigilância ética e responsabilidade ativa. Nesse sentido, a análise do dilema de Elizabeth Eckford em Little Rock, confrontada com os episódios de racismo e exclusão simbólica nas escolas brasileiras, faz-se ainda mais relevante. Ela evidencia a falácia de um direito legal que, sem a efetiva transformação das relações sociais e educacionais, torna-se um mero enunciado de boas intenções.

Assim, os direitos legais e formais, por mais essenciais que sejam, são tragicamente insuficientes sem a garantia de uma vigilância ética constante e a responsabilidade ativa de todos os educadores e da sociedade. A escola, se não for um ambiente de cuidado ético e de inovação contínua, acaba se tornando uma "prisão simbólica", limitando não apenas a singularidade, mas a própria dignidade dos sujeitos que nela transitam. O direito, como nos ensina a prática social, não brota da lei, mas da luta social, e é nesse campo que a dignidade humana encontra seu verdadeiro significado, sendo sempre ressignificada pela ação e pela resistência.

A urgência do presente exige que a educação em direitos humanos se transforme em um movimento de emancipação, sustentado por uma ética sólida e pautado pela responsabilidade que nos ensina Emmanuel Levinas. Ele nos fala da relação de responsabilidade com o Outro, um chamado a reconhecer e respeitar a dignidade do outro em sua totalidade. Hannah Arendt, por sua vez, nos lembra que a ação política é o espaço em que o novo se inaugura, e é essa capacidade de agir, de transformar o mundo e as estruturas de poder que devem ser promovidas pela educação. Portanto, a educação deve ser pensada não como uma simples transmissão de saberes, mas como uma prática radical de liberdade, autonomia e dignidade.

Superar a educação tradicional, assim como a colonialidade do poder (como propõe Quijano), exige uma práxis pedagógica que não apenas forme indivíduos críticos, mas que capacite os sujeitos a reconhecerem as estruturas de opressão que os atravessam e transformá-las. Nesse processo, a dignidade humana surge como um valor fundamental a ser afirmado, não de forma abstrata ou teórica, mas como uma vivência diária, que se reflete nas ações concretas da educação.

O ato de educar, portanto, deve ser constantemente repensado, fundamentado na transformação real das práticas educacionais. Isso não significa apenas uma mudança nas metodologias ou nos conteúdos, mas um real compromisso com a construção da dignidade dos sujeitos que a escola visa formar. Assim, uma educação emancipatória, inclusiva e capaz de superar as violências estruturais só será possível quando tivermos clareza de que a dignidade humana é o valor fundante e estruturante de qualquer transformação social.

A educação em direitos humanos é, por essência, uma resistência à desumanização e um convite à prática ética da dignidade. Ela vai além de uma área do conhecimento; é a filosofia da educação como prática de libertação, de humanização, e, portanto, de construção da dignidade humana. Essa práxis contínua, em todos os níveis educacionais, tem o poder de formar sujeitos éticos, capazes de atuar de maneira transformadora e solidária no espaço público. Assim, o conhecimento não se restringe ao campo acadêmico, mas se expande para a vida cotidiana, contribuindo ativamente para a construção de novas realidades mais justas, inclusivas e democráticas.

Portanto, a emancipação educacional não é apenas um objetivo, mas um processo contínuo e transformador, onde a manutenção de uma conscientização crítica e a implementação de práticas pedagógicas inovadoras são essenciais para garantir que a educação cumpra, de fato, seu papel de libertação, promoção da dignidade humana e construção de um futuro em que os direitos de todos, sem exceção, sejam respeitados e garantidos.



Referências 

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua. Tradução de André Telles. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1995.

AGÊNCIA BRASIL. Ministério repudia atos de racismo envolvendo escolas em Brasília. Agência Brasil, Brasília, 13 abr. 2024. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2024-04/ministerio-repudia-atos-de-racismo-envolvendo-escolas-em-brasilia. Acesso em: 6 nov. 2025.


ARENDT, Hannah. The Human Condition. Chicago: University of Chicago Press, 1958.


ARENDT, Hannah. Reflections on Little Rock. Dissent, v. 6, n. 1, p. 45-56, Winter 1959.

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LEVINAS, Emmanuel. Totality and Infinity: An Essay on Exteriority. Translated by Alphonso Lingis. Pittsburgh: Duquesne University Press, 1969.

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Como Citar: 


CASTRO, Vanessa Maria de. Educação em Para-Direitos Humanos: Emancipação, Ética e Resistência na Construção da Dignidade. Palavra em Transe, 06 nov. 2025. Disponível em: https://palavraemtranse.blogspot.com/2025/11/educacao-em-para-direitos-humanos.html. Acesso em: 06 nov. 2025.


Autora: 

Sou Vanessa Maria de Castro, professora da Universidade de Brasília e psicanalista. Escrevo este ensaio “Educação Em Para Direitos Humanos: Emancipação, Ética e Resistência na Construção da Dignidade”  para dialogar com o convite da professora Olgamir Amancia Ferreira para participar da III Seminário de Extensão Universitária, Educação e Direitos Humanos em Tempos de Insurgência. O evento ocorrerá no dia  07/11/2025 na FUP/UnB e na Mesa: [Re]pensar a educação em e para os direitos humanos: diálogos insurgentes.

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